Sunday, September 26, 2010

O mestre e o refém:

a tolice do mundo

em Esaú e Jacó

Por Cid Ottoni Bylaardt


No processo de metamorfose da aventura romanesca, Jacques Rancière, em Políticas da escrita, distingue dois tipos de movimentos: numa primeira forma, a onipotência do escritor, do pai do discurso, cria narradores e personagens que devem dar consistência ao relato, que fingem fazer asserções, estabelecendo as convenções do cerimonial literário, as quais constituem a regra séria do não-sério, fazendo da literatura filosofia; na segunda, procede-se a uma inversão das posições do mestre do relato e de seu refém, o personagem. Com relação ao primeiro caso, Rancière distingue ainda duas manifestações: a do mestre de vida, que define o espírito da letra com intenção de veicular uma experiência e um aprendizado, como ocorre em Iracema, de José de Alencar, em que os antagonismos deságuam em um desfecho ideológico; e a do mestre de jogo, que joga com a letra desdobrando-a ao infinito, com intenção lúdica, na posição do marionetista, do deus-ausente, do Grande Bibliotecário, "el Hombre del Libro" de Borges, multiplicando-se na reflexão sem limite do espelho.

O segundo movimento, objeto desta investigação, conduz à ideia de intransitividade, de autonomização, ou de absolutização. Num certo ponto-de-vista, esse tipo de fabulação é percebido como um desvio da função comunicativa da linguagem, como um desdobramento do discurso sobre si mesmo. Numa visão sartriana, esse tipo de escrita é derivado de uma postura niilista, ressentida, reflexo da "Revolta do artista contra o Pai e a Burguesia".

Rancière propõe então, numa terceira maneira de ver, que essa "absolutização" do estilo seja compreendida como uma arte nova que não dispensa a transparência da prosa banal, de sua transitividade, ao mesmo tempo que mantém sua autonomia, sem se esconder na solidão da linguagem. Trata-se de escrever bem o que é vulgar, o que é medíocre, o que já perdeu o sentido de tanto ser dito e escrito, numa "mimese integral", numa "mimese superior, tão louca quanto a de D. Quixote imitando sem razão a loucura de Orlando", ou seja, o descabido, o desproposital, o sem-sentido.

Esse movimento, entretanto, só pode realizar-se se o artista assumir a paixão do personagem, ocupando sua posição, tornando-se o louco da letra, o refém de seu refém, definindo assim sua vida escrita. Inverte-se aí o processo de construção da obra, que consistia num acúmulo de material e de seu consequente aperfeiçoamento, conformação, harmonização. Na obra invertida, sobressai o seu inacabamento, sua incompletude, "inteiramente entregue àquilo contra o que ela se construía: a tolice do mundo, o todo-dito, sempre já dito".

Essa assunção do autor, que passa a ocupar a posição de refém do texto e da fabulação romanesca, possibilita a ele fazer falar o não-sentido das coisas, de dar voz à mudez do medíocre, transformando "o grande corpo opaco da prosa do mundo e o grande corpo opaco da erudição" em enunciação transparente de uma ideia dentro de seu discurso.

Em Esaú e Jacó, Machado de Assis realiza essa prosa absolutizada que consegue preservar a transparência do signo mantendo a autonomia da escrita, que se sustém sem as convenções do cerimonial literário. Possivelmente, essa ausência de verdades e descrença em erudições, insistentemente enunciadas, essa incorporação da posição do refém é que originou as críticas de Sílvio Romero à escrita do criador do conselheiro Aires:


O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloquente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem.

Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão de um tal ou qual tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma cousa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra.


O que Romero chama de "índole psicológica indecisa" penetra o romance de Pedro e Paulo, em que se faz sentir a presença do autor em seu "tal ou qual tartamudear". Essa gaguez, que Gilles Deleuze relaciona a uma "sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio", denuncia a presença perplexa do autor no palco do mundo, onde impera a asneira. Trata-se de "trabalhar sob as histórias, de fender as opiniões e de chegar às regiões sem memória". Ao tratar desse "não-estilo", Deleuze cita Andrei Biely (membro da trindade russa "três vezes gaga e três vezes crucificada"), cuja observação se aplica à escrita de Machado:


O leitor verá desfilar apenas os meios inadequados: fragmentos, alusões, esforços, investigações, não procureis encontrar aí uma frase bem polida ou uma imagem perfeitamente coerente, o que se imprimirá nas páginas será uma fala embrulhada, uma gaguez...


A tolice dos personagens e do mundo é apontada por Aires no verso "truncado" de Dante Alighieri que ele escreve em seu diário e que a voz textual, exercitando seu tartamudear, hesita em adotar como epígrafe do livro depois de efetivamente tê-lo feito, como se até então não houvesse epígrafe nenhuma. Tal paspalhice não significa que o escritor seja mais um tolo na história, mas a ficção dos insípidos inverte a tradicional coerência da obra literária, forçando-a a retornar ao meio de onde ela retirava seus materiais, alguns dos quais, eleitos pelo decoro, seriam depurados e polidos como cristais.

Machado não pule seus achados; ele os conserva no estado bruto a que a "civilidade" do mundo os condena: a insipidez, o narcisismo, a hipocrisia. Afinal, essa matéria serve para escrever livros, como afirma o locutor no capítulo XXXVI, a respeito da discórdia, que propiciou a criação dos "grandes livros épicos e trágicos". Num acesso de falsa desambição, o locutor cuida de excluir seu livro dos que foram escritos para dar vida à discórdia, em nome de uma certa "Modéstia, que mal suporta a letra capital que lhe ponho".

O autor então se submete a toda essa mentira, a toda essa loucura, que parece organizar-se dentro de uma certa lógica literária, mas que espelha exatamente a desordem do mundo, a relação ambígua com o leitor, os múltiplos textos cuja verdade não pode ser verificada no espaço da sociedade. Trata-se de escrever bem o medíocre, escrever bem a respeito de nada, como afirma o locutor do livro no capítulo XLVI: "a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa". A impossibilidade da verdade pelo excesso do dito é afirmada explicitamente no capítulo XXI: "as orelhas da gente andam já tão entupidas que só à força de muita retórica se pode meter por elas um sopro de verdade".

As inversões de que fala Rancière podem ser percebidas em Esaú e Jacó, primeiramente, a partir da "Advertência", que embaralha a identificação das vozes e dos corpos e que determina a submissão do escritor à fábula em que encerra seus personagens. A voz que fala na "Advertência" é passiva, de corpo indeterminado, que não define o pai do achado. A narrativa dos gêmeos é o sétimo caderno, que tem o nome de "Último", da escrita deixada por Aires após sua morte. Quem faz a advertência não a assina, o que dá motivos a especulações: ele pode ser Machado de Assis, ou um narrador sem corpo, ou o editor anônimo dos cadernos de Aires, ou o próprio Aires. Não se identifica quem recolheu o manuscrito, quem sugeriu os vários títulos para a narrativa, como o presunçoso Ab ovo, quem decidiu pela denominação Esaú e Jacó. O prefácio, antes de esclarecer, termina por confundir o jogo de vozes, criando o enigma da enunciação.

É curioso observar que na "Advertência" a Memorial de Aires, livro posterior a Esaú e Jacó, o locutor refere-se à narrativa dos gêmeos, mostrando-se em primeira pessoa, e subscrevendo suas iniciais: M. de A. Essa assunção tardia da paternidade do texto já então em circulação contribui para aumentar a confusão entre as vozes e os corpos.

Quanto à voz condutora da ação, supõe-se, de início, que o conselheiro seja o narrador da história, e é com essa impressão que o leitor inicia o romance. Entretanto, o suposto narrador é introduzido como personagem a partir do capítulo XII, e permanece na narrativa como tal até o último capítulo. Aqui um narrador, em terceira pessoa, que aliás não parece ser um só, refere-se a um personagem que se julgava ser ele mesmo, chegando inclusive a confrontar-se com ele:


Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo.


Na sequência, um reles burro empacado determina o desembaraço da narrativa.

É possível supor a existência de um narrador central, que conta os fatos do relato (nível do enunciado) e faz ao mesmo tempo as críticas e comentários (nível da enunciação). Aires seria, então, uma espécie de co-narrador, que enriquece os fatos e reflexões com sua visão de mundo, que pretende ser a mais imparcial possível.

Outra leitura possível é a de que existe um autor real (o próprio Machado), e um pseudo-autor (Aires), mencionado na Advertência por uma voz também ficcional (um editor qualquer?). O autor real seria, assim, um narrador implícito, aquele que tece comentários e faz reflexões que serpenteiam pelo enunciado da ação, narrada por uma voz que não pode ser identificada. Esse "eu" sem corpo mostra-se no capítulo XLVIII, em que ele nega sua presença no livro, sua participação na narrativa:


Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo.


Há também a possibilidade de que Aires seja um duplo de narrador e de personagem. A partir da "descoberta" dos cadernos de Aires, um certo editor, que seria o autor da Advertência, teria publicado a narrativa tal qual constava do caderno chamado Último. Nesse caso, Aires relatou os fatos distanciando-se inclusive de si mesmo, que, como personagem, transitava no nível da ação, e como narrador ajustava seu foco nas ações e nas reflexões, como uma luneta que se aproxima e se distancia, inclusive citando entre aspas
seus próprios escritos do Memorial sobre os acontecimentos das vidas dos gêmeos e seus desdobramentos.

Assim, não é delírio supor que exista um ghost-Aires na narrativa que nos chegou às mãos, para manter o caráter instigante e desafiador do texto.

Sabe-se que Machado tem pavor à onisciência, daí a multiplicidade de vozes. Sabe-se também que ele tem mais pavor ainda à obviedade, daí as múltiplas leituras possíveis. Em tudo isso, é importante que se identifique, além das vozes das personagens, pelo menos duas locuções que transitam no romance: há uma voz que narra a história, os acontecimentos que envolvem os personagens; há também uma outra voz, entremeada e às vezes amalgamada à anterior, que tece comentários e críticas, realiza reflexões, chama a atenção do leitor para determinados fatos, cita a História do Brasil, a mitologia clássica e cristã, trechos de obras da literatura universal e, o mais importante, constrói a escrita diante do leitor. Essa locução tem, além disso, a função de espalhar pela cena as sobras, os recortes, os fragmentos. Um belo exemplo desses sobejos é a história das barbas (capítulo XXIII), cuja função diegética é desprezada pelo próprio locutor:


Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não a entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo.


Esses tropeços, essa gaguez do escritor vão deixando pela obra acúmulos e cortes de elementos, escritas que se sobrepõem a outras escritas, saltos no tempo ("tecido invisível em que se pode bordar tudo"), contradições inexplicáveis, intromissão de leitora que provoca o atraso do relato e a fúria do escritor, as ruínas pintadas por Flora, o armário de relíquias de Aires, os pedidos de desculpas pelos objetos espalhados por todo lado na narrativa.

É importante perceber também, na obra, as diferenças, o estranhamento, as dualidades que não se resolvem. Machado tanto recusa a obviedade como rejeita o previsível. A começar pelo nome do romance: quando procuramos saber quem foram Esaú e Jacó, encontramos dois gêmeos da Bíblia que brigaram no ventre da mãe e que nasceram e viveram boa parte de suas vidas sob o signo da rivalidade. A semelhança é óbvia, portanto? Não, quando se verifica que a principal característica dos gêmeos do romance é sua teimosa determinação em não se reconciliarem verdadeiramente, embora houvessem jurado que mudariam aos pés das duas defuntas mais queridas de suas vidas, Flora e Natividade. Os gêmeos bíblicos, entretanto, reconciliam-se realmente e vivem em harmonia pelo resto de suas vidas. Outra grande diferença: Esaú e Jacó tiveram uma vida atribulada, tendo sido agentes de seu próprio destino e líderes de nações; Pedro e Paulo, ao contrário, levaram uma vida medíocre e passiva, à sombra do prestígio e do dinheiro do pai.

O suporte bíblico, portanto, evidencia mais diferenças do que semelhanças, revelando a impossibilidade de se verificar no mundo real a verdade dos livros. O mesmo se pode dizer de comparações entre Pedro e Paulo e outras duplas famosas, como São Pedro e São Paulo e Castor e Pólux. Por mais que Santos o quisesse, seus filhos não tinham nada de santos. Castor e Pólux, por sua vez, são gêmeos da mitologia grega, muito valentes, companheiros inseparáveis, unidos por profunda afeição. A mesma Flora, cujo nome foi tomado da deusa grega da eterna juventude, morre bem jovem, contrariando a previsão implícita feita em sua pia batismal. Mais uma vez, o livro não se verifica no mundo.

O que ocorre com as fontes mitológicas acontece também com o suporte histórico e com o literário.

A história do Brasil, insistentemente citada pelos locutores, parece fornecer uma referência central para os acontecimentos, e para as atitudes de Pedro e Paulo. Vejamos, entretanto, as relações entre os gêmeos e a dualidade histórica mais importante da narrativa: monarquia x república. Inicialmente, Pedro é a favor da monarquia e Paulo defende a república. Mais tarde, quando já estão na política, Pedro torna-se republicano e defensor intransigente do governo, enquanto Paulo se torna insatisfeito com a república, que não corresponde aos seus ideais, e faz oposição ao governo. Percebemos, então, que não temos uma narrativa a serviço da História, ou do mito, mas uma série de referências, inclusive literárias, que particularizam a narrativa, com um evidente descentramento do apoio histórico ou mitológico, a serviço da diferença, da oposição, da dualidade.

Exemplo talvez mais marcante da inutilidade das crenças e das verdades é a história do Batista, pai de Flora, o qual, por insistência da esposa, passou-se com ligeireza dos conservadores para os liberais. Sua relutância inicial subordina-se mais à parvoíce do personagem do que propriamente a sua idoneidade ou firmeza de convicções.

A atitude de Batista encontra ressonância na imagem que o locutor realiza no capítulo LIII: ao folhear dois Relatórios de uma presidência do Batista, ricamente encadernados, que continham suas prestações de contas, Aires comenta que "a encadernação corresponde à matéria". A metáfora sugere que o conteúdo é tão superficial quanto o luxo da encadernação e, por extensão, que o personagem é tão profundo quanto a roupagem que usa.

Na relação infinita de tolices, Santos, o pai dos gêmeos, que representa a glória do self made man burguês, supera os demais. Sua vida é toda devotada à aquisição de emblemas de felicidade burguesa: carros caros, título de nobreza, casa luxuosa, enfim, todo tipo de ostentação, que lhe confere, aos seus próprios olhos, a admiração e a inveja de toda gente. A pompa vazia do burguês é ilustrada no caso do discurso "incendiário" de Paulo, que a mãe extremosa temia pudesse estragar sua carreira. O irmão Pedro, para amenizar os efeitos do discurso, declarou que ele "não diferia muito do que os liberais diziam em 1848". O pai pegou o mote e repetiu-o à própria princesa Isabel, como uma forma de valorizar o discurso do filho e de abrandar seu furor, fazendo-o passar por monarquista liberal. Ante o relato do pai, Pedro se surpreendeu:


¾ Papai disse isso? perguntou Pedro.

¾ Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.


Note-se que Santos tenta "convencer o filho" de algo que ele se apropriara do próprio filho. E assim termina o capítulo, sem mais explicações, e o leitor é que trate de ruminar a contradição com o máximo de estômagos no cérebro, se possível quatro.

A erudição literária também aparece como o discurso do excesso e do inútil. No capítulo XIII, ironicamente intitulado "Musa, canta...", o conselheiro presenteia aos dois gêmeos duas citações de Homero, uma da Ilíada e outra da Odisseia, respectivamente sobre Aquiles e Odisseu. A epopeia é o corpo glorioso de um povo, contém a verdade de uma raça; as virtudes dos heróis épicos transpostas para os irmãos acabam por reduzi-las a "velhaco" para Pedro e "furioso" para Paulo, fazendo desmoronar os princípios homéricos.

Como se não bastassem as verdades surradas da erudição, Aires elabora as suas próprias, elevando-as às alturas dos grandes escritores, como a frase "Toda alma livre é imperatriz.", proferida à guisa de galanteio a Flora. Vale reproduzir o comentário de Machado:


A frase era boa, sonora, parecia conter a maior soma de verdade que há na terra e nos planetas. Valia por uma página de Plutarco. Se algum político a ouvisse poderia guardá-la para os seus dias de oposição ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que ele mesmo escreveu no Memorial. Com esta nota: "A meiga criatura agradeceu-me estas cinco palavras".


Verifica-se que o locutor compartilha com Aires o comentário, assumindo o desconchavo da erudição digna de um político, disfarçando em verdade o que há de mais opaco e sem sentido no mundo.

A mesma opacidade se verifica com a frase tomada do padre Manuel Bernardes, escritor português do século XVII: "Alonguei-me fugindo e morei na soedade". O dito foi tomado por Aires como sua "divisa" em determinada época da vida, a que depois renunciou. O narrador faz então referência a uma possível utilização da frase pelo pai dos gêmeos: "Santos, se lha dessem, fá-la-ia esculpir, à entrada do salão, para regalo dos seus numerosos amigos". O personagem, em seu medíocre deslumbramento, veneraria o poder ostentatório do significante da frase, que nada tinha a ver com sua vida. A frase teria o mesmo brilho da estátua de Narciso que o personagem cravou em seu jardim.

Ao discurso do excesso e do inútil soma-se a falha da letra sem corpo. Machado de Assis tem consciência da errância da letra sem pai no mundo que aponta para a deslegitimação, a perturbação democrática, a mobilidade do discurso a par da mobilidade social:


Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias. As próprias ideias sem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas.


Essa consciência da orfandade das palavras, Machado a revela ao assumir a inversão da posição de mestre com seus reféns, seus personagens, ao compartilhar com eles o palavrório do mundo. A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como ocorre na desordem democrática, que busca lançar por terra a separação entre superiores e inferiores em níveis diversos. O escritor abandona então a posição clássica do ser onipotente que gera filhos submissos, a qual faz dele mestre de vida ou mestre de jogo. Nessa inversão, são rompidas as regras que distinguem as formas da linguagem comum e as da palavra artisticamente trabalhada.

Na posição de participante da fábula, o conselheiro Aires é testemunha da estupidez da sociedade, e de certa forma participa dela e com ela é conivente, sustentando-se da parvoíce da tribo. Ele age como copista da vida, que registra sem contribuir para que nada mude, fugindo sempre do debate, mantendo sua cômoda posição. É evidente sua predileção pelas mulheres, que sempre exercem fascínio sobre ele, e às vezes enchem-no de uma recôndita esperança de ser amado, como em relação a Natividade e Flora, em que pese a diferença de idade entre ele e a jovem filha do casal Batista. É sua a frase: "¾ Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, agrava". Sua amizade às mulheres não o impede, entretanto, de trair a promessa feita a Flora de tentar persuadir o pai de não aceitar um cargo que tirasse a família do Rio de Janeiro (capítulo LIII), e ele não demonstra pesar por isso: "não se arrependia do que dissera e muito menos do que não dissera". Ele é o conselheiro que não consegue dar conselhos, embora seja admirado por sua seriedade e por sua habilidade com as palavras, que frequentemente não querem dizer muita coisa, mas parecem impressionar os homens e as mulheres. O personagem tem, entretanto, consciência de que os humanos são seres acabados, imutáveis, conforme seu veredito pessoal, que ele não propaga para evitar dissenções:


Aires sabia que não era a herança, mas não quis repetir que eles eram os mesmos, desde o útero. Preferiu aceitar a hipótese, para evitar debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.


Essas são as palavras finais do romance, que confirmam a mesmice do ser humano, sua vaidade eterna, sua incapacidade de crescer e se desenvolver, mudando aqui e ali uma aparência ou colhendo uma frase para viver melhor e aproveitar as situações.

Esse é o jogo fascinante e perturbado que o romance Esaú e Jacó apresenta entre o autor, o narrador e os personagens, e que leva o escritor a abandonar sua posição de prepotência para assumir a desordem do relato. Encontra-se aqui o velho tema do escrito achado, que confere à narrativa um caráter de "verdade", de "relato verdadeiro", que se opõe às "ficções" e "lendas" do poema homérico, as quais estabelecem as convenções da representação. Despindo-se das concepções clássicas de inventio (assunto), dispositio (organização das partes) e da elocutio (tons e complementos coinvenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto), com seus parâmetros reguladores, o escritor permite-se romper com as regras da mimese e termina por assumir as paixões e erros de seus personagens. Assim, ele preserva a autonomia de seu texto, numa obra gaguejante que escreve bem a tolice do todo dito e a banalidade da prosa comum.



BIBLIOGRAFIA


ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Século XXI, 2000.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.

ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 7.ed. V.5. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1980.