Monday, August 03, 2009

Os mortos de línguas cortadas – ficção e realidade em Nove noites,
de Bernardo Carvalho
Cid Ottoni Bylaardt *



Resumo
O romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, entrelaça morte e escrita numa narrativa intrigante, evidenciando os tênues limites entre realidade e ficção. A realidade dos fatos é buscada tenazmente pelo narrador jornalista, que a partir de certo momento, paradoxalmente, revela a preocupação de que o real arruine a ficção, por mais que esta pareça estar entre as expectativas do leitor. A escritura, entretanto, avança sem se deixar determinar, conduzida por locutores não-confiáveis, indecisos entre a verdade e a mentira, o real e a ficção, desembocando na questão da morte como impossibilidade de dizer e também de calar.
Palavras-chave: ficção e realidade, escrita e morte, impossibilidade de dizer e de calar





Em “La littérature et le droit a la mort” (2003, pp. 314-318), Blanchot fala da linguagem, de seu efeito tranquilizador, por um lado, e inquietante, por outro. Nas palavras de Iser (1996, p. 303), a linguagem, o texto propiciam um “jogo instrumental” e/ou um “jogo livre”. No jogo instrumental ocorre uma tendência ao apaziguamento, à segurança, à compreensão, enquanto o jogo livre inclina-se a escapar às determinações elementares do uso.
Essas duas concepções similares refletem sobre as diferenças entre linguagem corrente e linguagem literária. A linguagem possibilita a facilidade e a segurança da vida, quando nos permite o domínio das coisas, o que não teríamos se elas não tivessem nome. Nossa civilização aprendeu cedo que nomear o mundo é apossar-se dele. Blanchot cita Hegel para ilustrar o domínio dos homens sobre as coisas pela palavra: “Le premier acte, par lequel Adam se rendit maître des animaux, fut de leur imposer un nom, c’est-à-dire qu’il les anéantit dans leur existence (en tant qu’existants)” (BLANCHOT, 1997, p. 311).
O encanto original da utilização da palavra parece ter cedido lugar a uma certa inocência e sangue-frio, possivelmente por causa da perda da relação do significante com o objeto, provocada pelo uso. Quando o significado me chega por via do significante, o objeto é suprimido, privando-se de seu ser, que me chega como eflúvio, vestígio, resíduo, como Blanchot, parafraseando texto bem conhecido de Mallarmé , assinala:

Je dis une fleur! Mais, dans l’absence où je la cite, par l’oubli où je relègue l’image qu’elle me donne, au fond de ce mot lourd, surgissant lui-même comme une chose inconnue, je convoque passionnément l’obscurité de cette fleur, ce parfum qui me traverse et que je ne respire pas, cette poussière qui m’impregne mais que je ne vois pas, cette couleur qui est trace et non lumière. (BLANCHOT, 2003, p. 316).

Nessa linha de pensamento, nomear algo equivale a matar o ser, falar assume o estranho direito de tornar ausente o ser, de aniquilá-lo. “Nommer le chat, c’est, si l’on veut, en faire un non-chat, un chat qui a cessé d’exister, d’être le chat vivant” (BLANCHOT, 2003, p. 314). , Ao ser nomeado, o gato torna-se o ausente de todos os telhados, isto é, deixa de ser um gato, transformando-se numa ideia, contrariando a avidez de denotatividade reivindicada por Sartre em um momento de reflexão em meio às marcas do horror da guerra. Assim, a linguagem comum mata o gato e o ressuscita na ideia, restituindo-lhe as certezas que tinha no plano da existência (mamífero, quatro patas, rabo, bigodes, orelhas pontudas...), certezas muitas vezes mais estáveis do que o próprio ser, tornando-se inclusive certezas duradouras em alguns casos. Construções linguísticas, metafísicas. Para ficarmos tranquilos, seguremos as palavras, impedindo que elas retornem às coisas, para que nos mantenhamos senhores delas, sempre sãs e ao nosso inteiro dispor.
A linguagem mata pela possibilidade da morte, isto é, ela mata porque o objeto a que ela se refere está ligado à morte por um laço de essência: os seres morrem porque podem morrer.
Na linguagem da ficção a situação é mais problemática. O discurso literário é inquieto, contraditório, instável. Interessa-se pelo sentido, pela ausência da coisa, e quer alcançar o sentido nela mesma, por ela mesma (independente da coisa, que agora não tem existência mortal), visando à compreensão do que não se pode compreender. Aqui, gato não é apenas um não-gato, mas um não-gato-palavra que se ergue sobre o nada, uma realidade linguística determinada e objetiva. Essa é uma dificuldade e uma mentira, mas a missão do texto literário não pode se cumprir aí: apenas transpor a realidade do gato para a da palavra é pouco. Isso seria uma redução que ignora a impossibilidade de compreensão: a palavra é pouca para o tanto de verdade que contém. O nada luta e trabalha na palavra literária, tornando-se a ampliação infinita do sentido, ou seja, o tudo. O lacre se parte, o excesso de sentido, o deslizamento sem fim se desencadeia.
Não obstante, a literatura vai mais além: é a própria impossibilidade da morte. A figuração da morte como impossibilidade, às vezes mal-compreendida, é uma questão fundamental do pensamento blanchotiano: a escrita literária é algo fora do poder, da possibilidade. A morte confere sentido à existência, torna possíveis as coisas, porque possibilita o fim, prerrogativa do reino humano. Fim é objetivo, é busca dentro do finito, do que pode morrer. Ao proclamar a impossibilidade da morte na literatura, Blanchot quer enfatizar o caráter inumano do texto literário, por mais que se considerem as semelhanças que a literatura estabelece em relação ao mundo dos humanos, ou por causa mesmo desse dominó de semelhanças em sua relação especular infinita: a semelhança da semelhança da semelhança... até assemelhar-se a nada. Eis o neutro, o désœuvrement, o que não pode agir verdadeiramente no mundo real.
O escritor possui o infinito: o que parece abundância é sua grande carência. Carência de limites, de crenças, de regras. Assim, ele é condenado a escrever na falta, na negação, na incerteza, a proferir um discurso que nada diz, que recua diante da existência. Ao final do romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, quando o pseudo-escritor decide transformar sua pesquisa num romance, ele declara: “Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me restava, à falta de outra coisa” (CARVALHO, 2002, p. 157) . A expressão “à falta de outra coisa” é exemplar do que fala Blanchot em relação ao texto ficcional. Uma coisa é o infinito que não comporta compreensão, lógica, explicação; outra coisa é o mundo ordenado, explicado, com causas e consequências determinadas. Exatamente a falta constatada. Após mergulhar em uma pesquisa profusa, intensa, diversificada, as construções linguísticas foram-se acumulando, superpondo-se, inchando, dispersando, até que o finito escapou ao investigador, e quando falta o fim, só se pode fazer literatura. Era o que lhe restava.
Uma das figurações mais curiosas do romance de Carvalho emerge na cena final, quando o personagem-enunciador toma o avião de volta de Nova York, vencido pela impossibilidade de escrever uma história que tivesse sentido, que ensejasse a compreensão. Ele evoca então uma imagem que lhe ficara:

Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas civilizações, que os Nazca do deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos e as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os vivos. Virei para o outro lado e, contrariando a minha natureza, tentei dormir, nem que fosse só para calar os mortos. (pp. 167-168)

Atreladas a essa figuração, que aparece na última página do relato, há mais dois recortes importantes. Um deles é a declaração do enunciador Manoel Perna, cuja voz emerge do passado, na primeira parte da narrativa: “Era preciso que ninguém achasse um sentido. É preciso não deixar os mortos tomarem conta dos que ficaram” (p. 10). Para não deixar os mortos falarem, é necessário que a escritura não pare de falar. Na narrativa árabe, falava-se para não morrer, para afastar o pavor do desenlace, da conclusão; aqui, a morte da escrita também é rejeitada na fabulação romanesca. Se a morte definir a verdade, se a origem for restaurada, encerra-se a ficção. O outro é o temor do narrador que se diz jornalista de que sua ficção seja arruinada pela realidade:
O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a tivesse visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a história, o motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício risível. (p. 157)

A primeira imagem, a dos mortos de língua cortada, pressupõe o afastamento do discurso que poderia organizar o passado, dar um sentido à ação e apontar para uma conclusão. Para que a literatura fale, portanto, é necessário que os mortos sejam impedidos de declarar sua verdade, a verdade de quem presenciou os fatos, de quem estava lá. A fala do jornalista é antecipada por Manoel Perna, que logo no início relaciona o sentido das coisas à dominação dos mortos. Afinal, a própria existência do romance é colocada em risco pelo possível aparecimento da verdade que organizaria o texto e alinhavaria seu começo, seu meio, seu fim. A literatura existe para nada dizer, o escritor não fala para dizer algo, a ficção fala para não dizer nada, seu sentido não está na busca do que existe, mas em seu recuo diante da existência.
Tudo depõe em favor da incerteza, mas o leitor confia na seriedade do enunciador. Talvez pelo fato de que o autor cujo nome a capa do livro ostenta seja um jornalista, aquele que deve buscar o discurso da verdade, ou quiçá pelo fato de que o tempo todo o texto sinaliza com uma possibilidade encoberta de que tudo tenha um sentido, o leitor sempre espera o desfecho, o deslinde. Talvez a provocação produzida pelas marcas de incerteza que pontuam todo o relato aguce mais ainda a crença de que uma solução seja possível.
Essas marcas, entretanto, revelam uma atitude de franqueza de quem escreve, a evocar a todo momento a decisão sempre diferida, até o descortinar da última página, que sacramenta a indecidibilidade. Frustra-se o leitor, fracassa a história? É possível, mas salva-se a literatura, a exibir o vazio do que não existe, a desvelar a ficção, que se veste como se fosse uma espécie de ser, que recebe um nome, narra uma história e uma semelhança com o mundo real. E ergue-se de seus próprios restos, edifica-se de suas próprias ruínas.
O assunto do romance e seus desdobramentos possibilitaria a construção de uma narrativa que se levantasse de forma digna e inequívoca a respeito de questões etnológicas polêmicas, como a alteridade, o respeito às diferenças, a noção de superioridade e inferioridade entre os seres humanos. Isso faria do autor um homem honesto, aquele que escreve as verdades que sua civilização precisa ouvir. Carvalho poderia ter exibido toda sua probidade, mas preferiu embaralhar as verdades que obteve, ou consentiu sua embaralhação, optando por não lhes dar um fim. O autor não permitiu que sua honesta consciência se transformasse em sua honesta mediocridade, que certamente agradaria em cheio a um grande número de leitores. Segundo Blanchot, “l’œuvre de fiction n’a rien à voir avec l’honêteté: elle triche et n’existe qu’en trichant” (BLANCHOT, 2003, p. 189). O romance mora na mentira: se ela o salva, deita a perder a tese, e vice-versa.
Não obstante, não se pode dizer que o romance não tenha agradado a uma parcela do público leitor, e à crítica em geral, excetuando uma certa crítica moralizante que reivindica uma postura enérgica do escritor diante das verdades, uma postura sartreana, talvez. Pode-se dizer que o texto de Bernardo Carvalho tornou-se um romance cult.
No último ensaio dos Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco (2004, p. 233) diz que um dos motivos pelos quais Casablanca tornou-se um cult movie é a “desconexão” da obra, a fabulação sem relações aparentes de causa e efeito. Esse “desconjuntamento” se acentua pelo fato de que durante a filmagem os atores não sabiam para onde se dirigia a encenação, desconheciam seu desfecho, o que teria tornado, por exemplo, a atuação de Ingrid Bergman “encantadoramente misteriosa”.
Algo semelhante parece ocorrer com Nove noites, cuja escrita provoca no leitor uma sensação de que tudo se perderá e ao mesmo tempo lhe acena com uma esperança de que as coisas se resolvam. Talvez seja essa a maior virtude do romance, sua trapaça essencial: há uma tensão localizada na linguagem que, ao mesmo tempo em que sinaliza debilmente para uma resolução, por meio da busca incessante do enunciador vivo e da expectativa criada pelo narrador morto, encaminha-se irresolutamente para a dispersão.
Afinal, a obra nega a substância do objeto que representa, e assim faz-se literatura, em meio a incertezas e recuos. O romance inicia com o depoimento de Manoel Perna, que se dirige a alguém a quem se destina um escrito que ninguém nunca leu: uma das últimas cartas redigidas por Buell Quain, de posse do engenheiro, que ele nunca teve coragem de remeter. Enviara apenas um bilhete cifrado ao receptor, procurando dar a entender que possuía a chave do enigma, e que ela só seria entregue ao verdadeiro destinatário.
A primeira frase do romance encerra uma ambiguidade de conteúdo e de receptor: "Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios" (p. 7). A lógica da narrativa autoriza esperar que o interlocutor seja esse ser misterioso a quem se destinava uma missiva, que conteria a solução do suicídio — ou crime —, embora a mensagem do missivista instaure a não-resolução. Além disso, não é demais considerar a própria ficção uma terra que embaralha os limites de verdade e mentira. Perguntar aos índios equivale a ter uma confirmação da instabilidade dos sentidos, equivale ainda a deparar com “a incerteza mais absoluta”. Para isso ele lega ao “você” seu testamento, assim como o escritor deixa ao leitor a escritura romanesca:
Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de interpretá-las. (p. 8)

A escritura é o imponderável, a precariedade dos relatos incertos e das traduções traidoras. Paradoxalmente, imponderabilidade, precariedade, incerteza e traição exigem a confiança do recebedor — em si mesmo? no discurso que ouve? no enunciador do discurso? no código utilizado? A ausência do complemento nominal adensa a indeterminação. Se tudo o que cerca o discurso inspira desconfiança, onde se situaria essa confiança necessária à interpretação dos fatos? O que parece à primeira vista o mais provável depositário da confiança — o ouvinte interessado, o que se diz jornalista — revela-se o menos confiante, o menos capaz de montar os fragmentos contraditórios e incertos.
O outro, o engenheiro, é um ouvinte hesitante, que ouve principalmente as histórias de Buell Quain, invariavelmente embriagado de álcool, durante as noites em que se encontraram. “O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites” (CARVALHO, 2002, p. 47), disse Manoel Perna, mantendo a narrativa na escuridão das nove noites, negando-lhe a possibilidade de vir à luz. Ele mantém em seu poder o texto que ninguém nunca leu, uma carta em inglês escrita pelo etnólogo morto, destinada possivelmente ao fotógrafo amigo de Quain, de conteúdo desconhecido até dele mesmo, que não consegue ler e não tem coragem de pedir a ninguém que o faça.
De tanto buscar, o que se diz jornalista é o ouvidor por excelência, o narrador da contemporaneidade. É longa a lista dos que ele ouve. Inicialmente, ele lê o artigo que menciona o nome de Buell Quain, cujas cartas e depoimentos ele vasculhou cuidadosamente. Ele ouve ainda a antropologa que escreveu o artigo em que menciona a morte de Quain; a filha da antropologa Maria Júlia, que havia flertado com Quain; uma moça que lia livros para os velhos no asilo; o professor Luiz de Castro Faria, que integrou a expedição de Lévi Strauss, e que conhecera BQ; o próprio Lévi Strauss, em entrevista em Paris; o rapaz que lia histórias para o velho fotógrafo na enfermaria do hospital; os filhos de Manoel Perna, Francisco e Raimunda; o filho do fotógrafo nos Estados Unidos; e, sobretudo, ouviu sua própria memória, da infância à idade adulta recente, aparentemente tentando atar as pontas das histórias, ou simulando a tentativa. Ele ouve também textos literários que não o auxiliam muito em sua tarefa: Drummond, Francis Ponge, Herman Melville, Joseph Conrad. Não há pontas nem retalhos a serem atados, o texto caminha para a errância. Outra audição importante: ele ouviu o som de um nome que desencadeou a demanda.
Uma questão permanece indeterminada: teria ele ouvido Manoel Perna? Ele afirma ter lido a carta que Quain escreve a Manoel Perna, a carta que Perna escreve a Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional. Mas a pergunta que não tem resposta é: teria o relator que se diz jornalista, o investigador do futuro, lido o depoimento de Manoel Perna que faz contraponto com o dele próprio nas páginas do livro? Considerando que a diferença de tempo entre as duas escritas é de pelo menos meio século, o leitor tem a tendência de considerar o depoimento de Perna como uma espécie de relato auxiliar, que de alguma forma teria chegado ao narrador jornalista para deitar luz à sua investigação. Entretanto, esse relato noturno, que inclusive dá nome ao livro, não vem à luz, nem como possibilidade de desvendamento do caso, nem como texto de suporte ao jornalista: os filhos de Manoel Perna “garantiram que ele não deixou nenhum papel ou testamento, nenhuma palavra sobre Buell Quain” (p. 134). Numa inversão surpreendente da situação da carta a cujo conteúdo ninguém teve acesso, o que é algo mais plausível, temos agora todo um texto que contraponteia com outro no romance e que jamais foi escrito; sua inexistência é inclusive assumida pelo narrador-jornalista. Nesse momento, o leitor descobre atônito que, mesmo que Manoel Perna venha a desvelar de alguma forma em sua carta-testamento o segredo da carta não-lida, ou qualquer informe esclarecedor, tal depoimento não valerá de nada, o que provoca um duro golpe em suas esperanças; ele, que, apenas ele, tem acesso às palavras de Manoel Perna.
Conclui-se então que boa parte da narrativa, a que tem como enunciador o engenheiro de Carolina, é desautorizada pela própria ficção. A incerteza, entretanto, não se restringe às fantasias discursivas do ex-amigo de Quain. O próprio jornalista inicia seu discurso com a seguinte fórmula (e a repete pelo menos mais quatro vezes durante o seu relato): “Ninguém nunca me perguntou. E por isso também nunca precisei responder” (páginas 13, 27, 60, 134, 136). As frases expressam a indiferença de quem fala: não há perguntas, não há necessidade de respostas. Negligência típica de quem faz literatura, essa declaração contrasta com o esforço do investigador que busca a verdade, que tenta unir as peças que montarão seu quebra-cabeça, que se lança a aventuras que não desejava viver, seja no meio dos índios Krahô, seja nos Estados Unidos, para compor uma verdade, que acaba tornando-se ficção.
O que impulsiona a escrita num primeiro momento é a dúvida, a curiosidade em relação a uma história que se revelará extraordinária. O enunciador diz que a antropologa supôs que ele ia escrever um romance, e ele não a contrariou, o que sugere que ele não tinha muita certeza sobre o gênero textual que estaria compondo. É uma escrita que “independe” de quem a escreve; há papéis, contatos, a montagem de um quebra-cabeças e a criação de uma imagem. Que imagem é essa que a montagem do quebra-cabeças cria? Fiel? Inventada? Mistura de ambas as coisas? A julgar pela maneira dúbia e hesitante como essa imagem escrita se constrói, pode-se dizer que é mais criação do que reconstituição: é uma “combinação de acasos e esforços” que têm como ponto de partida um nome dito em voz alta, pronunciado na voz do enunciador, mas certamente ou um sonho ou um entendimento ou uma certeza de já tê-lo ouvido antes.
A palavra pronunciada nomeia o objeto da investigação, e se apresenta como um signo instável, a começar pela mobilidade do significante: Buel Quain, Bill Cohen, Quain Buele, Cãmtwyon, Cowan...
O narrador coleta uma enxurrada de informações sobre o antropólogo morto, com definições precisas, mas a todo momento, sobrevém o incerto: a mãe era uma mulher aflita, as cartas a Heloísa Alberto Torres denunciam uma “estranha ansiedade” e um suposto temor de que alguém a conhecesse e a descobrisse; Quain teria tido uma doença misteriosa; há várias cartas que não foram localizadas pelo que se diz jornalista, os colegas de Columbia especulam se teria sido assassinato ou suicídio. Nada disso é esclarecido no romance. O jornalista transcreve trechos de uma carta de Manoel Perna a Heloísa Alberto Torres que falam em “fontes que reputamos certas” para atribuir o suicídio do etnólogo a razões familiares. E, na carta, Perna dá a entender que as fontes certas são os depoimentos dos índios que conviveram com Quain, o que contradiz o próprio testamento-fantasma do engenheiro, em que ele afirma que a memória naquele lugar não pode ser exumada, que ali não existia verdade, ou que as verdades eram múltiplas, portanto instáveis.
No quinto texto do romance, o que se diz jornalista apresenta uma foto em que todas as pessoas, quase todos mortos, tiveram alguma relação com Buell Quain, e levaram suas verdades para o túmulo, contribuindo para as indefinições acerca do homem e de sua história. A memória de um dos poucos vivos que conheceram o etnólogo americano, o professor Luiz de Castro Faria, contribui pouco para a pesquisa, sujeita a “distorções das impressões subjetivas, como a de qualquer um” (p. 32). Isso inclui, evidentemente, o próprio jornalista, o Manoel Perna, os índios e todos aqueles — cientistas ou não — que discursam nessa escrita. Tudo o que se diz no romance, portanto, está sujeito às distorções da memória.
A memória distorcida do que se diz jornalista também é convocada, e ele relata sua experiência de criança entre os índios, em companhia de um pai devasso e aventureiro. Há uma casa verde-vômito, metáfora do inferno verde, uma estrada que não leva a lugar nenhum, como a buscar uma saída, um caminho para onde não se sabe, como essa escrita que nunca sabe aonde vai dar, e parece não ter saída, como a própria existência dos índios. A pior condição é a única possível, só se realiza no risco, longe do conforto da civilização, empurrado para os confins do possível escritural.
Um momento exemplar da indeterminação dos sentidos da palavras e, por extensão, da ausência de sentido sistematizado da narrativa é o esforço do que se diz jornalista de descobrir por que os Krahô chamavam o etnólogo norte-americano de “Cãmtwyon”. Um casal de índios mais bem informados

disseram que "twyon" queria dizer lesma, o caracol e seu rastro. O antropólogo já havia me dito que "cãm" era o presente, o aqui e o agora, mas ninguém conseguia saber o sentido da combinação daquelas duas palavras. O antropólogo me explicou que, ao contrário do que costumam pensar os brancos, os nomes dos índios nem sempre querem dizer alguma coisa e sobretudo nada têm a ver com a personalidade da pessoa nomeada. (p. 80).

O narrador completa dizendo que os nomes “Fazem parte de um repertório e são atribuídos ao acaso”. Como na literatura, o significante não tem que conduzir necessariamente a um significado lógico. O escritor, entretanto, como jornalista civilizado, não se pode deixar conduzir pelo acaso, e decide atribuir ao nome um significado que ele elegeu, para que se produza uma lógica, um sentido. "Cãmtwyon" tornou-se para ele, numa interpretação paradoxalmente “selvagem e um tanto moral”, a casa do caracol e portanto “seu fardo no mundo”, e ao mesmo tempo seu abrigo, do qual só se pode livrar com a morte.
A entrevista que o investigador teve com o velho Diniz, índio krahô que conhecera Quain, não ajudou mais do que as outras peças da pesquisa. Segundo ele, havia várias distorções entre a versão do velho índio e a versão oficial (que não se sabe exatamente qual é). Na aldeia krahô, a confusão entre relato jornalístico e ficção se acentua. Para se justificar perante os índios, ele insistia que estava escrevendo um romance, por isso queria saber sobre a vida do antropólogo morto. Diante da preocupação dos índios, principalmente os mais velhos, de que o passado fosse remexido daquela forma, ele tentava convencê-los — e a si mesmo — de que “seria tudo historinha, sem nenhuma consequência na realidade” (p. 95). O índio Leusipo, principal questionador do visitante, não entendia e não queria entender o que significa ficção, romance, historinha. Num símile infeliz, o romancista chegou a comparar a ficção dos brancos aos mitos dos índios, mas nada disso explicava a necessidade de revolver o passado.
Afinal, que demanda é essa, para que serve essa viagem ao meio dos Krahô? O narrador viaja a um lugar que ele detesta, que representava para ele, desde a infância, um inferno, só para escrever um romance? Buscar material para uma ficção justifica buscar o sofrimento? Ou ele queria saber como Buell Quain havia sofrido entre os Krahô, e conhecer esse sofrimento é fundamental para escrever um romance? As causas são frágeis, pouco consistentes...
Ao final, a ficção se assume definitivamente. O que se diz jornalista faz um breve resumo da vida de Manoel perna, e enfatiza a declaração de seus filhos de que o pai não havia deixado nada escrito sobre o amigo Buell Quain. Em seguida, conta uma relativamente longa história da vida e da morte de seu pai, para estabelecer uma coincidência interessante que poderia ainda ser uma pista para descobrir algo sobre o etnólogo: na mesma enfermaria em que seu pai agonizava, havia um norte-americano de oitenta anos que morria de câncer. Esse norte-americano, que dizia esperar alguém, era o fotógrafo que havia sido amigo de Buell Quain na juventude, e a pessoa esperada supõe-se que teria sido o próprio Quain. Em sua imaginação, o velho viu na pessoa do que se diz jornalista quem ele estava esperando. E o chamou de “Bill”: "Quem diria? Bill Cohen! Até que enfim! Rapaz, você não sabe há quanto tempo estou esperando" (p. 146). Em seguida, morreu. Muitos anos depois, ao ler um artigo de jornal que falava em Buell Quain, ele associou o nome às palavras do velho que morrera diante de si numa cama de hospital. Ele então segue a pista do velho norte-americano e consegue achar um filho seu nos Estados Unidos.
Nesse momento, o que se diz jornalista ainda mantinha a esperança de saber fatos, verdades, informações sobre o antropólogo suicida:

Tudo o que eu precisava era do teor de uma suposta oitava carta, além das que o etnólogo enviara ao pai, a um missionário e ao cunhado antes de morrer (por que não teria escrito antes à irmã? Ou teria escrito uma oitava carta à irmã?), e de um eventual diário que, segundo a mãe, ele sempre mantinha. (pp. 153-154)

Ele então tenta buscar na Internet, em vão. Quando entabolava entendimentos para contratar uma produtora de TV de uma grande rede norte-americana, uma pessoa que tinha fama de “desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir” (p. 155), houve os ataques aéreos às torres do World Trade Center em Nova York, e o contato se desfez. Em seguida escreve mais de cento e cinquenta cartas “para todos os Kaiser e Quain que encontrei na lista telefônica de Chicago, de Portland e arredores, no Oregon, e de Seattle” (p. 155). Tudo em vão. Além do mais, era a época em que os correios norte-americanos estavam inundados de cartas com bactérias assassinas. Tornava-se cada vez mais difícil a “um estranho e duvidoso jornalista da América do Sul” (p. 155) aproximar-se de norte-americanos normais por vias normais. A última cartada seria então o filho do fotógrafo, cujo endereço ele possuía. O contato por correspondência foi cordial, mas o norte-americano recusava-se a recebê-lo.
Eis o momento em que o jornalista parece admitir a ficção como incontornável:

Àquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado, com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando já fosse tarde, com a pesquisa terminada e o livro publicado. Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me restava, à falta de outra coisa. (p. 157)

Estranha declaração essa. Há uma “obsessão sem fundo”, uma “curiosidade mórbida” que impede o jornalista de se libertar da realidade e assumir sua ficção. E o mais estranho é que a obsessão doentia é provocada pelas verdades dos papéis deixados por pessoas então inexistentes, o que deixava o candidato a escritor num “estado difuso”, num “poço de suposições não comprovadas” (p. 158). O “suposto romance” ainda não havia começado a ser escrito, porque todos os escritos que gravitavam em torno dele estavam por demais colados ao real, mas um real de papel. Outro fato estranho é que o antídoto para a doença que impedia a escrita seria, no entender dele, o escancaramento da realidade com a visão de um rosto, e o rosto eleito tinha sido o de Schlomo Parsons, filho do fotógrafo. Esse desvelamento da realidade seria a segurança de que a própria realidade não compareceria para explicar o inexplicável, e o jornalista toma o avião em busca do rosto:

Tomei o avião para Nova York com pelo menos uma certeza: a de que, não encontrando mais nada, poderia por fim começar a escrever o romance. No estado de curiosidade mórbida em que eu tinha me enfiado, acreditava que a figura do filho do fotógrafo podia por fim me desencantar. (p. 158)

Ele precisava, então, da certeza de que seu escrito permaneceria na incerteza, isto é, permaneceria ficção, sem as verdades que só viriam estragar a escritura. A falta e a negação precisam ter sua condição assegurada para que o livro se faça, o recuo diante da existência não pode ser ameaçado pela existência.
O escritor, então, marca data para o começo do romance: “A ficção começou no dia em que botei o pé nos Estados Unidos” (p. 158). Daí em diante, nada mais pode ser considerado verdade: “Eu podia dizer o que quisesse, podia não fazer o menor sentido, só não podia dizer a verdade. Só a verdade poria tudo a perder.” (p. 161)
Schlomo Parsons contou sua história, mostrou fotos, mostrou o rosto, que em determinado momento, numa “espécie de alucinação”, o jornalista achou parecido com Buell Quain. “Aos poucos, a história começava a se descortinar à minha frente” (pp 161-162). Pode-se supor que a palavra história aqui se refira à ficção, à escrita literária, que finalmente parecia ter-se libertado da realidade, que não apareceria mais para incomodar. As línguas dos mortos pareciam então definitivamente cortadas e amarradas em saquinhos invioláveis para que a literatura pudesse aparecer em toda sua exuberância, sua inutilidade.
O jornalista perde sua reportagem, o escritor ganha um romance.
Guardadas as línguas da realidade, fecha-se o romance que havia acabado de começar. Após o texto, o escritor cujo nome está na capa ainda se dá ao trabalho de fazer uma ressalva desnecessária, explicando o óbvio, talvez por insistência dos advogados das editoras, sempre preocupados com o grau de interferência que a ficção pode produzir no real: “Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação — como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta” (p. 169).
A cautela jurídica se reafirma ao final da seção “Agradecimentos”. Após citar uma série de pessoas da vida real que de alguma forma ajudaram o escritor a levantar dados para seu livro, novamente comparece a obviedade: “Nenhuma dessas pessoas tem responsabilidade pelo conteúdo ou pelo resultado final da obra” (p. 179).
Certamente, ninguém tem responsabilidade pelo resultado final, simplesmente porque não há um resultado, não há nada que se permita compreender pelo poder civilizatório da morte. Se a morte é a possibilidade de sentido, cortar as línguas dos mortos é colocá-los no reino do silêncio, no domínio da impossibilidade, onde a conclusão é a ausência de qualquer conclusão.



Abstract
The novel Nove noites, by Bernardo Carvalho, interlaces death and writing in an intriguing narrative, evidencing the tenuous limits between reality and fiction. The journalist that narrates the story looks for the actual facts obstinately, but from a certain moment on, he realizes that reality menaces fiction, despite the reader's expectations that truth be revealed. The writing, however, goes on uncertain, unsettled, driven by non-reliable narrators, hesitant among truth and lie, real and fiction, ending in the question of death as impossibility of saying and also of silencing.

Key words: fiction and reality, writing and death, impossibility of saying and silencing


Referências

BLANCHOT, Maurice. La part du feu. Paris: Gallimard, 2003.
CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MALLARMÉ, Stéphane. Igitur, divagations, un coup de dées. Paris: Gallimard, 2003.
SARTRE, Jean-Paul. O que é a literatura? São Paulo: Ática, 2004.
CONVERSANDO AOS INFINITOS UM RETRATO DE CAVALO
Cid Ottoni Bylaardt
Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará


A instigante indeterminação da escritura anuncia-se já na epígrafe:
O que um dia vou saber,
não sabendo eu já sabia.

Da Espereza

(ROSA, 2001, p. 188)

O pequeno texto de abertura lembra o saber da escritura de Rosa, a escritura da terceira margem, a escritura da outra margem de Roland Barthes, o saber da escritura segundo o semiólogo francês. Esse é um saber que não se fixa, que não se sabe, o que um dia será conhecido paradoxalmente já se sabia. É o saber de quem escreve, e também o de quem lê. Essa é a escritura rosiana, sua linguagem poética, cifrada, ambígua. Esse é o saber anunciado no dístico, o saber da "espereza": espera desejante do que já se sabe e nunca se soube, da verdade literária que, revelando-se a todo o tempo, não se revela.
A epígrafe envia a outra possibilidade: a perplexidade de Bio, o agouro. O terrível retrato provoca sentimentos contraditórios: ódio, fascínio, desconfiança, um incômodo indescritível. O presságio de Bio lhe dizia que algo de bom não adviria daquele retrato.

Temos, portanto, um retrato: escrita, representação. Temos também uma narrativa, escrita do retrato, representação da representação.
Para Bio, aquele retrato era de uma tristeza incalculável: “setenta-e-sete vezes milmente” (p. 188), com todos os sortilégios que o sete e seus múltiplos podem proporcionar. Retratar o cavalo foi ato autoritário, arrogante, como roubar ao dono da faca a bainha. O cavalo era propriedade de Bio, seu legítimo possuidor; o mesmo não se podia dizer do retrato, “o trem alheio, difugido” (p. 188), imagem que se arrancava do ser e passava a existir como duplo inconveniente do querido retratado. Sem dúvida, a foto extrai do objeto aquele momento único, que se flagra e imediatamente morre. Para completar a inadequação, a representação de uma moça, a que namorava o patrão, abraçada ao pescoço do seu cavalo, moça urbana a posar de fazendeira.
Pior do que ser a duplicação inexata e incômoda, a figura certo tinha roubado ao objeto representado algo de sua virtude, de sua integridade, e esse furto, parente da mentira, parecia trazer a contraparte do azar, algo de estranho pairava sobre a reprodução figurada. “Ele não podia impedir que aquilo já tivesse acontecido” (p. 188). A possibilidade de reverter, rever, revisar inexiste, aquele é o momento único, sem precedente nem sucessor, que a fotografia reproduz ao infinito. Eis o incômodo. Nas palavras de Barthes, em suas reflexões sobre a fotografia, a constatação:

Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a foto), em suma a Tique, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável. (BARTHES, 1984, p. 13)

Além da irreversibilidade do momento, incômodo adicional é a semelhança com o referente. Bio sabe que a foto não é o cavalo, por mais que se afigure seu duplo tautológico, sua similitude desconcertante. Por mais que a redundância intransigente do retrato lhe dê a condição de cachimbo reconhecido, há uma voz sábia que diz a Bio: Isso não é um cavalo. O referente está ali, “alvo no meio dos verdes que pastando” (p. 188), em sua real beleza, mesmo quando essa realeza é maculada por algum defeito que o torna algo “declinado entortado” (p. 189). Defeituoso mas vivo, cavalo verdadeiro, sem mentira. O animal e sua reprodução se comparam nas dúvidas: “Vistoso mais que no retrato, ou menos, ou tanto? Era muito um cavalo”. O que os distingue, portanto, não é da ordem da beleza, Bio não sabe dizer quem é mais bonito, o cavalo ou a foto, embora sua relação com aquele seja de amor e com esta de desconfiança, para não intensificar o sentimento por ora. A diferença maior está na posse: o cavalo é seu, propriedade inquestionável, o retrato não.
A desconfiança do vaqueiro, convenhamos, não exclui uma espécie de atração irresistível. Bio precisa ir à sala de Iô Williãozinho ver seu bicho reproduzido. O retrato era “moderno, aumentado, nas veras cores, mandado rematar no estrangeiro por alto preço, guarnecido de moldura” (p. 189). As condições de fabricação e acabamento da foto sugerem refinamento, luxo, dispêndio, tudo feito com método.
Essa “regrada representação”, o realce das luzes, a alvura do figurado, sua pose de prepotência a desafiar o mundo com o olhar soberbo, davam-lhe uma aura de arte clássica, em seu equilíbrio, harmonia, idealização do belo que se embeleza e lhe dá um aspecto gigantesco: “cavalo de terrível alma” (p. 189).
A representação lingüística da representação figurada contribui para desfigurar mais o objeto sortílego, pondo em seu lugar o ser de maior grandeza, hodierno, com ar de coisa nova ainda não completamente assimilada, mas que de alguma forma obscurece o referente, fora de nosso tempo, assim como fora de nosso espaço, por devidamente emoldurado no exterior, não com moldura qualquer, mas rico caixilho que enquadra e dá fim e acabamento a uma obra de valor. Está lá, rica e em paz. O que chega a incomodar é que a imagem se apresenta em “veras cores”, não certamente as cores que imitam o real, mas as que se podem ver como mais verdadeiras, mais vivas do que o próprio real, de tão impressionantes e definitivas, o que se confirma adiante nas brincadeiras de mau gosto do fazendeiro, para quem o retrato tem muito mais brilho do que o cavalo real. As imagens, do cavalo e da moça, eternizar-se-ão, sobrevivendo aos seres em remissão, desfeitos segundo sua imagem. Evoca-se novamente a alma terrível do que não tem alma, mas que a impõe ao espectador, considerando-se a obviedade de que o ponto de vista da narrativa, embora de terceira, é o de Bio, são seus os sentimentos despertados pelo confronto das situações, sentimentos seus que se amalgamam aos do leitor, todos espectadores do quadro e da escrita.
Bela, a reprodução? Sim, sem dúvida, mas não era ela “uma outra sombra, em falsas claridades?” (p. 189). Aí a dúvida do vaqueiro, de admirar a beleza da foto, mas não reconhecer nela a autenticidade de seu animal, uma verdade falsa que se exibe naquele belo parado e acabado, imagem estabelecida pelas regras do bem figurar e do bem arrematar na rica moldura. Quietude que inquieta Bio. Sobre a imagem um vidro que espelha as claridades, a bela descrição, todas as coisas em seu lugar, nada sobra e nada falta, tudo encaixadinho, “sem perder espaço” (p. 189), a bela figura do cavalo no centro. E na pose, olhando para a câmara e vendo “alguma autoridade maior de respeito” (p. 189) que preside toda a cena e torna seu cavalo um monumento universal — ele, Bio, excluído de tal grandeza.
Possivelmente excluído, mas certamente fascinado. Podia ser aquela figura a sombra falsa, a imitação desigual engrandecedora, mas havia nela a atração irresistível, só não suplicava explicitamente a posse do retrato por guardar a hierarquia. Iô Wi era o patrão. “Bio olhava-o com instância, num sussurro soletrante” (p. 189). O locutor resume no abstrato “instância” os sentimentos contraditórios de Bio em relação ao quadro. A palavra sugere fidelidade em sua solicitação insistente e involuntária, impossibilidade de se separar da imagem que em si é separação, aquilo que o aparta do ser que pasta em segurança, mas que é da mesma forma indefinível reencontro. Sugere ainda o empolgante contato que se impõe ao expectador, imagem que lhe captura o olhar na iminência do acontecimento notável. Outra prova do fascínio é o “sussurro soletrante”, que atesta a impossibilidade de atribuir sentido àquilo e, conseqüentemente, testemunhá-lo analiticamente, restando o balbucio do que não se revela. Bio não consegue ver ali seu cavalo, mas um ser que exerce sobre ele um fascínio poderoso, tornando a possibilidade de ver o seu objeto querido em impossibilidade de definir o acontecimento. Conforme diz Blanchot em suas reflexões sobre a imagem e a literatura,
Le regard trouve ainsi dans ce qui le rend possible la puissance qui le neutralise, qui ne le suspend ni ne l’arrête, mais au contraire l’empêche d’en jamais finir, le coupe de tout commencement, fait de lui un lueur neutre égarée qui ne s’éteint pas, qui n’éclaire pas, le cercle, refermé sur soi, du regard. (BLANCHOT, 1999, p. 29)

O olhar de Bio, na perspectiva blanchotiana, é “le regard de l’incessant et de l’interminable” (BLANCHOT, 1999, p. 29) . Assim, ele não pode ver ali o seu cavalo, o objeto real, verdadeiro, mas uma coisa confusa em sua bela definição. Confusa porque, não sendo seu animal, não pode ser tão querida quanto ele; portanto, pela lei da fidelidade do sentimento não poderia ser tão bela quanto ele; no entanto, provoca-o, insulta-o, deixa-o sem palavras, sem explicações. Aquele ali não é o seu cavalo, mas a semelhança é tão próxima em sua diferença que essa imagem só pode provocar aquela sensação incômoda e indescritível de descrença e arrebatamento. A sensação não é boa nem é ruim, não dá a conhecer nem elimina o conhecimento, não edifica nem arruína; não obstante, resta o fascínio, que não se define por contrários ou sua ausência.
Não custa ver no retrato do cavalo e no “Retrato de cavalo” a imagem da própria escritura, o fascínio do desconforto, do que não se dá a entender, não se explica nesse “eu” de nenhum ou de muitos rostos. Não há permanência, o agora é um tempo da ausência de tempo, o aqui é o aí sem lugar nem repouso. A escrita suspende-se e aponta para a dispersão.
No ensaio “Les deux versions de l’imaginaire” (1999, p. 341), Maurice Blanchot faz considerações sobre a imagem e o imaginário que podem ajudar-nos a pensar no dilema de Bio e na escritura de Rosa. Há um movimento da imagem que leva à felicidade, ao apaziguamento; essa é a humanização do imaginário, própria à arte clássica, onde encontramos “l’eternité transparente de l’irréel” (1999, p. 342) . No fundo da imagem, porém, reside o “lourde sommeil du trépas” (1999, p. 342) , que nos traz os sonhos, e com eles a indeterminação da escritura, da figura, que não propicia mais um chão firme para se pisar, uma luz que traria ao pensamento a lógica do mundo. Nesse sentido, o retrato do cavalo faz lembrar o que Blanchot denomina “la ressemblance cadavérique” (199, p. 346) , em que o defunto se torna mais grandioso do que seu referente vivo, a grande imagem clássica daquele que em si não é tão grande assim. O que era vivo e agora é morto perde sua utilidade, fazendo com que o objeto apareça: ao perder a função que o ser vivo tinha e que o fazia desaparecer como objeto, o morto faz aparecer o que se entregou à imagem descartando-se do útil. Da mesma forma, a imagem de um objeto não conduz ao seu sentido, à sua compreensão, se se considerar a verdade do mundo, como o não-cachimbo de Magritte.
Esses dois movimentos fundamentais da imagem embaralham a mente de Bio. De um lado, a difícil transposição da figura para a verdade do mundo; de outro, a incômoda eternidade do signo que não tolera começo nem fim. De um lado, a possibilidade de compreensão, de recuperar ainda que de forma imperfeita o original, “sa négation vivifiante” (1999, p. 353) ; de outro, o horror da impossibilidade, a neutralidade que não autoriza um sentido. Não autoriza porque, da apresentação à retenção, paira sobre o retrato um fantasma desprovido de futuro, portanto sem passado nem presente, a imobilidade viva e indecomponível.
A inconciliação desses níveis do imaginário faz aflorar a questão da ambiguidade. No mundo, ela é o que possibilita a compreensão, a partir do esforço dos seres humanos de se fazerem entender. Em outra dimensão, e essa é o domínio da escritura, ela vacila entre o que remete ao mundo e tenta adequar-se a suas verdades, e o que é pura fascinação e escapa à compreensão; entre o que nos permite ter acesso às coisas e o que nos atormenta com o inacessível. Essa ambigüidade da escritura é o que faz com que aquilo que é sem entendimento pareça ter sentido.
Tanto a semelhança quanto a ausência são profundamente angustiantes para Bio, que se debate entre ter e não ter o retrato, querer tê-lo ou não, e ter a única certeza de que Iô Williãozinho não se dispõe a desfazer-se dele, mesmo porque, agarrado ao pescoço do animal representado, está a figura de sua amada, cara limpa e sonsa, amor inseparável, assim como inseparável dela está o belo animal figurado. Como cindir a cena sem romper a harmonia do clássico? O patrão desdenhava brincando do referente: o retrato era mais reluzente, mais portentoso do que o animal vivo ali no pasto. Essa fala adoecia mais o proprietário do corcel, fazia mal a suas dúvidas, o nefando discurso só podia ser atribuído ao desejo de machucar seu amor pelo bicho.
É preciso tornar o cavalo um objeto de uso, para experimentá-lo no reino das possibilidades. Este é o momento em que o cavaleiro pela primeira vez monta seu animal; até então, ele era todo cuidados em relação ao cavalo, nos carinhos e nos tratos. O seu ódio às palavras do patrão exigiam que montasse, que se apoderasse da montaria. Esse cavalgar não era nem por esporte nem por prazer, era um ato, um ato absoluto de posse, que a propriedade do retrato jamais permitiria.
Cumpre examinar as palavras com que o narrador se refere ao acontecimento: montar o animal é obedecer ao “comum preceito, uso” (p. 190). Assim como a imagem cadavérica distancia-se do ser vivo pelo desuso, seu cavalo até então tinha algo de cadáver, ser de adorno “xerimbabado” (p. 191), por cumprir beleza apenas, como se retrato fosse. Se em beleza não era possível seu querido bicho competir com a imagem produzida no luxo, apossar-se dele no uso faria dele o ser que o retrato não poderia ser. O uso, o preceito, o normal enquadra os seres no mundo das coisas compreensíveis, e assim Bio começa a entender o que aquele animal significa, para que serve um cavalo, e atina com a necessidade de que a cópia seja destruída: “Era um demais de cavalo” (p. 191). O que sobrava era o do retrato. O único que poderia conversar com ele sobre o animal seria o falecido Nhô da Moura, que tinha poderes meio mágicos sobre o corcel, e tinha também a compreensão do significado dele. Mas conversar com Nhô da Moura equivaleria a tê-lo vivo, e se vivo estivesse seria ele e não Bio o dono. O falecido ajudá-lo-ia a ter a compreensão da existência do bicho, o significado do animal, mas nesse caso o sentido roubar-lhe-ia o bem.
Montar o cavalo, ter sua posse era uma maneira simbólica de destruir o outro, o demais. Mas o símbolo não bastava. Bio se enche de coragem e enfrenta o desafio de eliminar a odiosa cópia que se fazia bela para diminuir seu vivente, como um Dorian Gray rural às avessas.
Daí o desencanto para atrapalhar o que parecia determinado no vaqueiro: a moça rompe o noivado com Sêo Williãozinho, renuncia ao uso que dela se faria no casar e cumprir destino de gente à luz do dia, do que se compreende. O “viso” da bela arte, entretanto, guardava certamente uma porção da alma dela, não apenas sua aparência, a moça anterior ao retrato haveria de padecer remorso, é o máximo que Bio poderia sentir em relação à inesperada abdicação.
Nem assim Iô Wi se desfaz da imagem, é possível que agora é que ele não se desfaça mesmo dela, o quadro ia ficar no lugar do coração a “conferir saudades” (p. 191). Bio desiste de destruir o retrato, bem como abdica de sua posse, que posse mesmo ele teve foi no lombo do macho.
Em “Palhaço da boca verde”, Ruysconcellos parte em dois o retrato em que a amada Ona Pomona aparece ao lado da amiga Mema Verguedo. Inadvertidamente, joga fora a metade que figurava sua Ona; o destino, também inadvertidamente, o conduz aos braços de Mema e à morte. Ele, que não queria mais ser palhaço, que alimentava a esperança e o desejo de rever Ona Pomona, ao constatar o erro do retrato, percebe o absurdo do espelho “em que a imagem da gente se destrói” (p. 172). Ao arruinar a imagem da mulher que ama no retrato, deforma a si mesmo na imagem do espelho: “deu-lhe o pó da palidez, esverdeando-se por volta dos lábios” (p. 172).
Em “Retrato de cavalo”, o aniquilamento do retrato também está relacionado com a morte e a transfiguração do ser. Em meio ao sonho em que destruía o retrato, o mentiroso figurado permaneceu soberano enquanto o verdadeiro cavalo morria. Havia caído, tinha rolado de “um barranco à-toa” (p. 192). É curiosa a ambigüidade que o cavalo carrega: belo, lavado, mimado, infenso ao uso, o que o mata é o uso, de cair de um barranco comum, sobrepujável por qualquer outro animal, principalmente por um cavalo. No entanto, era “Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira” (p. 192). A hesitação entre a beleza e o uso provoca a morte.
O cavalo não tinha mais jeito, morto estava; que o patrão se acautelasse, porque a moça ainda estava viva, na negação vivificante do retrato. A Bio é oferecido o retrato, ele não o aceita mais, a impessoalidade fria do belo artefato não pode consolar seu coração, bem como não pode refletir a agonia de seu cavalo, a dor que o sofrimento do outro lhe causou. O sofrimento não se esquece, a memória obstina-se, “conseqüência da vida” (p. 192).
Consideremos então que o retrato não é conseqüência da vida, é apenas artefato de beleza, que tem vida própria e, no momento, indesejada. Uma verdade mentirosa que remexe o sofrimento. A única sala que podia receber o suntuoso retrato era a de seu Drães, “vivenda em apalaço” (p. 189), única que superava a riqueza de Iô Wi; assim se decidiu: o retrato da dor enfeitaria o luxo do vizinho abastado, para viver sua glória impessoal, para cumprir sua sina de obra de arte sem uso, deixando de ser retrato para se tornar imagem, conforme a concepção de Walter Benjamin, em “Pequena história da fotografia” . As ambigüidades recrudescem.
Na epígrafe final, a escritura da instabilidade do signo, a outra verdade indizível e indesejável, a verdade da morte, da separação, da perda, a que provoca sofrimento. Essa é a verdade que faz sofrer; uma vez que provoca dano, é mentira:
Era verdade de-noite,
Era verdade de dia.
Mentira, porque eu sofria.

Recapítulo
(p. 193)

O cavalo e seu retrato fazem refletir sobre a literatura, sobre seu excesso de verdade que compõe sua mentira. Ao escrever o cavalo e seu retrato, o enunciador não consegue fixar nenhuma verdade, apenas imagens fugidias que compõem sempre um recapítulo: há sempre um escrito a se sobrepor a outro, sem determinar onde está o verdadeiro, onde está o que o nega. No citado conto “Palhaço da boca verde”, o enunciador, ao referir a morte de Ruysconcellos e Mema, assinala: “Mas todos morrem audazmente — e é então que começa a não-história” (p. 173). A não-história é composta a partir das verdades que começam a ser estabelecidas sobre o fato, sendo, portanto, um acúmulo de mentiras tecidas a partir e a respeito da morte.
Voltando ao “Retrato de cavalo”, temos então que a imagem não é a verdade que o animal desfruta no mundo, sua imagem não é seu sentido, não é o que permite compreender o que ele é. O sem-sentido da imagem é também o horror da morte: antes da morte podia-se ver o retrato como o congelamento de algo que morreu, algo inquietante e inexplicável. Após sua morte, Bio percebeu que a fotografia era a certeza da morte, que se consumou no sonho da destruição da imagem, "O que um dia vou saber, / não sabendo eu já sabia" (epígrafe). A situação é similar à narrativa de Roland Barthes sobre uma certa foto:
Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de Estado americano, W. H. Seward. Alexander Gardner fotografou-o em sua cela; ele espera seu enforcamento. A foto é bela, o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta dessa equivalência. (Barthes, 1984, p. 142)

A fotografia é o horror de um desastre que já ocorreu e que mantém incólume a imagem da idealização. Quando Bio diz que o retrato roubou algo do cavalo, o agouro da morte já rondava seu olhar, algo pior que mau-olhado, e que não poderia ser desfeito jamais. Daí o horror do vaqueiro, de estar diante de um futuro que se antecipa entremostrando a morte. Eis o punctum do retrato no “viso” de Bio, seu fascínio do terrível, que entrega seu querido cavalo à soberania do vazio, do nada, sem correspondência.
As possibilidades do imaginário, assim, estão relacionadas ao duplo sentido da morte, segundo Blanchot: “tantôt le travail de la vérité dans le monde, tantôt la perpétuité de ce qui ne supporte ni commencement ni fin” (BLANCHOT, 1999, p. 351) . No primeiro caso, a compreensão e o conhecimento conduzem à morte boa, necessária, dando ao ser a ilusão de que a finitude fecha seu ciclo; não obstante, ele não pode determinar nem o fim e nem seus desdobramentos, como nas não-histórias geradas pela morte dos amantes em “Palhaço da boca verde”.
Daí a ambigüidade fundamental que é a escolha entre a morte, de um lado, como possibilidade de compreensão, cuja verdade estéril acarreta a penúria; e, de outro, como horror da impossibilidade, a prolixidade do não-verdadeiro.
O que é viver um evento em imagem? É deixar que a imagem nos entregue profundamente a nós mesmos: “en dehors de nous, dans le recul du monde qu’elle provoque, traîne, égarée et brillante, la profondeur de nos passions” (BLANCHOT, 1999, p. 352) .
Em sua extrema ambigüidade, as duas versões do imaginário podem possibilitar ou a recuperação ideal do objeto, cuja imagem é a “negação vivificante”, ou a remissão não mais ao referente ausente mas a um neutro que não carrega mais a pertença ao mundo. Há aí um duplo sentido que compreende diferentes níveis de ambigüidade: no mundo, ela serve ao entendimento, à compreensão (ajuda-o ou atrapalha-o); nas duas versões do imaginário tem-se, de um lado, uma imagem que ainda fala do mundo, que propicia o sentido e a apropriação das coisas em sua ausência; de outro, a que remete o olhar ao reino indeterminado da fascinação, onde a imagem não tem valor nem significação, é pura paixão da indiferença.
Esse jogo de ambigüidades, de que a literatura é plena, conduz, segundo Blanchot, a um terceiro nível de ambigüidade, em que haveria um outro de todos os sentidos, que é o sentido do nada, do vazio, que propicia possibilidades aparentemente infinitas de sentido. Elas são vazias porque não podem ser delimitadas, apreendidas, capturadas, não se formam.
No conto “O espelho”, de Primeiras estórias, o enunciador tece considerações sobre o mistério que há além da representação, e que lembra a distinção entre retrato e imagem de Walter Benjamin, que por sua vez assemelha-se às noções de studium e punctum de Barthes. Esse jogo de espelhos, que é a escritura de Rosa, nos remete infinitamente à impossibilidade da pergunta: “quem está do outro lado?”.
O narrador de “O espelho” especula: “Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (Rosa, 1974, p. 89)
O que ele vê no espelho?
Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá? (ROSA, 1974, p. 97)

É o espelho de Rosa, anterior ao saber, próximo à origem, em seu duplo sentido fundamental, em sua potência negativa que faz do sentido não mais uma aparência, mas um infinito de sentido que não conclui. Assim separam-se Iô Williãozinho e Bio, meio envergonhados, olhos marejados: “Mais foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da noite” (p. 192). Sublinhemos a expressão mero conversando assim aos infinitos e tomemo-la como figuração do texto literário rosiano. Afinal, narrativa sobre retrato de cavalo não é retrato de cavalo, assim como retrato de cavalo não é cavalo.
RESUMO
Em “Retrato de cavalo”, de Tutaméia, a instigante indeterminação da escritura de Guimarães Rosa estabelece um paralelo entre um cavalo e seu retrato, a partir dos sentimentos contraditórios de seu dono. Temos aí um retrato: escrita, representação. Temos também uma narrativa, escrita do retrato, representação da representação. Esta comunicação pretende mostrar como Guimarães Rosa manipula as ambigüidades da linguagem literária, levando-a além dos limites da representação, explorando seu fascínio, seu saber que não é da ordem da compreensão. O cavalo e seu retrato fazem refletir sobre a literatura, sobre seu excesso de verdade que compõe sua mentira. Ao escrever o cavalo e seu retrato, o texto não consegue fixar nenhuma verdade, apenas imagens fugidias que compõem recapítulos: há sempre um escrito a se sobrepor a outro, sem determinar onde está o verdadeiro, onde está o que o nega, a remeter o olhar ao reino da fascinação, onde a imagem perde o valor de significação para se tornar pura paixão da indeterminação, da indiferença. Sublinhemos do texto a expressão mero conversando assim aos infinitos e tomemo-la como figuração do texto literário rosiano. Afinal, narrativa sobre retrato de cavalo não é retrato de cavalo, assim como retrato de cavalo não é cavalo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasileiense, 1994.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1999.
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo: Coed. José Olympio, Civilização Brasileira e Ed. Três, 1974.
ROSA, Guimarães. Tutaméia. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.