Saturday, November 25, 2006

VIDAS SECAS
Graciliano Ramos
ROTEIRO DE LEITURA
Cid Ottoni Bylaardt
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Professor Adjunto da UFC

“E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos.”


O MUNDO SECO DE FABIANO E SUA GENTE

Cid Ottoni Bylaardt, professor da UFC

A novela Vidas secas, de Graciliano Ramos, se estrutura em treze capítulos que apresentam cenas de Fabiano e sua família na luta pela sobrevivênca no sertão agreste nordestino. Os capítulos possuem vida independente, isto é, cada um deles pode ser lido como uma narrativa completa. Os treze juntos, entretanto, compõem a saga da família de Fabiano. A unidade do texto como um todo advém do encadeamento da narrativa, que compõe uma história envolvendo os mesmos personagens em seu núcleo familiar. O tempo é o que decorre entre uma seca e outra, é o tempo cíclico que envolve a família de Fabiano e que irá se perpetuar entre seus filhos e depois os filhos de seus filhos e assim por diante, que renovam sua miséria e sua tentativa de sobreviver no espaço da secura, no sertão adverso.
O narrador é onisciente, em terceira pessoa, e freqüentemente desloca o foco narrativo para as consciências dos personagens, por meio da utilização do discurso indireto livre. Nessas introspecções, o narrador revela os pensamentos dos personagens - inclusive da cachorra Baleia -, seus pontos de vistas sobre os problemas que os cercam, os mesmos problemas vistos de perspectivas diferentes.
A novela é a história da luta pela satisfação das necessidades básicas e dos sonhos de Fabiano, sua mulher sinha Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo, a cachorrinha Baleia. Fabiano é um vaqueiro do sertão do nordeste que é obrigado a fugir da seca em busca de melhores condições de vida.
No início da narrativa, Fabiano e sua família, após andarem algum tempo em fuga, tomam posse de uma fazenda, onde ficariam até a seca seguinte. Este, mais a cidadezinha próxima, é o espaço onde se desenrolam as cenas da vida da família: o abuso de poder do policial que prende Fabiano, a lida na fazenda, a festa de Natal na cidade, a morte de Baleia, a chegada das aves de arribação anunciando a nova seca, e a retirada final, recomeçando o ciclo de miséria.
Fabiano é o vaqueiro matuto que tenta sobreviver com a família no espaço adverso da caatinga. Fugindo da seca, acaba por encontrar uma fazenda abandonada, onde se estabelece. Com o fim da seca, tenta fazer a fazenda reviver, e tem seus sonhos de felicidade:

A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.

Mas a vida de Fabiano e dos seus é um eterno recomeço, uma coisa cíclica que não admite estabilidade. Ele tem a intuição desse movimento circular ao se com parar com uma bolandeira, a roda puxada por cavalo que aciona o rodete de ralar mandioca:

Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. (...) E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia por quê, mas era.

Quando a chegada das aves de arribação anunciou mais uma seca terrível, Fabiano e sua gente tiveram que encetar nova viagem, para um novo pouso, que lhes proporcionasse meios para sobreviver. Apesar de todas as evidências de que suas vidas se repetiriam como num círculo, num movimento de bolandeira, sempre havia a esperança do desconhecido, de uma vida diferente:

Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato.Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles.


O ISOLAMENTO DOS SERES

Fabiano é um ser primitivo, voltado para as necessidades primeiras, de pouca fala e sem relações sociais. O vaqueiro considera-se um bicho, motivo de orgulho, porque bichos sabem vencer dificuldades; homens não. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. A autoridade é representada pelo soldado amarelo, que exige obediência, e obriga Fabiano a jogar trinta-e-um com ele. A obediência à autoridade não pode ser transgredida. Fabiano perde e sai do jogo e da bodega sem dar satisfação à autoridade; o crime é punido com uma surra e uma noite na cadeia. Fabiano não entende nada, chega a duvidar de que o soldado amarelo seja mesmo representante do governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar.
Num momento posterior, Fabiano encontra-se novamente com o soldado amarelo, desta vez na caatinga, no seu espaço. Sentia-se superior ao soldado, podia desforrar a desfeita anterior, mas o respeito ao governo não lhe permite a vingança. Governo é governo. Ao invés de se vingar, Fabiano ensina ao soldado o caminho.
Sinha Vitória tinha respeito pelo marido e sonhava com a cama de lastro de couro. Esse era seu supremo desejo de consumo. Embora Fabiano julgasse uma maluquice esse desejo (Cambembes podiam ter luxo?), pois não teriam como carregar uma cama na próxima retirada, sinha Vitória não abria mão de seu sonho. Quanto aos filhos, não queria que eles fossem vaqueiros como o pai. Sonhava para eles uma vida diferente. Queria ir para uma terra distante, diferente da caatinga, que só tinha montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Nem a saudade que ataca os sertanejos longe do sertão seria capaz de fazê-los voltar. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos?
O menino mais novo era grande admirador do pai. Vê-lo vestido com a roupagem de couro do vaqueiro, esporas, chapéu, montando a égua alazã inspirou-lhe o desejo de realizar algo que deixasse o irmão mais velho e Baleia admirados. E a façanha que lhe ocorreu foi fazer com o bode velho o que o pai havia feito com a égua alazã. O bode velho pulou e saltou, e o menino foi jogado ao chão humilhantemente. O irmão mais velho ria e Baleia desaprovava. Tentativa inglória.
O menino mais velho se preocupava com o significado da palavra inferno, que tinha ouvido sinha Terta pronunciar e quis saber o que era. A mãe lhe respondeu que era um lugar ruim demais, cheio de espetos quentes e fogueiras. O filho não se deu por satisfeito e continuou insistindo, impacientando a mãe, que lhe deu um cocorote. O menino foi chorar a um canto, consolado pela cachorrinha Baleia. Não entendia por que uma palavra bonita como inferno pudesse designar coisa ruim. Todos os lugares conhecidos são bons; se a palavra inferno pudesse virar coisa, também seria lugar bom. O mundo tem também seus males, mas eles são sempre vencidos. O mundo só é mau na época da seca, em que as pessoas têm de fugir e cansam de cair no chão. Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido.
A cachorra Baleia também tem seus sonhos e motivações de vida. Em seu mundo cão, ela se mostra tão humana quanto os demais personagens; a narrativa aproxima-os a todos em seu primitivismo. Durante a retirada, ela comera os pés, os ossos e a cabeça do papagaio, que tivera de ser sacrificado para alimentar o grupo. Os ossos do papagaio certamente não eram o papagaio, por isso Baleia não sentia remorsos por ter comido o amigo. Ela só achava estranho quando olhava para o baú sobre a cabeça de sinha Vitória e não enxergava mais a ave. Quando mais uma vez a comida se esgotou completamente, Baleia deu novo alento ao grupo caçando um preá, e ficou aguardando para receber os ossos e talvez o couro. Baleia não gostava era de receber pontapés, embora achasse-os necessários, não sabia bem por quê. Sua única saída era a fuga, mas mesmo assim ainda a apanhavam desprevenida às vezes.
Quando Baleia adoece, Fabiano resolve matá-la por medo de que ela transmita alguma doença ruim para alguém da família. O sofrimento é geral, principalmente por parte dos meninos, que a consideravam praticamente uma igual. O tiro de Fabiano atinge Baleia nos quartos e inutiliza uma das pernas traseiras. A cadela late desesperadamente, sinha Vitória reza, os meninos choram alto, desconsolados. Baleia não entende bem o que está acontecendo, tem vontade de morder Fabiano, e delira. Sente o cheiro bom dos preás vindo do morro, lembra-se de sua obrigação de conduzir as cabras ao bebedouro, das brincadeiras com os meninos, da cova em que costumava se espojar sob a raiz do juazeiro. O fim de Baleia é como um sonho:
Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.


AS PALAVRAS INÚTEIS E PERIGOSAS

A linguagem utilizada pelo narrador é econômica, contida, seca como os personagens, que, apesar de secos, contêm um resto de ternura:

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam.

A linguagem dos personagens também reflete sua condição de vida: ao isolamento social corresponde o isolamento lingüístico. Apesar de admirar as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, Fabiano sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. Por isso ele às vezes tentava reproduzi-las, mas ele preferia comunicar-se com as pessoas utilizando a mesma linguagem com que se dirigia aos bichos. A tentativa de se comunicar com um soldado na cidade utilizando uma linguagem “elaborada”, inspirada na fala de seu Tomás da bolandeira, produz um discurso sem sentido:

- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.

Fabiano é preso aparentemente sem motivo, por uma arbitrariedade de um policial, que desejava mostrar poder e autoridade. O vaqueiro não entende bem o que está acontecendo, que ele chama o demônio daquela história, e atribui tudo ao fato de ele não saber se comunicar:

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?

Fabiano lembra então a época da retirada, em que eles mataram e comeram o papagaio, que não sabia falar. A ignorância da linguagem deve ser punida: o papagaio morre; Fabiano é preso.
A ausência de manifestação lingüística revela-se um perigo também quando, na retirada final, sinha Vitória percebe que se ela não falar e não ouvir som de fala ela se fragilizará mais, e não suportará a viagem. A linguagem tem o poder de fortalecer as pessoas, mesmo que seja uma fala incompreensível, mesmo que seja pelo equívoco:
Sinha Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha , as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada.
A fala de sinha Vitória agradou a Fabiano, que também se animou e percebeu que o tempo passava mais rápido e a viagem rendia mais enquanto conversavam.
O vocabulário de Fabiano é tão limitado que, durante a festa na cidade, após ter bebido umas doses de cachaça, ele resolve desforrar-se do mundo civilizado que o oprime, e num ato de suprema coragem, que poderia levá-lo a se desgraçar, resolve fazer um xingamento coletivo a todos que o sufocam só por existirem:
- Cambada de...

Onde a palavra para completar tão magnífico xingamento?
Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem atinar com a palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da língua. E a língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos vidrados.
Fabiano sofre um bom tempo até encontrar a palavra para completar a expressão que libertaria sua valentia diante do perigo à sua volta:

- Cambada de cachorros.

A fala é pouca e o conhecimento também. Incomodam Fabiano as perguntas dos filhos. Que necessidade se tem de saber as coisas? Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
A ignorância total, no entender de Fabiano, é mais confortável, porque não gera a necessidade de novos conhecimentos. As pessoas que sabem alguma coisa acabam ficando curiosas e querem saber sempre mais, o que provoca insatisfação. Um exemplo é seu Tomás da bolandeira, homem instruído, que se arrasava mais do que todo mundo durante a seca, por ter menos resistência do que o povo ignorante. Entretanto, a sabedoria de seu Tomás inspirava respeito, e ele tratava as pessoas com cortesia, sem mandar, ele apenas pedia, e todos lhe obedeciam.
A linguagem deve representar concretamente a realidade. Qualquer tipo de abstração ou de associação indireta complica o cérebro de Fabiano. Quando sinha Vitória declarou que as aves de arribação queriam matar o gado, o vaqueiro se confundiu todo. O que ela dizia é que as aves, em grande quantidade, iriam beber o resto de água que permanecia no leito quase seco do rio, e o gado ficaria sem água e morreria de sede. Ele não podia atinar com o que a mulher queria dizer, achou até que ela estava delirando. Como é que aves tão pequenas poderiam matar bois e cabras? Fabiano ficou muito tempo pensando na frase de sinha Vitória, chegou a desistir de aprofundar o pensamento, até que percebeu a relação de causa e efeito da declaração da mulher, e ficou orgulhoso da inteligência dela:
Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam.
A relação estreita que Fabiano estabelece entre as palavras e as coisas cria situações embaraçosas, em que as pessoas acham que o sertanejo está zombando delas, de tão primitivo que é seu pensamento. Um exemplo é o caso do porco magro que estava reservado para o natal, mas teve que ser morto antes para o vaqueiro tentar vendê-lo e levantar algum dinheiro. O cobrador da prefeitura aborda Fabiano e lhe diz que, para vender o porco, devia pagar imposto. Quanto ao imposto, o sertanejo não podia contestar nada, porque a taxação é uma invenção de seres superiores a ele; mas quanto ao objeto da venda, ele o conhecia bem: estava certo de que o que ele trazia naquele saco não era porco, mas quartos de porco, pedaços de carne. Para Fabiano, o argumento é concreto, mas o cobrador não se conforma com essa simplicidade ofensiva.
O menino mais velho também lida com o concreto, e não se conforma com a definição abstrata de inferno que a mãe lhe deu. Se a palavra era bonita e o mundo concreto é bom, como é que o inferno podia significar coisa ruim?
Ele tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso, rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
A falta de domínio da linguagem mais uma vez é acompanhada de uma punição. O menino mais velho busca negar sua estagnação lingüística tentando aprender uma palavra difícil: inferno. Decorar a palavra e pronunciá-la iria certamente provocar a inveja e admiração do irmão mais novo.
Na festa de natal da cidade, os meninos ficaram maravilhados com a profusão de objetos que cercavam a vida das pessoas, coisas que eles nunca haviam imaginado que pudessem existir. E a origem dos objetos, teriam eles sido feitos por gente? O problema maior é que cada um daqueles objetos tinha de ter um nome, o que gerava uma situação absurda: era absolutamente impossível um ser humano decorar tantos nomes, e as coisas sem nome não eram coisas, não podiam ter sido feitas por gente. Estava criado o impasse. Coisas sem nomes eram distantes, misteriosas, e deviam possuir forças estranhas que fariam mal às pessoas.
Os meninos praticamente não conversavam, os diálogos são quase que exclusividade dos adultos. Mas são discursos descontínuos, fragmentados, ambíguos, em que um na verdade não prestava atenção no que dizia o outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meios de dominá-las.
Numa noite de inverno, Fabiano resolve contar, com o auxílio de gestos e de voz alta, histórias de seus próprios feitos, e à medida que narra passa a acreditar cada vez mais na grandeza de seus atos. Houve um determinado trecho que soou incompreensível para os meninos. A interrupção da narrativa pelos meninos quase levou Fabiano a puni-los, julgando que eles estavam fazendo pouco dele. Voltando atrás, o pai resolve recontar a passagem obscura com outras palavras, para torná-la mais compreensível. O menino mais velho, embora não tivesse entendido a passagem da primeira vez, não concordou com a mudança das palavras da história. A nova versão, para ele, mudava tudo, tornando-a outra história. Fabiano modificara a história ¾ e isto reduzia-lhe a verossimilhança. A repetição da passagem com outras palavras provocou a quebra do encantamento, teria sido melhor se ele tivesse repetido a passagem com as mesmas palavras, mesmo prejudicando o entendimento.
Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria por causa das palavras ¾ e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório.
As histórias eram contadas ao pé do fogo, na cozinha, em uma noite de inverno, Fabiano gesticulava, sua imagem era projetada pelo fogo, a narrativa era fantástica, exercia uma atração mágica sobre os meninos. A interrupção e o retorno à passagem obscura quebrou o clima de magia, o narrador perdeu sua condição divina, que não admitiria retornos, e a narrativa perdeu o encantamento.

As relações sociais de Fabiano são marcadas pelo sentimento de inferioridade, principalmente quando se comparava às pessoas da cidade. Por isso se isolava. Todos o prejudicavam de alguma forma, os negociantes, o patrão, os caixeiros.

A OPRESSÃO DOS DOMINADORES

Uma relação que permeia a narrativa é a da dominação. É através de Fabiano que a família faz seu contato com o mundo exterior, um contato difícil, sofrido, incompreensível para ele. As “autoridades” que o oprimem o fazem de várias maneiras: há a opressão dos que sabem mais, dos que são proprietários, dos que representam o governo.
No episódio em que Fabiano é preso, ele é obrigado a aceitar o convite do soldado amarelo para uma partida de baralho porque ele não consegue expressar seus desejos, e balbucia algo incompreensível. Ao se ausentar do jogo sem dar satisfação, o soldado acha que foi destratado e termina por prender o vaqueiro, depois de provocá-lo até obter uma reação, em que Fabiano xinga a mãe do soldado. Como ele não consegue se explicar, toma uma surra e pernoita na prisão.
Sua concepção de governo é confusa. Em certos momentos, acha que o governo é todo-poderoso e, portanto, não é desonra apanhar de um seu representante. Entretanto, pessoas tão ruins como aquele soldado amarelo não podiam ser representantes do governo, ou o governo no mínimo estava mal representado; então não podia se conformar com aquela situação.
Havia coisas ali a serem explicadas, mas ele, Fabiano, era um bruto, não tinha capacidade de explicar. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Na mente dele, era necessário ter cultura para relatar a situação, mesmo que a pessoa não estivesse no processo. Seu Tomás, por exemplo, podia muito bem relatar o caso:
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia muitos livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada.
Um ano depois, ao encontrar-se novamente com o soldado amarelo, desta vez em seu ambiente do sertão, Fabiano tem novamente sentimentos contraditórios ao tentar definir a figura que lhe aparece. Primeiramente, percebeu no soldado um inimigo, um bicho qualquer, mas inimigo. Depois percebeu que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Ele tinha medo, julgava-se em perigo; logo em seguida riu-se de seu próprio medo, pois na verdade aquela coisa frágil e medrosa que estava na sua frente não oferecia nenhum perigo. E ficou hesitante sobre se matava ou não o inimigo-autoridade, que permanecia imóvel, na expectativa medonha. O oponente era tremura, amarelidão, fraqueza fardada, sem-vergonha, mofino, aquela coisa arriada e achacada, peste. Afinal, Fabiano fraqueja diante do grande argumento: - Governo é governo.
Suas relações sociais - ou ausência delas - também são marcadas pelo sentimento de inferioridade, principalmente quando se comparava às pessoas da cidade. Por isso se isolava. Todos o prejudicavam de alguma forma, os negociantes, o patrão, os caixeiros. Se o prejuízo não era financeiro, era moral: tinha sempre a impressão de que estavam zombando dele, de que ele era sempre ridículo diante dos outros.
Sua relação com o patrão também é de perplexidade, ele não entende como é que as contas dele sempre divergem das suas, ou melhor, das de sinha Vitória, que é quem faz as operações, utilizando sementes de várias cores. Havia os juros, que nunca entravam nas contas da mulher, mas sobejavam nas contas do patrão, sempre contra o sertanejo. A dominação é completa: o dominador detém o poder das contas e o poder da posse; ao dominado resta sujeitar-se ou procurar serviço noutra fazenda. O sertanejo sofre, tenta se rebelar:

Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria?

A reação do patrão é imediata, só resta a Fabiano conformar-se, certo de que havia sido lesado.
Este é o mundo de Fabiano e de sua gente — um mundo difícil de entender quando outros seres humanos nele interferem, mas possível de lidar quando a relação é com a natureza, quando o que se exige é consertar seca, desentupir bebedouro, tratar dos animais. Mesmo a seca é superável. As relações dentro da família também seguem uma ordem estabelecida, com pouca comunicação mas sem surpresas, havendo lugar até para uma certa ternura seca entre as pessoas. O que atrapalha tudo são as pessoas de fora, que só por existirem já são uma afronta a Fabiano e aos seus.

Friday, November 10, 2006

MACUNAÍMA
Mário de Andrade



“Enfim, sou obrigado a confessar de uma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava copiar o Brasil, por meio dele mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem desde Gregório de matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence a Portugal. Meu nome está na capa e ninguém o poderá tirar”.
Mário de Andrade


O GRILEIRO DAS LETRAS

Cid Ottoni Bylaardt, professor da UFC


COPIEI, SIM, MEU QUERIDO DEFENSOR

Em 20 de setembro de 1931, Mário de Andrade publicou no jornal Diário Nacional uma carta pública dirigida ao antropólogo Raimundo de Morais. Este, agindo com malícia dissimulada em ingenuidade defensora, comenta, num verbete de seu Dicionário de Cousas da Amazônia, que pessoas “maldizentes” insistiam em que o livro Macunaíma era plagiado da obra do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, Von Roraima zum Orinoco. O dicionarista acata o boato, mas diz que duvida de sua veracidade, pois acredita que o romancista paulista “possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas”.
Raimundo de Morais esperava, naturalmente, que Mário se defendesse, mas o pai adotivo de Macunaíma surpreendeu os defensores da originalidade intelectual declarando solenemente sua condição de PLAGIADOR (1999: 165):

Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa.

Neste mea culpa, Mário investe descaradamente sobre a noção de propriedade textual, de autoria e de originalidade até então considerados, pelos guardiães do texto sagrado, do texto peça de museu, elementos fundamentais do processo de criação. Em sua exposição, o romancista de Macunaíma revela a ignorância dos eruditos “maledizentes”, entre os quais se inclui o próprio Raimundo de Morais, que não perceberam que o plágio era de toda uma cultura, e não apenas de um livro, comparando-se aos “rapsodos de todos os tempos”, que “transportam integral e primariamente tudo o que escutam ou lêem para seus poemas” (1999: 164).
Mário, em Macunaíma, copia o Brasil, mostrando sua cara e satirizando-o, mas não abre mão de sua autoria: “Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar”. Do livro do alemão, Macunaíma se libertou e ampliou suas fronteiras inicialmente nortistas, agregando a si e a sua ação “modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa” (1999: 165).
Fica aí declarada a condição parodística da escrita, a escrita de segunda mão, a apropriação dos enunciados, tantos e tão diversos que compõem um patchwork lingüístico proposital. Qual é, então, a intenção desse grileiro das letras? Que sentido procura ele dar a essa combinação de múltiplos elementos, que para alguns soava como um estranho amontoado de fragmentos, e para outros como uma unidade fortíssima na busca da identidade brasileira?
Embora tenha declarado que escreveu o livro de “pura brincadeira”, Mário de Andrade não nega que ele “vale um bocado como sintoma de cultura nacional”. Contém, portanto, as dúvidas e o fascínio do escritor em relação à cultura brasileira e às nossas etnias, numa oscilação hesitante entre otimismo e pessimismo extremos. A leitura de um Brasil simpático e surpreendente não é obliterada por qualquer traço de ufanismo que impeça uma visão crítica do passado e do presente cultural-literário brasileiro, uma releitura que busca redescobrir este país, que tenta investigar qual é a sua verdadeira cara, a sua real identidade.

AVENTURA PAPAGUEADA

O epílogo da narrativa nos informa de seu narrador, que ouviu toda a história de um papagaio. O papagaio, por sua vez, tinha ouvido tudo do próprio Macunaíma, quando este havia voltado para o Uraricoera e curtia o impaludismo e a solidão.
Quem conta a história é o papagaio, o que repete indefinidamente, o que se apropria dos discursos dos doutores, das frases feitas, dos provérbios, das adivinhas, das canções, dos mitos etc, e, principalmente, do livro Von Roraima zum Orinoco, do alemão Theodor Koch-Grünberg. O papagaio é o rapsodo, o aedo, o vate, que conta a história com “uma fala mansa, muito nova, muito!” “Isso é o Macunaíma e esses sou eu”, diz Mário de Andrade em sua carta a Raimundo Moraes (1999: 164), isto é, Macunaíma é o produto de várias escutas e leituras, e Mário é o papagaio-rapsodo, o que repete de seu jeito. É, portanto, um texto de terceira mão que papagueia de segunda mão outros discursos.

TEMPO E ESPAÇO SEM LIMITES

O tempo da narrativa é mítico, mágico, indefinido, mas pode-se acompanhar em cronologia progressiva a trajetória de Macunaíma, desde o nascimento até a morte.
No espaço, contrapõem-se o mundo mítico amazônico, e o mundo-máquina da metrópole, afinal transformado em preguiça de pedra, portanto manietado em seu sentido mais peculiar. Nenhum espaço do Brasil oferece ao herói seu pouso seguro. O mundo civilizado é uma bricolagem mal feita de empréstimos estrangeiros, e exige excessivos esforços do herói para se manter lá. A tribo é um espaço tão perigoso quanto a cidde, e vive um processo de decadência em direção ao extermínio, que ocorre ao final, vítima de um enorme “tangolomângolo”, palavra portadora de estragos proporcionais a sua extensão de significante.

A CONSCIÊNCIA NO MANDACARU

A rapsódia, em poesia, consiste numa obra épica que representa as peculiaridades de uma nação; na música, é uma composição formada de diversos cantos tradicionais ou populares de um país. Os rapsodos eram, na Grécia antiga, recitadores profissionais de textos alheios, aos quais enxertavam os próprios textos e/ou lhes davam interpretação particular. Macunaíma é a rapsódia de um herói que incorpora os cantos do Brasil e seus contracantos. Os múltiplos textos que compõem a obra são mitos, lendas, superstições, provérbios, anedotas e contos etiológicos falsos e autênticos; todos esses textos têm origem ameríndia, européia e negra.
Macunaíma, “o herói de nossa gente”, nasceu à margem do Uraricoera, na floresta amazônica. Filho da tribo dos Tapanhumas, revela desde pequeno seu caráter controvertido: manhoso, brincalhão, indolente, lascivo, infiel, mentiroso, embora apresente momentos de grandeza e coragem, geralmente não intencional. Ao transformar-se em um “príncipe lindo” quando fazia amor com sua cunhada Sofará, esposa de seu irmão Jiguê, manifesta também uma característica que o acompanhará em toda sua trajetória: sua capacidade de metamorfose, uma maneira de mostrar várias caras sem assumir uma fisionomia definida.
Após muitas andanças, em companhia dos irmãos, Macunaíma conquista Ci, a Mãe do Mato, não sem muita luta e muito sangue. O herói apanha muito dela, mas não desiste, terminando por ficar com a Icamiaba, tornando-se Imperador do Mato e iniciando uma fase de amores ardentes, até que tiveram um filho. A morte do filho fez com que Ci fosse para o céu, virando a estrela Beta do Centauro. Antes, ela deixou com Macunaíma a famosa pedra muiraquitã, artefato feito de pedra verde, em forma de jacaré, à qual se atribuem virtudes de amuleto.
Com a perda do filho e de Ci, o herói junta os irmãos, Jiguê e Maanape, despede-se das Icamiabas e parte. Nas lutas contra Capei, a Boiúna Luna, ele perde a muiraquitã. Um uirapuru revela ao herói que a pedra tinha sido comprada por um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, que morava em São Paulo, “a cidade macota lambida pelo Igarapé Tietê”.
O projeto do herói passa a ser, então, ir a São Paulo reaver a pedra verde. Um dos preparativos para a viagem foi o cuidado de deixar a consciência na ilha de Marapatá, na foz do rio Negro. “Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, para não ser comida pelas saúvas”. Não se pode exigir, portanto, que o herói pratique seus atos conscientemente. Se se pode duvidar de sua consciência até aquele momento, fica claro que a partir daí essa é uma palavra inexistente em seu vocabulário e em sua prática, mesmo porque não se tem notícia de que ele tenha voltado para buscá-la. Após tentativas frustradas de reaver a muiraquitã, Macunaíma envolve-se com Vei, a Sol, quebra sua promessa de ser fiel às filhas de Vei e perde a condição prometida de eterna juventude. Escreve uma carta para as Icamiabas, em que estabelece o confronto entre o barbarismo e a civilização, e pede mais dinheiro a suas súditas. O episódio de Vei e a carta merecem comentários mais detalhados adiante.
Incontáveis aventuras depois, o herói consegue reaver a pedra das amazonas e empreende viagem de volta ao Uraricoera, acompanhado de Maanape e Jiguê, e portando um revólver Smith-Wesson, um relógio Patek Philip e um “casal de galinha Legorne”. O casal é formado por um galo e uma galinha. Em sua luta com a Uiara, ele é mutilado, perde novamente a muiraquitã e é transformado na constelação da Ursa maior.

A SOL, A CARTA, A PEDRA

Os principais eixos de sustentação da trama na rapsódia são a disputa de Vei com Macunaíma, a “Carta pras Icamiabas” e o embate do herói com Venceslau Pietro Pietra pela posse da muiraquitã.
O capítulo VIII, “Vei, a Sol” é considerado pelo próprio Mário de Andrade como uma das alegorias centrais da narrativa. Atirado pela árvore Volomã em uma ilhota, o herói dormia sob uma palmeira em cujo cimo havia um urubu, que despejou sobre ele várias cargas de fezes — de urubu. Desiludido da vida, tenta obter um lugarzinho no céu apelando para a estrela-da-manhã e para a Lua, que, não suportando seu fedor, o despacham, com a expressão que se tornou vulgar, posteriormente: “— Vá tomar banho!”, que normalmente passou a ser dirigida a certos imigrantes europeus que tinham resistência ao banho. Macunaíma guarda, então uma característica européia, já que os índios se lavam com freqüência. Vei, a Sol, tem simpatia por ele, e ordena a suas três filhas que limpem bem o herói. Depois ela promete a ele a mão de uma das filhas, desde que ele se mantenha fiel à esposa.
Aí tem origem a grande transgressão do herói. Traindo sua palavra, ele resolve “brincar” com uma varina, vendedora ambulante de peixe, entre os portugueses. Vendo suas filhas preteridas por uma portuguesa, Vei recusa a Macunaíma a juventude eterna e a imortalidade, tirando-o de sua proteção. A escolha desastrada marca sua entrega ao europeu, atestando que os males do Brasil não são apenas as enfermidades e as formigas. Pode-se novamente fazer um paralelo entre a “entrega” de Macunaíma e a de Iracema, que configuram situações parecidas, porém ideologicamente diferentes. Numa, o tom é de censura; noutra, a doação é positiva; em ambas, o fato é inevitável. Para completar sua vingança, Vei encaminha Macunaíma para a morte pela sedução da Uiara.
O grande motivo da movimentação de Macunaíma é, sem dúvida, a pedra muiraquitã, presente que sua amada Ci lhe fez ao desencarnar. Na luta contra Capei, um monstro fantástico que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos, o herói perde o talismã, que posteriormente é adquirido pelo gigante Piaimã, ou Venceslau Pietro Pietra. Na primeira tentativa de abordar o gigante, Macunaíma é morto com uma flechada, e ressuscita graças aos poderes mágicos de seu irmão Maanape.
Na segunda tentativa, o herói se fantasia de francesa para tentar seduzir o gigante. Piaimã mostra-lhe toda sua coleção de pedras, mais a muiraquitã. Pietro Pietra declara que não vende e nem empresta a pedra das amazonas, mas é capaz de doá-la, dependendo dos agrados. Pressentindo o assédio, Macunaíma tenta fugir, mas é capturado e colocado em um tgrande cesto. O herói foge outra vez, e é perseguido por um cão de Venceslau Pietro Pietra, que o acua e faz com que ele entre num formigueiro. Usando artimanha, ele consegue escapar.
Macunaíma tem inveja do gigante porque não possui coleção de pedras, e decide colecionar alguma coisa, de preferência algo mais leve. Ele resolve então fazer uma coleção de palavras-feias de que ele gostava. O herói revela aí sua arma de combate: a força das palavras, escritas faladas, populares, eruditas, em latim e grego (que ele vinha estudando), em italiano e em indiano, enfim, o discurso torna-se para o herói a grande moeda de uso.
No Rio de Janeiro, Macunaíma visita um terreiro de macumba e pede a Exu que castigue Piaimã, que é então chifrado por um touro selvagem e ferroado por quarenta mil formigas-de-fogo. No terreiro, encontrava-se a força da palavra de vários poetas modernistas citados no capítulo.
O embate épico do herói contra Piaimã termina com a derrota do gigante, que morre fervendo na água da macarronada de Ceiuci, e desprende “um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói teve uma sapituca”. O herói então recupera os sentidos e a muiraquitã e retorna com os irmãos “pra querência deles”.
Na “Carta pras Icamiabas”, faz-se a paródia da retórica, em linguagem grandiloqüente e pomposa, própria de um “Imperator”, nem que seja do mato. É a sátira epistolar aos que falam e escrevem “bem”, mesmo que não sejam compreendidos, o questionamento do abismo existente entre a fala e a escrita. Ao mesmo tempo, o herói prova que ele também pode se apropriar do discurso erudito, assim como maneja com a maior naturalidade a língua falada, a linguagem chula, idiomas estrangeiros, enfim, o bastante para impressionar quem quer que seja.
Macunaíma não conseguiu reaver a pedra verde, mas conquistou o discurso precioso.
O ponto de vista aqui se desloca do rapsodo, ou aedo, para o personagem, recém-iniciado nos segredos dos discursos, e impressionado com o poder da linguagem, tanto que ele em seguida resolve estudar as duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. O poder do discurso revelado no pastiche da carta, construído sobre um arremedo de estilos variados, equivale, para o herói, a ser louro de olhos azuis e a possuir muito dinheiro para morar em São Paulo: são as exigências da sociedade emergente, cuja antítese é o negro ou mestiço pobre e ignorante. A fala do povo é coisa bastarda, deformada, “bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano”.
A boa escrita lusitana pode ser identificada nos diálogos que Macunaíma trava com Pero Vaz Caminha, Luís de Camões, Pero de Magalhães Gandavo, Manuel Botelho de Oliveira, José de Anchieta, Rui Barbosa.
Esta é a verdadeira pedra mágica de Macunaíma, que, através do discurso, pretende se impor às suas súditas e se igualar aos dominantes na maior cidade do Brasil. O texto confronta-se com a oralidade predominante na narrativa como um todo, constituindo uma ruptura com o discurso da rapsódia, coincidindo com o momento em que o herói toma a palavra. Em suma, esse discurso é seu, e não aquele que o rapsodo ouviu de um papagaio e colocou em sua boca. Por mais que se considere o fato de que as palavras teriam chegado até nós por arte do aruaí, a peculiaridade do texto o desloca da narrativa do papagaio e do aedo, depositando-o na pessoa de Macunaíma.
A “Carta pras Icamiabas” insere-se exemplarmente na proposta da estética modernista de par com Oswald de Andrade, de apropriação de variados discursos, deslocados de seu contexto original, compondo o universo lingüístico de Macunaíma, propositalmente desordenado, não-linear, cheio de altos e baixos. Tais recursos encontram berço na rapsódia, forma livre, caráter de fantasia.

A MELANCÓLICA ASCENSÃO

Macunaíma havia nascido preto retinto, a cor dos Tapanhumas. Em trânsito para São Paulo, ele se banha em uma poça mágica e fica “branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele”. Jiguê copiou o ato do irmão, mas como a água estava suja do negrume do herói, ele ficou “da cor do bronze novo”. Maanape não conseguiu molhar senão as palmas das mãos e as solas dos pés, que ficaram vermelhas, enquanto o resto do corpo permaneceu negro. Por sua reação, Macunaíma estabelece uma hierarquia do melhor para o pior na transição gradual de branco para bronze para negro: mais que uma gradação, é uma degradação preconceituosa.
Considerando a questão da formação do povo brasileiro, pode-se fazer um paralelo entre Macunaíma e Iracema, ambos portadores de algum tipo de símbolo ligado à fundação. Na obra de José de Alencar percebe-se a intenção de enaltecer o elemento indígena como etnia importante para a formação do povo brasileiro. A intenção, entretanto, não pode ser realizada plenamente por força do preconceito do autor, que se irradia para o narrador e os personagens de Iracema. Um exemplo claro é uma das notas de pé de página do autor, que desmistifica com explicações “racionais” um ritual mágico de Araquém, o pajé dos pitiguaras, que faz as entranhas da terra ecoarem a voz de Tupã, deus supremo dos índios. No caso de Alencar, o preconceito é proposital e aceito ingenuamente como a atitude certa para os padrões do século XIX meado.
Quanto a Macunaíma, ele sabe que ser branco é “melhor” do que ser mameluco, mulato, negro ou índio. O comparativo melhor é arraigado na cultura brasileira, o escritor o percebe e denuncia o ato de preconceito como um dos traços contraditórios da identidade do brasileiro; a visão do preconceito aqui é, portanto, crítica, como a constatar que o brasileiro, infelizmente, é assim.
Ser brasileiro, para Macunaíma, é ser inseguro, indeciso, debater-se entre opções não muito claras de vida, lutar entre os pólos de opressão e submissão, transitar entre etnias dominadoras e dominadas. O “herói de nossa gente” é um ser de muitas caras e de nenhuma, em busca de sua identidade.
Macunaíma vive muito e morre muito, e parece que até a questão de vida e morte é controvertida para ele. Ele morre duas vezes sem querer morrer, e é impedido de morrer quando se cansa da vida, recusado por Caiuanogue, a estrela-da-manhã, e por Capei, a Lua.
Sua primeira morte se dá na primeira batalha contra Venceslau Pietro Pietra, atingido por uma flechada no coração. Foi ressuscitado pelo feitiço de Maanape. Na segunda morte, o herói é enganado por um macaco, que o convence a quebrar seus próprios testículos para comer. Macunaíma pegou “um paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto”. Foi novamente restituído à vida por Maanape.
O fim de Macunaíma é patético. Vei, a Sol, para se vingar do herói, guia-o até a lagoa onde é derrotado pela Uiara, sereia lindíssima que, não por acaso, tinha os cabelos negros como a asa da graúna. Esse é um momento de delicado impasse para o herói. Ao se deixar seduzir pela Uiara, secundado pela punição que lhe foi imposta por Vei, por preferir o herói a cultura européia, ele termina por abrir mão da vida terrena, após um momento de indecisão entre ir morar no céu ou na ilha de Marajó. Se a permanência na terra é complicada, a entrada no céu também é difucultada, novamente por Capei e por Caiuanogue, e também por Pauí-Pódole, que termina por resolver o problema do herói:

Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos fez em encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revólver relógio, numa constelação nova. É a constelação de Ursa maior. (1997: 166)

Merece comentário a aproximação que Mário de Andrade faz entre a Uiara e Iracema, heroína de José de Alencar, símbolos da nacionalidade que se recusa ao herói. Assim como Iracema, a Uiara é belíssima e tem os mesmos cabelos negros. Iracema morre para o Brasil nascer; a Uiara provoca a morte de Macunaíma, numa luta etnocida, mas representa uma raça igualmente derrotada no confronto mortal com a civilização européia.
O exílio cósmico do herói é tão triste quanto inútil, ou seja, não é saída nem solução para o impasse entre o primitivismo ameaçado e a vida urbana pseudo-europeizada e semi-americanizada. Assim como o retorno de Macunaíma ao Uraricoera não tem sabor de triunfo, sua transformação em estrela não é apoteótica, mas melancólica.
A declaração do autor sobre seus sentimentos quanto à morte do herói atestam que a narrativa não era para ele apenas o “livro de pura brincadeira” que ele queria fazer parecer inicialmente. Eis o patético depoimento do autor (1999: 180):

(...) Pouco importa, si muito sorri, escrevendo certas páginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando o herói desiste dos combates da terra e viver o “brilho inútil das estrelas”, eu chorei. Tudo, nos capítulos finais, foi escrito numa comoção enorme, numa tristeza, por várias vezes senti os olhos umidecidos, porque eu não queria que fosse assim! E até hopje (é o livro meu que nunca pego, não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou três vezes que reli este final, a mesma comoção, a mesma tristeza, o mesmo desejo amoroso de que não fosse assim, me convulsionaram.

BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica. LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José de Costa Rica, Santiago de Chile. ALLCA XX, 1997.
GLAESER, Célia Flud. Linguagem e fundação. Belo Horizonte: Universidade, 2000.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.