Monday, March 05, 2007

HERESIAS DA LETRA SEM CORPO E DO ESPÍRITO ERRANTE
Uma leitura do romance As iniciais, de Bernardo Carvalho

Cid Ottoni Bylaardt
(Doutor em Literatura Comparada pela UFMG.
Professor Adjunto do Departamento de Literatura da UFC)


Resumo
Este texto pretende desenvolver a idéia de perturbação democrática da letra órfã, postulada por Jacques Rancière, passando pelas concepções de escrita de Homero, Platão e Aristóteles. A errância da letra sem pai que a proteja conduz à idéia de supressão das belas-letras, com a instauração da literatura, que proclama sua autonomia em detrimento do edifício mimético. Essas concepções nortearão a averiguação que se conduzirá sobre a narrativa As iniciais, de Bernardo Carvalho, cuja dispersão encena textos desvinculados do mito, da alegoria e da história.

Palavras-chave: errância, heresia, letra sem pai, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Abstract
This text intends to develop the idea of democratic disturbance of the orphan letter, postulated by Jacques Rancière, going by the conceptions of writing of Homer, Plato and Aristotle. The letter that wanders without a father to protect it leads to the idea of suppression of the belles lettres, establishing the notion of literature, which proclaims its autonomy towards mimesis. Those conceptions will orientate this investigation of Bernardo Carvalho’s text, As iniciais, whose dispersion exhibits reports disentailed of myth, allegory and history.

Key-words: wandering, heresy, fatherless letter, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Os fundamentos destas considerações encontram-se nas formulações de Jacques Rancière sobre o conceito de literatura, em oposição ao de belas-letras, e suas implicações para o mundo da escrita e para o que ele denomina mundo das condições. Daí a necessidade de se definirem alguns conceitos trabalhados por Rancière, tais como literatura, belas-letras, sistemas de legitimação, democracia, orfandade e errância das palavras, que conduz ao que ele chama “heresias da letra sem corpo e do espírito errante”. Uma vez estabelecidos, esses princípios nortearão a investigação que se conduzirá sobre o romance As iniciais, de Bernardo Carvalho.
A proposta de Rancière se baseia em sua recusa de investigar a escrita sob o ponto de vista das formas estereotipadas do pensamento de hoje.
Recusa, para começar, de instalar-se no fim da filosofia e na infelicidade dos tempos. (...) Recusa, por outro lado, de seguir a onda do social, de ceder ao peso dominante do pensamento estatizado, este pensamento segundo o qual nada existe senão estados de coisas, combinações de propriedades, e que julga as práticas e os discursos na medida em que eles reflitam, desmintam ou desconheçam estas propriedades. (ALLIEZ, 1996, p. 100)

A questão do “próprio” da literatura, ou “o ser da coisa literária” em oposição ao saber dos letrados, as belas-letras, parte dessa recusa. Na escrita, as “combinações de propriedades” estruturam o edifício mimético, que fornece os elementos de investigação aos filósofos da escrita, os quais evitam a desordem literária, encerrando as letras nas categorias estabelecidas para a poesia e para a ficção.
Toda essa formulação da representação, que Rancière tenciona subverter, passa por três cânones notáveis: Homero, Platão e Aristóteles.
O ponto inicial de inquietação é Platão, que desmascara a dupla mentira de Homero e seus pares: seus deuses movidos por querelas e adultérios desmentem sua própria divindade; sua palavra escondida na palavra de seus personagens desmente sua paternidade do discurso. No Fedro, os poetas são considerados almas de sexta categoria, por serem meros produtores de imitação, e não investigadores da verdade.
A própria palavra escrita deve ser vista com reservas, por seus possíveis efeitos perniciosos, adverte Platão, ao relatar o mito egípcio da invenção da escrita. Conforme o relato socrático, o deus Theuth foi ter com o deus Thamus e mostrou-lhe suas invenções, que iam sendo criticadas pelo outro, com boas ou más palavras. Após tantas artes, apresentou-se-lhe a escrita, que, segundo o inventor, tornaria os egípcios mais sábios e lhes fortaleceria a memória e lhes consolidaria a sabedoria. Dando seu parecer, Thamus elogiou o outro por sua arte, mas discordou dos benefícios da invenção:
(...) this discovery of yours will create forgetfulness in the learners’ souls, because they will not use their memories; they will trust to the external written characters and will not remember of themselves. The specific which you have discovered is an aid not to memory, but to reminiscense, and you give your disciples not truth, but only the semblance of truth; they will be the hearers of many things and will not have learned nothing; they will appear to be omniscient and will generally know nothing; they will be tiresome company, having the show of wisdom without the reality. (PLATO, 1991, p.138)

A idéia da perturbação da letra órfã, que Rancière vai relacionar ao advento da democracia, aparece em Platão como uma ameaça à verdade, ou à adequação entre o enunciador, o discurso e o receptor:
And when they [the speeches] have been written down, they are tumbled about anywhere among those who may or may not understand them, and know not to whom they should reply, to whom not: and, if they are maltreated or abused, they have no parent to protect them; and they cannot protect or defend themselves. (PLATO, 1991, p.139)

Além do mito da invenção da escrita, há no diálogo platônico o mito das cigarras (enunciados que têm voz identificável e privilegiada: as cigarras receberam das musas o honroso privilégio de não necessitarem de alimentação em toda sua vida, sendo capazes de cantar, do nascimento até a morte, sem comer nem beber), que separa os trabalhadores dos dialéticos, e o mito da parelha de cavalos alados, que reforça essa divisão e identifica os “donos das vozes”. Uns alcançam as verdades celestes, outros não; estes não têm o poder da palavra, aqueles trocam palavras a qualquer hora do dia. É essa relação ordenada do fazer, do ver e do dizer, em que os papéis são estabelecidos segundo uma hierarquia de legitimação, que a escrita vem desfazer.
Há em Platão, portanto, a preocupação com a verdade, a que os poetas épicos fogem, com a identificação dos corpos que engendram palavras, de acordo com seu nível, o mais elevado dos quais é o dos filósofos que buscam a verdade divina. Há também uma inquietação quanto ao destino errante da palavra órfã na escrita sem pai, que não é capaz de defender-se nem de proteger-se por si.
As preocupações de Platão acabam por legitimar o enganador como poeta, que é reabilitado pela Poética de Aristóteles. A mentira, denunciada por Platão, regulamentada por Aristóteles, acaba por se instituir como saber através da convenção que o edifício mimético estabelece entre o autor, o discurso e o receptor. A mentira não é então mentira, é ficção, é a “regra séria do não-sério”, na expressão de Rancière.
Na idade moderna, a fábula platônica foi representada pelos “filhos do povo”, que descobriram escritos desconhecidos e/ou misteriosos e deles se apropriaram. A viuvez da postura platônica faz-se sentir entre aqueles que lamentam as devastações da letra muda/falante , da letra órfã, como os filósofos da monarquia, a vociferarem contra os joões-ninguém, incitadores de sedição que se apropriam da escrita que não lhes é destinada para realizar seus desígnios.
A literatura, ao se opor às belas-letras, representa o desvio da concepção ordenada da prosa em direção às aventuras do sentido, inaugurando uma nova partilha entre a ordem do discurso e a das condições. Rancière propõe que literatura não é apenas o que sucede as belas-letras, mas aquilo que as faz desaparecer, como evento singular da escrita, não mais subordinado à concepção clássica da inventio (assunto), da dispositio (organização das partes) e da elocutio (tons e complementos convenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto). É a ruptura da literatura, que contém em si a ilusão da continuidade, mas que leva a sua absolutização. Não mais as relações estáveis entre as palavras e as coisas e as idéias. Não mais a ordenação das posições do falante e do discurso, do pai enunciador e da letra filhote. Não mais o elemento ordenador da mimese. Não mais a convenção entre o enunciador e o destinatário que regula as maneiras de recepção da obra de arte, ruptura representada pelos golpes de espada de Dom Quixote nas marionetes de mestre Pedro. Não mais a correspondência entre a letra e seu pai, mas a falha entre o corpo e a letra. No caso de Dom Quixote, sua loucura reside em sua falha, que é o paradoxo de ser ele ao mesmo tempo o homem do atraso cavaleiresco e o herói da modernidade literária. Herói porque não reconhece mais a relação convencional entre ficção e não-ficção, desautorizando as belas-letras, que organizam a ficção dentro da realidade, a “regra séria do não-sério”, estabelecendo um jogo entre os modos de discurso e os modos de recepção, em que enunciador e receptor obedecem às premissas convencionadas.
A quebra das convenções estabelece a “doença” da escrita: sua orfandade faz com que a contingência determine seu referencial, ou seja, a escrita não possui a priori um referencial ou um enunciador pré-determinado. A teoria da representação lingüística (cada palavra a uma coisa representada) ou a idéia de que a palavra é signo sucumbem aí. O remédio para a doença da escrita é sempre outra escrita, um texto que corrige as falhas do outro.
A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como a sociedade das deslegitimações que tende a derrubar a divisão entre os superiores e inferiores em vários níveis, num regime que remete ou que converge para a desigualdade e para a desordem democrática. Essa perturbação é um efeito da disseminação dos discursos, que confirma a deslegitimação própria da democracia, dispersão e desvio da letra, que erra sem voz que lhe confira legitimidade.
É a pulverização do corpo glorioso de uma sociedade, outrora representado pela epopéia de um povo, em que o criador escreve como quem fabrica armas e utensílios necessários à perpetuação da tribo, num imitativo elevado que exprime o ethos da coletividade. A ordenação tem de ser respeitada, o modo de ser da literatura corresponde aos modos de fazer da comunidade.
A literatura não mais belas-letras, em oposição à escrita convencional, é capaz de dar a qualquer corpo obscuro a capacidade do brilho, porque a escrita deixa de se enquadrar em esquemas de representação para promover a errância da letra sem pai, a heresia da conspurcação das belas letras, o espírito errante que desafia a coerência entre a ordem das palavras e a das coisas. O compartilhamento da letra por todos é uma contingência igualitária que propicia um novo tipo de desigualdade decorrente da deslegitimação, que se opõe à desigualdade existente no sistema de legitimação.
Nessa condição, a literatura tende a aproximar-se de sua absolutização, tornando-se um evento tanto mais singular, único, quanto mais se afastar de seu locutor, enunciador ou produtor, com “la disparition élecutoire du poète”, nas palavras de Mallarmé. Para Blanchot, a ausência do sujeito é uma das características primeiras da obra de arte:
L’œuvre d’art ne renvoie pas immédiatement à quelq’un que l’aurait faite. Quand nous ignorons tout des circonstances qui l’ont preparée, de l’histoire de sa création et jusq’au nom de celui qui l’a rendu possible, c’est allors quélle se raproche le plus d’elle-même. C’est là sa direction véritable. (Blanchot, 1999, p. 293)

Essa concepção se opõe a uma visão pragmática da literatura, que, segundo Rancière, desconsidera o que ele estabelece como o cerne da questão, ou seja, a ruptura da escrita com as belas-letras, inaugurando a literatura nesse sentido específico. Conforme Rancière, a transição de belas-letras para literatura ocorre entre os séculos XVIII e XIX; entretanto, a fábula do “louco da letra”, o Dom Quixote, fundador da literatura, situa-se no início do século XVII, inaugurando a errância da letra sem pai. O cavaleiro da triste figura subverte a relação convencional entre ficção e não ficção, que não lhe diz respeito, substituindo-a pela dicotomia falso-verdadeiro, que aparecem indistintamente na ficção e na não-ficção, as quais perdem a importância. Ficção e não-ficção são pactos da representação, que organizam as relações entre os modos de discursos e os modos de recepção, estabelecendo a arquitetura mimética que sustentava o modelo das belas-letras. Dom Quixote quebra as normas de representação, fazendo prevalecer a lei interior sobre a exterior, que se esfacelava. A boa relação entre a ordem do discurso literário e a ordem das condições, sustentada pela brincadeira séria do não-sério, é desfeita pela crença na verdade dos livros, que deixam de ser diversão para se tornar a sua infelicidade, e sua loucura da crença na ficção contamina Sancho Pança, representante do “bom senso” popular, disseminando a loucura da letra para além dos limites idealizados pelo cavaleiro nostálgico dos feitos heróicos.
É consistente afirmar que Dom Quixote inaugura uma nova relação entre o produtor, a obra e a recepção, mas é importante sublinhar que o texto de Cervantes não foi concebido como tal, tendo adquirido essa condição pelos desdobramentos das concepções de romance desde então. A literatura “não é aquilo que sucede as belas-letras, porém aquilo que as suprime” . Pode-se pensar em termos de supressão ideal, um basta progressivo que tenta passar um rolo compressor no edifício mimético, mas que tem nele ainda, nos séculos vindouros, um vigoroso adversário, que, não obstante a altura, tem uma queda lenta, embora inexorável, ainda que a filosofia tente evitar a desordem literária, sustentando os mecanismos de atribuição de vozes próprias aos diversos corpos.
No dizer de Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos rompem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada.
O rompimento das regras, a quebra das convenções acarreta novas oposições que marcam o texto literário: a oposição ao suporte mítico e histórico, bem como a dispensa do símbolo como referência, como a idéia de um sentido que se coloca atrás da intriga.
Uma vez ruído o prédio mimético, o que sustentará a edificação literária? Na falta da regra externa, deverá substituí-la a regra interior. Rancière aventa três possibilidades de afirmação da potência da obra de arte, que permanecem como “gracejos de comediantes e prefaciadores”: potência da individualidade de seu produtor, potência de sua totalidade fechada sobre si mesma e trazendo ela própria sua regra de unidade, ou a potência pura da linguagem, desviada de seus usos representativos e comunicativos e voltada para seu ser próprio.
É necessário considerar um novo fundamento agregado a essas possibilidades. Ao proclamar sua autonomia em relação ao edifício mimético, a literatura passa a se sustentar em uma heteronomia de outro gênero, “sua identificação com uma potência própria do pensamento, com um modo específico de presença do pensamento na matéria que é também heteronomia do pensamento”. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)
A physis que a tekhnè imitava e completava teve de ser substituída por uma metafísica de natureza diferente, que fosse para o estilo o que a physys era como modelo mimético, levando à absolutização da literatura. Rancière lembra, com Flaubert, que “o estilo é uma maneira absoluta de ver as coisas” (RANCIÈRE, 1996, p. 3), e absoluto pressupõe desvinculação. Desvinculação de quê?
Das formas de apresentação dos fenômenos e de ligação dos fenômenos que definem o mundo da representação. Para que a literatura afirme sua potência própria, não basta que ela abandone as formas e as hierarquias da mimesis. É preciso que abandone a metafísica da representação. É preciso que abandone a “natureza” que a funda: seus modos de apresentação dos indivíduos e as ligações entre os indivíduos; seus modos de causalidade e inferência; em suma, todo o seu regime de significação. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)

Considerando o sujeito escritor como o pai do discurso, e o personagem como seu refém, ou seja, aquele que não deveria ler nem participar da vida do escrito, mas que, para além de sua função ficcional, ainda seduz o filho do povo, Sancho, não estaria o próprio escritor se identificando com o personagem, transformando-se também no louco que cria o “próprio” da literatura, a transgressão, eliminando a paternidade reguladora das convenções? Não seria esta a forma de investigar “a subjetivação que liga a posição do escritor e do narrador à de seu refém” em As iniciais, de Bernardo Carvalho? Não é essa a maneira como “a” literatura se determina, “no jogo das transformações e das reviravoltas da fábula” (RANCIÈRE, 1995, p. 77)? O “próprio” da literatura seria, então, a reescrita do que já foi escrito. “É o puro desdobrar-se ao infinito das combinações que ela autoriza” (RANCIÈRE, 1995, p. 80). É o efeito suspensivo da literatura: a natureza literária de um texto está relacionada a uma historicidade que lhe confere a dramaturgia “das aventuras e dos imperativos da escrita” (RANCIÈRE, 1995, p. 97). A escrita tem sempre um tipo de déficit que está suspenso ao mito de outro escrito.
Numa posição clássica, o escritor onipotente cria seres submissos, o pai gera filhos, fazendo-se mestre de vida ou mestre de jogo; essa posição é exemplificada nas relações internas do romance As iniciais nas tentativas do personagem M., como escritor, de se tornar o senhor dos fatos e dos personagens. Nesse caso, o personagem é instrumento de reflexão sobre a busca da verdade, e a literatura se faz filosofia, postura com a qual o texto de Carvalho rompe.
Para Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos suprimem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada. A literatura não é então apenas a purificação da linguagem em seu interior, muito menos o engajamento impuro.
Em As iniciais, o narrador não se isola na solidão própria da linguagem, nem pretende atribuir aos corpos que ali se movimentam uma linguagem de questionamento ou de alegoria social. Pode-se atribuir a ele as palavras de Rancière a respeito de Flaubert:
Ele faz a aposta insensata de fazer falar a vida muda na língua de uma arte inteiramente transparente. Produz, em suma, aquele estado “neutro” da linguagem de que fala Blanchot, enfiando-se, não no interior da língua, porém na relação enigmática que a pureza do ideal literário mantém com as vidas mudas, ou seja, de fato, com a entrada democrática da escrita na vida de qualquer um e de qualquer vida na vida da escrita. (RANCIÈRE, 1995, p. 101)

A neutralidade reivindicada por Blanchot advém da relação de busca que o escritor mantém com o livro. O livro nunca está pronto; não é ele propriamente que exerce atração sobre aquele que escreve, mas a busca dele. O livro só importa na medida em que ele representa a busca do livro, independentemente dos gêneros e espécies. E é ela que conduz o escritor a neutralizar a escrita literária, em reduzi-la ao ponto neutro e impessoal da linguagem, o próprio da literatura:
(...) plutôt comme ce qui ne se découvre, ne se verifie ni ne se justifie jamais directement dont on ne s’approche qu’en s’en détournant, qu’on ne saisit que là où l’on va au-delà, par une recherche qui ne doit nullement se préoccuper de la littérature, de ce quélle est “essentiellement”, mais qui se préoccupe au contraire de la réduire, de la neutraliser ou, plus exactement, de descendre, par un mouvement qui finalement lui échappe et la néglige, jusqu’`a un point où ne semble parler que la neutralité impersonnelle. (BLANCHOT, 1959, p. 272)

Em As iniciais, as leis que regem o texto são as leis do que Rancière chama “esse mundo de baixo, esse mundo molecular, in-determinado, in-individualizado, anterior à representação, anterior ao princípio de razão” (RANCIÈRE, 1996, p. 4). Aqui, a narração clássica é esvaziada, transformada em blocos de textos que se superpõem e se entremeiam, é a literatura escondendo seu trabalho ao mesmo tempo em que o realiza.
Coloca-se em primeiro lugar a questão da estrutura do texto em si e sua relação com o que o autor chamou romance. Que lugar ocupa o romance na literatura, afinal? Conforme Walter Benjamin, o surgimento do romance decreta a morte da narrativa, porque o romance é livro, é página impressa, seu leitor é solitário, “ele nem procede da tradição oral nem a alimenta” (BENJAMIN, 1994, p. 201). O romance é, portanto, um gênero disperso, transgressor, que não contém verdades, que não edifica, nem forma, não havendo exceção nem para o Bindungsroman, o romance de formação:
A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1994, p. 201)

Rancière considera o romance, por motivos parecidos com os de Benjamin, a escrita fundadora da democracia, a partir do momento em que a letra desincorporada inicia sua trajetória errante, tornando-se a escrita de todos e de qualquer um. À errância da letra em Rancière corresponde a dispersão de Blanchot, mas com uma diferença: o romance, como gênero, em si, é manso, uma espécie de cordeiro em pele de lobo:
Le roman est souvent dit monstrueux, mais, à quelques exceptions prés, c’est un monstre bien éduqué et trés domestiqué. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

A expressão “monstro bem educado e domesticado” refere-se aos romances em geral, que ainda se escondem na “discreta segurança de suas convenções” e na “riqueza de seu conteúdo humanista”.
Não é a existência do gênero, com todas as suas liberdades e audácias aparentes, mas que mantém convenções internas que lhe garantem a sobrevida, que irá aproximá-lo do próprio da literatura, e sim a atitude de busca atormentada daqueles que produzem a escrita e que os conduz ao espaço “fechado, separado e sagrado, que é o espaço literário”:
Ce n’est pas la diversité, la fantasie et l’anarchie des essais qui font de la littérature un monde dispersé. Il faut s’exprimer autrement et dire: l’éxperience de la littérature est l’épreuve même de la dispersion, elle est l’approche de ce qui échappe à l’unité, expérience de ce qui est sans entente, sans accord, sans droit — l’erreur et le dehors, l’insaisissable et l’irrégulier. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

Vamos examinar os componentes de errância e dispersão em As iniciais. De início, percebe-se que não há aqui uma prevalência de qualquer um dos elementos tradicionais da narrativa que o enquadre em alguma tipologia clássica do romance: ação, personagem (indivíduo ou grupo social), espaço, tempo. Nem nas categorias que compõem a evolução do gênero: romance fechado ou aberto, Bindungsroman, romance polifônico, nouveau roman.
Observam-se aqui características citadas por Antoine Compagnon (COMPAGNON, 1999, p. 214) como sendo próprias do que seria o romance pós-moderno: o sentido é indeterminado, a narrativa se questiona a si mesma, autor/narrador/personagens são indefinidos e não mostram o rosto, os bastidores da narração aparecem em forma de um “laboratório” em que um escritor (M.) se exercita, o leitor participa de um jogo que não parece conduzir a nenhum lugar, bem como as demais vozes e corpos presentes. E é a presença dessas características que culminam no que Walter Benjamin considera a crise do romance, num sentido pejorativo, no qual o texto é interioridade pura, não dialoga com o mundo exterior, tornando-se uma atitude épica a contrariu sensu. Mas é nesse “defeito” puramente escritural que a posição de Benjamin se aproxima à de Rancière e Blanchot, com a diferença que a odiosa transgressão, para o primeiro, é a própria condição de existência de literatura para Rancière, e constitui para Blanchot a perda de unidade necessária para que a literatura exista em seu “ponto zero”.
É oportuno lembrar que Michel Foucault, comentando o pensamento de Maurice Blanchot em The thought from outside, afirma que a interioridade pura, deepest interiority, é uma categoria do pensamento, da filosofia, e não do discurso literário. Este leva ao exterior, com a supressão do sujeito falante:
In fact, the event that gave rise to what we call “literature” in the strict sense is only superficially an interiorization; it is far more a question of a passage to the “outside”: language escapes the mode of being of discourse — in other words the dinasty of representation — and literary speech develops from itself, forming a network in which each point is distinct, distant from even its closest neighbors, and has a position in relation to every other point in a space that simultaneously holds and separates them all. (FOUCAULT, 1987, p. 12)

O que Benjamin chama, portanto, interioridade pura, no sentido de perda de ligação com o mundo exterior, será tratado aqui como exterioridade, no sentido dado por Blanchot, do discurso que se desenvolve a partir de si mesmo, rumo ao espaço neutro, que tira da literatura qualquer caráter de mitologia ou retórica.
O texto não se organiza como uma experiência vivida num sistema global de significações, mas caminha para a fragmentação e a dispersão. O próprio título do romance, e a utilização de iniciais para designar pessoas e lugares enfatizam a indeterminação das referências dos enunciados, assim como a identidade do enunciador não se determina jamais, cada texto tem sua existência suspensa aos demais, formando um mosaico textual e humano absolutamente irregular, um patchwork, uma rede de textos que compõem a escrita.
O que vamos chamar texto primeiro mostra um narrador em primeira pessoa, um jornalista de folga por falta de acontecimentos. Eis aí uma referência inicial ao “mundo exterior”, feita de maneira absolutamente imprecisa. Não existe nenhuma verdade que mereça a isenção documental do jornalista. O último acontecimento havia sido a decisão do presidente (de onde?), declarada em entrevista coletiva, de achar que seu país ia entrar em guerra. A voz narrativa considera essa notícia “a última coisa importante de que eu tivera notícia”. É evidente, entretanto, que essa notícia de uma possível participação em uma guerra no outro lado do mundo não tinha importância nenhuma, tudo é um grande vazio.
Esse texto principal pretende ser autobiográfico, mas, segundo a voz narrativa, é um texto desordenado, que seria taxado de obsceno por C., que o uso de iniciais é imitação (cômica? servil? contra-imitação?) de M. (um modelo?), “que isto não passa de um pastiche, de uma paródia das páginas e mais páginas do diário que ele escrevia incessantemente na sacristia”. A voz narrativa renuncia a sua vida e a seu passado para eternizar a conversação, e isso significa separar-se de C., seu antigo amante, e retomar a escrita de M., o que seria considerado por C. uma traição, se ele conhecesse o texto. Traição tanto a C. quanto a M.: a este, pela revelação de aspectos segredados em confiança; àquele, porque a escrita o substituiu no mundo do narrador.
A partir do momento em que o narrador e seus demais personagens pisam no mosteiro em que M. mora, e em cuja sacristia ele escreve, a sua existência fica inteiramente condicionada ao seu diário. É fundamental transcrever aqui o trecho em que se problematizam as relações entre vida, morte e escrita, e as relações entre o texto primeiro e o diário de M.:
Mas há uma coincidência além dessa simbiose com C. que explica em parte, e por um outro ângulo, esse sentimento e essa confusão: é que M. e G. morreram ao mesmo tempo que minha vida acabou também. Pelo menos a vida como eu a tinha imaginado. Sem nunca terem sido próximos, parecem ter me deixado sozinho ao morrerem. Outra coisa é que somente após a morte de M. publiquei o meu primeiro livro, só depois da morte ter interrompido meu diário interminável é que passei a escrever de forma sistemática; e às vezes, quando estou menos seguro de mim mesmo, é como se algum tipo de elo sobrenatural nos unisse, um pacto sinistro, como se os meus livros fossem a herança que ele tivesse me deixado, ao preço de perder a minha própria vida também. A publicação do primeiro, por exemplo, coincidiu com meu reencontro com H. em P., bem depois da morte de G., quando ela me revelou tudo sobre C.: que minha vida já tinha acabado e eu era o último a saber. Foi ela quem, um belo dia, quando eu já não morava mais em P. e estava de passagem, tomou a iniciativa de marcar um encontro comigo, na casa dela, alegando que sentira que eu estava com sede de “informações”, para me dizer que C. não só vivia com outro havia anos (...), mas estava apaixonado, cego, a ponto de escrever um livro com as histórias que o outro lhe narrava oralmente e publicá-lo como se tivesse sido escrito de fato pelo namorado, alcançando um certo sucesso de crítica e público. (CARVALHO, 1999, pp. 17;18)

Os limites dos discursos — o texto primeiro e o diário — que se entrelaçam e se superpõem, não são conhecidos, são de impossível mapeamento, mas podem ser perseguidos no sentido de se investigarem suas existências opostas e complementares. Há, evidentemente, outras escritas que serão examinadas adiante.
C. é um ex-amante do dono da voz narrativa, com o qual estava fundido e confundido, a mesma voz, a simbiose. A morte de M. e G. (marido de H.) determinam o término da vida da voz narrativa, sua solidão. O diário interminável de M. não terminou com sua morte porque foi retomado pelo jornalista, que sacrifica sua vida pela herança da escritura. H., a viúva de G., acabou sendo a porta-voz da morte do jornalista, de sua ruptura com seu duplo, C., que desenvolveu sua própria escrita dissociada da dele. A voz narrativa vê este texto como vingança, como revolta contra a herança de M., de ser obrigado a dar-lhe continuidade, uma maneira de ironizar sua sina, revelando-a, mostrando que tem consciência dela. Existe aqui uma relação entre escrita e insanidade, entre escrita e morte, entre escrita e desastre, que conduzem à parole neutre de que fala Blanchot. É o escritor que se sacrifica por sua obra, que se torna outro, que se torna ninguém para ir até o fim.
Onde está o fim? Onde está essa morte que é a esperança da linguagem? Mas a linguagem é a vida que carrega a morte e nela se mantém. (BLANCHOT, 1997, p.323)

A linguagem do narrador de As iniciais só é possível com a morte de M., e com a “morte” do próprio narrador, ou a morte da vida que ele imaginava ser possível ou cara. Ele está condenado ao que Blanchot se refere como a “maldição dos renascimentos”: o dono da voz narrativa de As iniciais vive mal e morre mal, e está condenado a reviver, tantas quantas forem as vezes necessárias para transformá-lo num bem-aventurado, um homem realmente morto. Parece-nos, entretanto, que a busca dele não vai ter um final, e o ciclo da maldição vai-se repetir indefinidamente.
A própria paixão por C., que tem aqui um termo mortal, nasceu da condição dele, C., de personagem (no mundo criado por M.), narrador e autor (confundidos num livro escrito pelo próprio C.). Sendo assim, M. deu C. de presente ao jornalista, e depois lho tirou ao morrer. C. conheceu o da voz narrativa logo após a morte de um amigo filósofo, assim como conheceu o novo namorado após a morte de M., e, conseqüentemente, do jornalista também. A herança mortal, insana, é também uma regra diabólica concebida pelos poderes divinos de M. Diante disso, este pastiche representa uma “reação, uma espécie de provocação” (p. 19), não mais uma continuidade apenas. O texto que nega o texto.
Para investigarmos a extensão dessa reação, examinemos primeiramente as características da escrita de M. Vamos partir do pressuposto de que o diário de M. estabelece uma relação ordenada entre a ordem do discurso e a das condições, construindo um texto representante das belas-letras, na concepção de Rancière, fundado na estética da representação, um texto escrito na sacristia, lugar onde se guardam os paramentos e demais objetos do culto. Vamos chamá-lo de contra-texto, o elemento de contraste com o texto primeiro.
Vejamos a postura do produtor do texto, M. A voz narrativa da escrita primeira atribui a ele poderes divinos; ele exerce sobre seus amigos e sobre o mundo à sua volta um fascínio irresistível, recriando e redefinindo o mundo, dando-lhe “uma importância quase mitológica” (p. 26). O escritor é, então, senhor do mito e senhor da mística, profeta e pai de seu mundo de letras. Ele organiza as coisas e pessoas, em sua “mistificação do mundo”, que em suas mãos ganhavam uma “aura mítica” (p. 34).
Episódio significativo dessa postura onipotente do escritor é o efeito que nele produziu a frase do administrador de grandes fortunas:
A religião no melhor e no pior dos casos é apenas um louvor de si mesmo, já que não passa de uma adoração do criador pela criatura. (p. 33)

M. ficou ressentidíssimo com o discurso do administrador, porque viu nele uma alegoria óbvia: a religião é a literatura, o Criador é o escritor, e o escritor é ele, M. O administrador é visto então pelo escritor como um personagem rebelde, que se libertou das rédeas estabelecidas. Ele deve ser, então, punido com o silêncio: o escritor não lhe dirige mais a palavra durante o jantar, e corta o personagem de seu diário:
Como se não existisse, como se o administrador não tivesse nem nascido, seu nome não aparece nem uma única vez em todas as páginas do diário em que M. descreve aquele jantar. (p. 35)

Além de introduzir no espetáculo o perigo da rebelião dos personagens, evidenciando sua independência de opinião e quebrando a hierarquia dos representados, a observação do administrador “reduzia a obra de M., desmontando-a, ao projeto convencional de criação de uma religião” (p. 33), em que ele “tentava usurpar de um Criador exterior e superior o poder da criação” (p. 34).
Poder de criação é poder de conquista, é apoderar-se da realidade e transformá-la, negando-a, e atribuindo-lhe um sentido valendo-se das convenções de representação. Vimos com Blanchot que a presença excessiva do pai afasta a obra de sua absolutização. E essa ânsia de ocupar o espaço deixado vazio pela ausência dos deuses é enganadora:
Ambition étrangement trompeuse. Illusion qui lui fait croire qu’il sera devenu divin, s’il se charge de la fonction la moins divine du Dieu, celle qui n’est pas sacrée, qui fait de Dieu le travailleur des six jours, le démiurge, le “bon à tout faire”. Illusion qui, de plus, voile le vide sur lequel l’art doit se refermer, qu’il doit d’une certaine manière préserver, comme si cette absence était sa vérité profonde, la forme sous laquelle il lui appatient de se rendre présent lui-même dans son essence propre. (BLANCHOT, 1999, pp. 290-291)

Rancière relaciona esse escritor onipotente ao mestre de representação ou mestre de jogo, que dispõe as marionetes no palco, ou as peças no tablado, que faz de seu personagem seu refém, o fraco de espírito:
M., por incrível que pareça, também se manteve calado de início, apenas observando, como se já tivesse distribuído os papéis e agora soltasse as rédeas dos personagens para ver até onde eles eram capazes de ir, mas pronto para retomá-las ao menor sinal de que as coisas estivessem saindo do seu controle.(p. 32)

O espetáculo da escrita, promovido por M., é reforçado pelas relações do escritor com o cenário que ele mesmo monta, encenando, além de outros, o espetáculo das velas e o dos fogos de artifício. No último caso, verificamos mais uma rebelião de personagem, o ex-campeão de tênis, irmão de A., que grita antes da hora, assumindo clandestinamente o comando do evento, ameaçando terrivelmente a hegemonia do escritor e, naturalmente estragando o efeito pré-estabelecido, desorganizando o que estava organizado, “fechando a cena com a sua assinatura aparentemente desastrada” (p. 54).
Os rojões foram disparados, mas de maneira desordenada, e não houve registro do espetáculo, porque a câmara de vídeo e a máquina fotográfica não estavam prontas. Estava arruinada a representação, o grito fora da hora convencionada equivale ao ataque de D. Quixote às marionetes de mestre Pedro, que faz ruir o edifício mimético, na última cena da noite.
Sai de cena o espetáculo de M., entra outro texto convencional, o “roman à clef” da herdeira dos laticínios, que pretendia expor a banda podre da alta sociedade e levar a seus leitores uma lição moral, “num nível mais elevado, espiritual”. O efeito produzido pela referência ao romance, que imitava o estilo de M., foi desastroso, “a herdeira era uma idiota e seu romance a sua mais perfeita expressão” (p. 61). M. jamais poderia permitir que qualquer texto fosse exaltado em sua presença, além do seu próprio. O texto da herdeira dos laticínios não tem longa duração na cena do romance, e é retirado por inconsistência própria e pela ação de M., o todo-poderoso que acaba sem poder.
Além desses textos, o texto primeiro reúne uma longa seqüência de outras escritas: o livro de C., do qual ele nunca escreveu uma linha, a revista editada por T., a receita de bolo, os apontamentos para a aula de matemática, a narrativa minúscula do próprio narrador sobre a traição involuntária, as sinopses dos futuros romances do autor, a carta de amor que o narrador escreve a C. sem conhecê-lo, o conto em que A. é um monstro, a entrevista com o mágico e com o pintor suíço, a história do milionário escocês que salvou o dançarino japonês de butô, o romance de R.M., inventor da “fabulação minguante” etc. O narrador cria sua heresia a partir do texto de M., e depois ele tem a infelicidade de ser invadido por esse e outros textos. A literatura se afirma através dessa fábula privilegiada que constitui a demolição do edifício da representação.
O texto primeiro se contrapõe à escrita de M., embora seja uma herança dele e de todos os demais textos que permeiam a escrita. Nas relações entre eles, e na recepção do narrador, esses textos compõem um mosaico desprovido das características miméticas dos textos originais. E o que confere ao texto como um todo esse afastamento da dinastia da representação? Vamos lembrar então, com Blanchot, a questão da passagem para o “exterior”, o desaparecimento do sujeito, o desdobramento do discurso a partir de si mesmo, a linguagem “getting as far away from itself as possible” (FOUCAULT, 1987, p. 12).
O narrador afirma que este texto é cópia, pastiche, paródia do texto de M., mas ao mesmo tempo ele trai a confiança do escritor, ele apresenta personagens que foram riscados do romance de M., registra diálogos que não aparecem no texto antecessor, o próprio narrador e C. sequer tinham sido mencionados no diário, nos apontamentos daquele dia. O próprio narrador admite que ele nunca iria fazer “nada nem ao menos parecido com o que escrevia M.”. A própria inicial do narrador só aparece duas vezes em milhares de páginas no diário de M. Há, sim, um desdobramento de textos que configuram a metamorfose dos textos em escrita órfã. A estranha relação do narrador com C. é exemplo desse desdobramento. Ele conheceu C. graças ao mundo que M. criou nos romances, em que o amigo C. vira personagem. Essa fantasia construída na leitura de M. ensejou a escrita da “carta de amor, desvairada” (p. 19), ao ler um livro de sua autoria, e sua paixão por C. ao ler um livro que ele havia escrito, confundindo autor com narrador. A literatura aproximou-o de C., e posteriormente o tirou dele.
Coloca-se aqui a questão da errância do narrador em primeira pessoa, que se apresenta como aquele que faz asserções, que relata algo que se supõe tenha sido vivenciado por ele. Nas relações ordenadas entre os modos de discurso e os modos de recepção o enunciador elege um pai, o eu da narração, que se anuncia como diferente do autor, apresenta as personagens do relato como fictícias, apresenta seu mundo e conduz a ação. Essa a posição ideal do narrador, que aqui se desfaz. Existe um deslocamento entre o narrador tradicional do edifício mimético e o narrador do texto primeiro de As iniciais. Este não se coloca como todo-poderoso, como organizador do espetáculo, como condutor dos personagens e da ação, e chega a afirmar que “por mais que tentasse imitá-lo nunca teria autoridade suficiente para converter aquelas pessoas em meus personagens" (p. 27). Ao contrário, ele é sempre claudicante, indeciso, sua fala é pontilhada por expressões como “parece que só eu não entendi”, “só eu continuei a acreditar”, “não é implausível”, “óbvia, menos para mim” etc. Ele é o crédulo, o que não vê o óbvio, o que não tem malícia, o que duvida de si o tempo todo, o ingênuo. O narrador se desautoriza a si mesmo, e não realiza sua função.
Ele lida com o imponderável e com a morte, sofrendo uma desincorporação ou desnaturação que o transforma em escritor pela morte, pela perda, pelo terrível fascínio do livro que é sua pena de morte. Enfrentamento da morte no nascimento da escrita, como queria Blanchot: o escritor só vale por seu poder de ausência da obra. A morte de M. acaba sendo o fim da vida do narrador para que ele dê continuidade à literatura, perdendo quem mais amava.
Além dos textos que se intrometem e fogem de sua vida, o herói se depara com a mensagem misteriosa das iniciais VMDS na caixinha de madeira entregue a ele pelo Zulu, e que acaba conduzindo-o a essa busca insolúvel. Ele é inseguro até na segurança:
Não ver que havia ali uma mensagem era querer tapar o sol com a peneira, eu pensei de início, e essa suposição, embora um tanto incerta, serviu apenas de base para outras bem mais. (p. 62)

Não querer tapar o sol com a peneira sugere certeza, que imediatamente se transforma em suposição e em seguida em incerteza. É a errância do significado, do referente, não apenas do pai da letra; é a orfandade do significado. É o texto que chega ao herói, misterioso, a letra errante, sem pai, que circula sem destino. Tanto o remetente quanto o destinatário podiam ser várias pessoas, mas afinal o narrador assume ser o destinatário, assume uma certa mensagem e decide que deve ir à casa de A. É a mensagem entalhada a canivete, inscrita na madeira, que o conduz a um novo espetáculo que nada esclarece, a cena da loucura da herdeira dos laticínios, entre gritos e murmúrios. A cena dos gritos da herdeira admitia várias possibilidades sobre o remetente da mensagem, sobre o destinatário, sobre a mensagem em si, sobre a verdade do que acontecia, ou de sua teatralidade, da qual o narrador seria o único espectador.
Muitos anos depois, o narrador se lembra daquela noite como “uma das noites mais perturbadoras de minha vida” (p. 82), um jantar à luz das estrelas, como outro qualquer, porém inesquecível, uma situação confusa em que ele não consegue determinar nem o remetente nem o destinatário da mensagem. Um discurso sem conclusão, sem solução, a entrada democrática da escrita na vida do narrador, com seus mistérios e indagações, sua busca de sentido na ausência deste, a perturbação da espera de resposta ao mistério das iniciais. É a fábula privilegiada daquele que teve a infelicidade de achar um escrito misterioso, que não conduz a nenhuma resolução, inscrevendo-o num círculo sem fim de busca da escrita.
A segunda parte do romance é o que poderíamos chamar de segundo ciclo de peregrinação do narrador em sua busca. O cenário é uma mansão em cujos jardins desenrola-se uma festa. A primeira grande surpresa e perturbação do narrador é a presença de D. (assim como, na primeira parte, A. o havia impressionado). A presença de D., e a crise econômica, supõe-se, foram as causas do desmaio do narrador.
E as histórias se sucedem. A moça sobrinha da anfitriã conta ao narrador sua versão da história de D., a qual lhe havia sido contada por L., aos sussurros, roçando a orelha, uma história muito diferente do que dizem por aí. L., o sedutor que gosta de meninas, diz à sobrinha da anfitriã que D. é o assassino de um milionário que usa nome falso, e que tem o costume de falsificar documentos históricos de fatos que nunca aconteceram. Pela história oficial, D. é o maior pintor de paisagens do final do século XX, que fazia sua originalidade pelo anacronismo. Sua busca da mais bela paisagem do mundo o havia levado à loucura, até que, de tanto reproduzir a natureza, acabou pintando o real representado.
Num determinado momento de seu depoimento, a sobrinha da anfitriã acusa o narrador de desmemoriado, aquele que não tem condição de reconstituir o passado; ele não pode, portanto, ser narrador, pois não tem nem o poder de transformação e nem de construção.
Pela história de L., passada ao narrador pela sobrinha da anfitriã, D. era amigo de um advogado que administrava a fortuna de um milionário que sumiu sem deixar vestígio. Quando o milionário voltou para cobrar sua fortuna, o advogado não teve como devolvê-la intacta, daí o possível pacto com D. para eliminar o milionário.
Outra versão sobre D. era a de que ele tinha vindo ali por causa de uma mulher condenada por uma doença incurável e rara. Por medo da morte, D. a abandona, e milagrosamente ela se restabelece e arranja outro homem.
Entremeiam-se outras histórias e textos, como o poeminha de L., pura filosofia de botequim, vaticinando a morte de todos os viventes e a história contada por um rapaz a uma moça que fazia uh-uh, envolvendo D. também. A moça, a quem o contador da história pretendia seduzir, afastou-se dele ao ouvir o final, que era a única parte verdadeira da história. Há ainda a história da antropóloga, presa e torturada por engano, sobre os índios da tribo I.
Ao final da tarde, todos se afastam, e abandonam os textos ao vento, o papel do poema de L., o esquema de amor do rapaz à moça que fazia uh-uh, o papel amassado em que a antropóloga fizera uma confusão de iniciais para explicar o caso dos índios I. Tudo é sugestão, invenção, detalhes não são lembrados, o narrador nunca obtinha respostas quando perguntava coisas específicas como datas, nomes ou lugares.
O segundo ciclo da busca tem semelhanças com o primeiro: D. poderia ser A., o administrador de grandes fortunas poderia ser o advogado, a moça com a doença incurável poderia ser a herdeira de laticínios, o ator brasileiro reaparece com sua voz “estridente e desgraçada”, falando sobre o fim do capitalismo em meio a tiradas literárias e científicas.
Após o discurso sobre o fim do capitalismo, o câncer e o universo, o ator resolve encenar com a anfitriã um texto de sua autoria, um diálogo entre Santa F. e Deus sobre o suicídio.
O encontro do narrador com o ator brasileiro se dá quando ele abandona o jardim onde o vento varria textos e demais objetos. Andando pelo corredor largo e branco, ele passa pelo ator de voz estridente e segue sua busca, atraído pelos textos, até que divisa alguém, que, pela voz, ele julgava ser D., falando para um grupo de pessoas. Parecia ser a metamorfose de A. em D., o único que poderia ter a chave do enigma das iniciais. D. contava a história de um aborígene australiano que tomava remédios para sobreviver.
Na primeira parte, o contra-texto que confirma o texto; na segunda, os textos (de sedução e de indeterminação) que não funcionam e acabam sendo varridos pelo vento. O final é o eterno insolúvel, é feita a pergunta que devia ser feita, a única pergunta pertinente no meio de tanta tolice. E a história recomeça, “Em agosto de 19..”, a mesma história que vaga errante, a letra sem pai, os loucos da letra.
A pergunta, afinal, foi feita. Mas e a resposta? Terá o narrador salvado sua Eurídice resistindo a olhar seu rosto, ou teria posto tudo a perder captando a visão maravilhosa de sua imagem?
Eis aí as heresias da letra sem corpo, sua manifestação em corpos deslocados, metamorfoseados, tornados neutros e imprecisos, discursos sem afirmação, sem solução e sem conclusão, independentes de qualquer solo nativo, espíritos errantes no próprio espaço literário, que se desvincula de mitos, símbolos e referências, que se absolutiza.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLIEZ, Éric. Da impossibilidade da fenomenologia. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 100. O trecho citado por Alliez é uma intervenção de J. Rancière num encontro organizado pelo Colégio Internacional de Filosofia por ocasião da edição de L’Être et l’événement, publicada em Le Cahier du Collège International de Philosophie, n° 8, Éditions Osiris, 1989, p.211.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 323.
BLANCHOT, Maurice. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959, p. 272.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1999, p. 293.
CARVALHO, Bernardo. As iniciais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 114..
FOUCAULT, Michel, and BLANCHOT, Maurice. Maurice Blanchot: the thought from outside / Michel Foucault as I imagine him. N. York: Zone Books, 1987, p. 12.
PLATO. Phaedrus. Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 1991. Translated by Benjamin Jowett, p. 125.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
RANCIÈRE, Jacques. “Deleuze e a literatura”, p. 3. Texto apresentado nos “Encontros Internacionais Gilles Deleuze, no Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, na UERJ, nos dias 10, 11 e 12 de junho de 1996. Tradução de Ana Lúcia Oliveira.

Friday, March 02, 2007

MUITOS TEXTOS POÉTICOS DE 1945 A 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
LITERATURA BRASILEIRA IV
Cid Ottoni Bylaardt

MUITOS TEXTOS POÉTICOS DE 1945 A 2007

MÁRIO QUINTANA

Fragmentos do Caderno H


A IMAGEM E OS ESPELHOS (p. 58)
Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão-somente dos espelhos.
A coisa em si, nunca. A coisa em ti.
Um pintor, por exemplo, não pinta uma árvore. Ele pinta-se uma árvore.
E um grande poeta — espécie de Rei Midas à sua maneira — um grande poeta, bem que ele poderia dizer:
— Tudo o que eu toco se transforma em mim.

ENTOMOLOGIA (p. 177)
A borboleta mais difícil de caçar é o adjetivo.

TRÁGICO DILEMA (p. 39)
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, um dos dois é burro.

NÃO DESPERTEMOS O LEITOR (p. 52)
Os leitores são, por natureza, dorminhocos. Gostam de ler dormindo. Autor que os queira conservar não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas. (...) Pois não é mesmo tão bom falar e pensar sem esforço? O lugar-comum é a base da sociedade...

CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO (p. 5)
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.

A BORBOLETA (p. 19)
Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: “Olha uma borboleta!” O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: — Ah! sim, um lepidóptero...”

SINÔNIMOS? (p. 103)
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.

PARÁBOLA? (p. 9)
Os espelhos partidos têm muito mais luas.

A FACE E O ESPELHO (p. 77)
Assim devia ser a relação de autor para leitor: uma face nua num espelho límpido. Mas é tão difícil... Ou a face está mascarada ou o espelho embaciado.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO

CATAR FEIJÃO

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e o oco; palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

(in A educação pela pedra)


LEMBRANDO MANOLETE

Tourear, ou viver como expor-se;
expor a vida à louca foice

que se faz roçar pela faixa
estreita de vida, ofertada

ao touro; essa estreita cintura
que é onde o matador a sua

expõe ao touro, reduzindo
todo seu corpo ao que é seu cinto,

e nesse cinto toda a vida
que expõe ao touro, oferecida

para que a rompa; com o frio
ar de quem não está sobre um fio.


HENRIQUETA LISBOA

ESTA É A GRAÇA

Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?
Talvez a noite com uma nova estrela,
a pátina de ouro do tempo,
alguma cousa de precário
assim como para o soldado a paz?

Com grave mistério de reposteiros
um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
do bulício das samambaias no horto.

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.

O mesmo silêncio da madrugada
prenuncia, sem dúvida, um evento
que já não é o grito da aurora
ao macular de sangue a túnica.

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar, em holocausto,
as próprias cordas — demasiado tensas


JAULAS

De uma para outra jaula.

Com farrapos ou plumas,
cerceando balbucios ou vascas,
é o berço minúscula
jaula.

A cela, a varanda, a casa,
o jardim, a cidade,
com seus itens e suas parlendas,
são enredos — de vime ou ferro —
de uma próspera
jaula.

O alto céu
disposto em toldo, tombando
sobre os flancos da terra,
é uma vistosa
jaula.
Com seus planetas e suas lunetas
assestadas.

Também é o cérebro: de si próprio
arquiteto e
jaula:
cego além dos relâmpagos.


ACIDENTE

Quebra-se o púcaro de fino
cristal vibrante contra lájea:
restam avelórios feridos.

Do vento escuto o balbucio
por entre os galhos das árvores.
Percebo-lhe o timbre, o ritmo.
Porém não as palavras:
interceptadas, interceptadas.
(Flor da morte)

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.
Não faças poesia com o corpo
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à
efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no
escuro são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equivoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das
casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto
à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espere que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

1. Metapoema — verdadeiro manifesto de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Correio da manhã, de 16-1-1944 e depois, em A Rosa do povo, em 1945.

JARDIM

Negro jardim onde violas soam
e o mal da vida em ecos se dispersa:
à toa uma canção envolve os ramos,
como a estátua indecisa se reflete

no lago há longos anos habitado
por peixes, não, matéria putrescível,
mas por pálidas contas de colares
que alguém vai desatando, olhos vazados

e mãos oferecidas e mecânicas,
de um vegetal segredo enfeitiçadas,
enquanto outras visões se delineiam

e logo se enovelam mascarada,
que sei de sua essência (ou não a tem),
jardim apenas, pétalas, presságio.
(Novos poemas)


DISSOLUÇÃO

Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Vazio de quanto amávamos,
mais vasto é o céu. Povoações
surgem do vácuo.
Habito alguma?

E nem destaco minha pele
da confluente escuridão.
Um fim unânime concentra-se
e pousa no ar. Hesitando.

E aquele agressivo espírito
que o dia carreia consigo
já não oprime.
Assim, a paz, destroçada.

Vai durar mil anos, ou
extinguir-se na cor do galo?
Esta rosa é definitiva,
ainda que pobre.

Imaginação, falsa demente,
já te desprezo. E tu, palavra.
No mundo, perene trânsito,
calamo-nos.
E sem alma, corpo, és suave.
(Claro enigma)


REMISSÃO

Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, e suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo de teu ser?

(Claro enigma)

OFICINA IRRITADA

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
Cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
Claro enigma, se deixa surpreender.
(Claro enigma)

MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(Claro enigma)


ENTRE O SER E AS COISAS

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.


ANÍBAL MACHADO

Fragmentos de Cadernos de João

O melhor momento da flecha não é o de sua inserção no alvo, mas o da trajetória entre o arco e a chegada ¾ passeio fremente.

Não te embales muito na miragem do longe e do depois, a fim de não perderes o que arde invisível no perto e sopra em silêncio no agora.

Dentro mesmo da opacidade do irracional, colocar a mina que vai explodir e alargar a área a ser iluminada.

Ninguém pode abrir sozinho o seu túnel pessoal para a claridade do dia, sem o risco de morrer sob os entulhos.

Fonte fechada ou diamante encoberto ¾ a certeza de que os guardamos em nós mal consola da demora de fazê-los um dia correr e reluzir para todos.

TOPOGRAFIA DA INSÔNIA

Mudar de lado, mudar de lençol, de idéias, de mulher, mudar de quarto, de cidade, mudar de profissão, correr para longe, afastar-me do foco... fugir... dormir.

Meu maior receio é ficar acordado até o fim do mundo: ¾ tenho quase certeza!

Não se pode dormir em mim com esta barulheira.

Passeatas, reclamações, discussões sem resultado ¾ tudo na parte da frente da cabeça, onde se estão juntando os ossos do mundo.

Vou mudar-me para os pés: de lá será mais fácil fugir.

A questão é que não acaba nunca de desenrolar-se essa película interminável, com o negativo de todas as imagens do dia...

Há raios solares captados. Por que não haverá uma essência de Noite para se pingar nos olhos?
(MACHADO, p. 123)

Abandonei a cabeça. Foi o único jeito: arranjei outro eixo em torno do qual vou organizando como posso um novo eu, próprio para receber o sono.
(MACHADO, p. 123)

A insônia não é propriamente a impossibilidade dormir. A insônia é uma entidade viva, megera impostora, filha perversa da ausência do sono.
(MACHADO, p. 123)

A B C DAS CATÁSTROFES

Qualquer que seja a arquitetura dum edifício, seus escombros obedecerão ao estilo barroco.

No extremo da velocidade, o homem que se arrebenta com o seu veículo contra a parede morre certo de que atravessou um corpo transparente.

Depois do incêndio, as vítimas vêm, vestidas de branco, visitar os escombros.

Um pedaço de perna salvo de uma catástrofe não pertence a ninguém: é um pedaço de perna.

No estado de ruína os velhos prédios se convertem à religião...

A primeira e ultra-rápida sensação que se experimenta bem no começo de um desastre é de injúria inopinada, de agressão injusta.

A terra é uma explosão em prosseguimento.


Enquanto a natureza diminui suas catástrofes, o homem multiplica seus desastres.

No desastre instantâneo há uma fulguração que não é do sol nem de nenhuma luz exterior.


JOSÉ PAULO PAES
Prosas seguidas de Odes mínimas

AO ESPELHO

O que mais me aproveita
em nosso tão freqüente
comércio é a tua
pedagogia de avessos.

Fazem-se em nós defeitos
as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
a profundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.

Entretanto, sem ti
sequer nos saberíamos
o outro de um outro
outro por sua vez
de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.

Isso até o último
vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo
anterior, posterior
a tudo, isto é, a nada.


AOS ÓCULOS

Só fingem que põem
o mundo ao alcance
dos meus olhos míiopes.

Na verdade me exilam
dele com filtrar-lhe
a menor imagem.

Já não vejo as coisas
como são: vejo-as como els querem
qie as veja.

Logo, são eles que vêem,
nmão eu que, mesmo cônscio
do logro, lhes sou grato

por qnteciparem em mim
o Édipo curioso
de suas próprias trevas.


À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas

mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia.

Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.

PAULO LEMINSKI

AVISO AOS NÁUFRAGOS

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
(Distraídos venceremos)

TEXTOS TEXTOS TEXTOS

malditas placas fenícias
cobertas de riscos rabiscos
como me deixaste os olhos piscos
a mente torta de malícias
ciscos
(La vie en close)

PLENA PAUSA

Lugar onde se faz
o que já foi feito
branco da página,
soma de todos os textos
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
(Distraídos venceremos)

MANUEL DE BARROS

O livro das ignorãças

1a. parte
UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO

As coisas que não existem são mais bonitas
FELISDÔNIO

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para
morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num
fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre dois
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma

III

Repetir repetir ¾ até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das grandezas do ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
Criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas sim para som.
Então, se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos ¾
o verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto âs três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato v~o crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

XI
Adoecer de nós a Natureza:
¾ Botar aflição nas pedras
(Como fez Rodin).


XII


Pegar no espaço contigüidades verbais é o mesmo
que pegar mosca no hospício para dar banho nelas.
Essa é uma prática sem dor.
É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode
modificar os seus gorjeios.


XIII

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas
razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul ¾
Que nem uma criança que você olha de ave.

XIV

Poesia é voar fora da asa.

XV

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o
abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um
primal peixe deixe um termo erudito. Aplique na aridez
intumescências. Encoste um cago ao sublime. E no
solene um pênis sujo.

XVI

Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda a
espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades? Santificado pelas
imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

XVII
Em casa de caramujo até o sol encarde.


XVIII
As coisas da terra lhe davam gala.
Se batesse um azul no horizonte seu olho entoasse.
Todos lhe ensinavam para inútil
Aves faziam bosta nos seus cabelos.

XIX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

XX
Lembro um menino repetindo as tardes naquele
quintal.

XXI
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou
no Viterbo —A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
— Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
—.Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
— Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
— Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc
Etc
Etc
Maior que o infinito é a encomenda.


ADÉLIA PRADO


EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.


COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.


ANTES DO NOME

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o ‘de’, o ‘aliás’,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave,
surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssímos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

HORÁCIO COSTA

NEGRA

já escrevi “tentei tudo”
já te escrevi que já me tinhas vist
o não como um gato mas seu novelo
enrolado em teus babados:
queria perder-me
na periferia do teu corpo
respirando o ar que o que exalas
¾ frio? fumo? perfume? compulsória epifania? —modifica
ou nos faz
— hilário gás lacrimógeno? —crer que modifica

negra mina
aqui me tens de novo:
persegui teu rastro
& consultei horários que levavam
à tua evasiva região
servi compêndios & li filosofias
& abracei meu umbigo & sonhei
& abri dicionários & me tornei
expert em trívía
& aqui me tens
de novo

& aqui me tens
irreduzindo-te
imemorial oh desmemoriada:
volteias o rosto
para a escuridão em que procrias
tuas dezenas de ninhadas cegas
com teus peitos duros & teus gestos puros
teu escarninho sorriso desdentado
tua baba de loucura & sabedoria

musa: aqui me tens
mais uma vez vim ouvir-te
sussurrar
tua viscosa & negra

palavra
(Quadragésimo)


MANUEL BANDEIRA


FLABELA

F L A B E L A

flébil
lábil
isabela
nota e núbil
(Estrela da tarde)

A ONDA

A O N D A
a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda
(Estrela da tarde)


ROSA TUMULTUADA


a
t
te a doro
n
i
a da
tu m ul tu
ro sa
n
i


(Estrela da tarde)



HAROLDO DE CAMPOS


ouvindo a sentença da sibila

a escala vegetal:
as samambaias
que dependuram no ar
o verde semprelindo
e cumprem seu destino
como rindo

a escala mineral:
a cristalina
geometria do geodo
onde se incrustam
ametistas : qual no útero
o ovo
concluso em seu
brancor - brancúsi
elas —
presas da roxa luz de sua sina —
fascinam-se
fechadas na clausura das faíscas

a escala animal:
esta pata felina
que prendes entre os dedos
e aveluda
vigiada por um par de olhos safira
com certeza mais próximos do enigma

do que os teus
olhos cuja razão
castanho-clara
aparta-se do vero por um véu
(ainda mesmo quando mudos fosforescendo aqueles outros
estes assistidos
do elocutório gesto das palavras)

despossuindo a cifra
interrogas
sob o arco dos sobrolhos
senescentes
o giro tardo-rápido da vida


porcos-espinhos e anêmonas
borboletas e aves de rapina
a lenta lesma ensimesmada
o besouro de antena purpurina
todos — a multiviva zoosfera —s
abem do decreto e da consigna

encurta-se o caminho
e continuas
no azimut do zero:
outra escala te rege —
persevera
(Crisantempo)



ad carminem

uma estátua de
luz em porcelana
esculpida
(se possível fora)

um eros como
pórfiro acendido
aceso em seda
sol vazado em vinho
cor de topázio-mel
— em vinho feito vida —
iluminando por detrás
a pele
que à superfície oferta
a tez moreno-clara
onde a estação se interioriza
e encarna

a testa curvilínea
em diadema
o perfeito nariz
as geminadas
luminárias dos olhos
entre-alado escarlate
a boca em beijo púrpura

concisa e
concedendo-se

onde vênus
entre torsões de nu
de insurrectos tritões
mármores rege

onde a beleza fecha o ciclo
e incendeia
um tórrido colar de diamantes
— no jardim de vênus —
ao caduceu se enroscam
turgescendo
corais gozosos
ópalos coleios
colubrinos enredos
de cetim

teu triunfo
em troféu
então verões suspende
e marte em março
encarceras
como se enfreia um ginete
de escumas renitente

e tu
conclusa e tácita
afogueias
com um simples olhar
o circum-giro
do relógio carnal
minutos quase horas
comovendo

tu
feminino eterno
resumido
na breve configura de um aceno:
morre-me e me desmorre
v i v o
p 1 e n o.

oportet

preciso
é ter paciência
decantar os vinhos
reler um verso velho que o citrino
sumo dos limões
verdecendo acidula

preciso
é ter ciência
depurar do limo
a água que filtra na palavra luz
o hino do menino char a voz
a vólucre voz
o timbre sibilino
do melro de ouro que clausura a aurora

preciso
é ter ausência sutileza
tactos
amor ( o ato e os entre-atos)
dor prestimor querência
para fazer deste papel
poema
desta que mana do estilete azul
escura tinta esferográfica

preciso é ter
demência
obsessão
incerteza
certeza

escuridão gozosa
graça plena
fogo liquefeito
para fazer da tinta e da madeira
apisoada em polpa
que na cortiça antes portava
como brasão teu nome:
a coisa
o corpo
a coisa
em si
a dupla valva
o lacre sob as pubescentes sílabas
o preciso desenho
que como ao deus de adão de uma costela
dá-me fazer deste papel poema e da insinuada
tinta faz
mulher
(Crisantempo)

AFFONSO ÁVILA

demônios das três da tarde

do inferno em seu terceiro cír-
culo os demônios das três da tarde
baixam e a estufa do cir-
co de concreto e fibra arde
ao inútil acionar do cir-
culador de ar no máximo do alarde
do acelerar os pinos do cir-

cuito de ar condicionado ao ar de
um cigarro não convencional de chofre
ardendo em combustão de enxofre
feito de asco sufoco e tédio
na paralisia às três em pino do reló-
gio fora foge foge fo-
ge os demônios dominam o prédio
(A lógica do erro)


marcado para morrer

não há fuga para polifemo
não o salva vão o verso de góngora
marcou-o a ferro o ferrete extremo
da beleza a bélica amazona
feriu-o nas têmporas e o tempo
estendeu sua tenda sobre a hora
da verdade velho testamento

de lides ou deslizes desforras
tribais tintas do sangue da espé-
cie exângue galas de galaté-
ia frecha envenenada fenda
de apunhalada poesia ultraje
filme de não medida metragem
projetor desligado the end
(A lógica do erro)

heurística

ora orar claro
ora orar escuro
escrever mole
escrever duro
ora o ver avaro
fechado o olho a muro
ora o ver a fole

aberto o olho a furo
e do agora fazer o on-
tem e do ontem fazer as on-
das do mar melhor os ci-
mos da montanha o vale
de lágrimas o encalhe
em terra da astronave si
(A lógica do erro)


AUGUSTO DE CAMPOS

rapidalentamente
rapid
alenta
mente
o tempo
a v a n ç a
f u j o de m i m
e assisto à minha fuga
aquiles não alcança
a t a r t a r u g a
só o tempo não se cansa
e ruga a ruga
o velho mata em si
sua criança
(NÃO poemas)

desplacebo


bebo
à
poesia sem placebo
clareza de cristal
dureza de rochedo
sem mídia sem média sem medo
da contramão da vida
ao beco sem saída
sentir o
so
ss
os
ouvir as pedras
quebrar os espelhos
até o último round
o último suspiro
se eu cair (pound)
não caio de joelhos
(NÃO poemas)



HILDA HILST

TEMPO - MORTE

I

Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas? Tempo.


Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas? Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas? Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu? Tempo.

II
Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.

Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.

Fecha feridas, é ungüento.
Mas pode abrir a tua mágoa
Com a sua fina faca.

Estanca ventura e voz
Silêncio e desventura.
Imóvel
Garrote
Algoz

No corpo da tua água passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.

III

Calmoso, longal e rês
Tu não o sentes
Nem vês.

Atravessa lerdo
O adro do teu desgosto.

Na jubilância escorrega
Mas depois passa
Furioso. Passou. Assovio? Seta?

Teus dentes. Teu sapato novo.
O branco da tua casa.
Tua voz adolescente.
Ele carrega memória e concretude.

Vasto atravessa.

IV

Desde que nasci, comigo:
Tempo-Morte.
Procurar-te
É estar montado sobre um leopardo
E tentar caçá-lo

Minha tua garra.
Teu matiz de dentro.
Tua lanhada.
Nossa companhia.
Passo de luz e negro.
Dentes. Arcada.

Dois nítidos
À caça de um Nada.

V

Fatia, tonsura, pinça
Nunca te sei inteiro
Tempo-Morte.
Jamais teu todo, teu pêlo
A intrincada cabeça do teu nojo.
Sempre a rasura no texto seco

Ou gorda eloqüência
Sobre a tua figura.

Opaca detenho-me
No vazio do cesto.
Tateio debruçada
Fiapos de palha, sobras
Coagulada retorno
Aos arrozais da página.

Ponta dos dedos, pulsão
Até quando teu capuz
Diante de um cego?
(Da morte. Odes mínimas)


PAULO HENRIQUES BRITTO

NOVE VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA
DE JIM MORRISON

You know the day destroys the night
Night divides the day

1.

A tarde devora o dia
que já estrebucha entre nuvens.
É noite.

Manhã engole essa noite
encaroçada de estrelas.
É dia.

2.

O dia levanta a cabeça
num gargarejo fatal:
a tarde lhe rasga a carótida.
Noite.

A noite segrega projetos
de mundos magros, sem cor.
E vem o dia com seu préstito:
manhã.

3.

Nada como a tarde, trapos encardidos
enxugando os restos de uma luz já suja,
recolhendo as manchas de sol desmaiado
com a complacência de um apagador. —‘~

Nada como a manhã, com seus dedos de feltro,
flanelas metafóricas de pura indiferença,
a estender sobre o escuro a realidade plena
de um dia ainda há pouco de todo inconcebível

4.

Por que é que essa tarde desmancha e desmaia e
sufoca o que o dia erigiu por um triz?

Por que é que a manhã com esse estrépito todo
dissipa o que a noite a tal custo ajuntou?

5.

Boçalidade da tarde:
porque afinal o dia custou tanto
a se investir, a instalar no teto
a gambiarra cara e trabalhosa
do sol, a despejar anil no céu
como um tintureiro alucinado.

Artimanhas da manhã:
despipocar todo o lençol da noite
e detonar tantos penduricalhos
de luz laboriosamente espetados
e acendidos um por um, com desvelos
obsessivos de monomaníaco.

6.

Manhã, que nunca pensas duas vezes
antes de atamancar com tua fórmica
banal a tapeçaria da noite,
como és enorme!

Ó tarde, que tens a desfaçatez
suprema de garrotear sem pejo
o pescoço fino e alvo do dia:
como te invejo!

7.

A cara desta tarde
é muda e austera, cara de quem
assiste, não de muito perto, à morte
prolongada e silenciosa de alguém
que não conhece, e nem
deseja conhecer.

O rosto da manhã
é o rosto frio e indecifrável
de quem contempla apático a morte
de alguém desconhecido, rosto
de quem, fora a licença poética,
rosto não tem.

8.

Se por acaso esta noite se extinguir
no féretro aéreo da alvorada,
tal como o dia ainda há pouco se esvaiu
na crua hemorragia de um crepúsculo,

será a comprovação esmagadora
do triunfo do real insensível
sobre os sonhos sublimes e inefáveis
dos nossos mais insignes metafísicos.


9.

Todo todo é menor que a menor parte,
muitos mundos cabem numa avelã.
Não há dia que não morra numa tarde,
nem noite que não se acabe em manhã.


ARNALDO ANTUNES

ESTOU CEGO A TODAS AS MÚSICAS
Estou cego a todas as músicas,
Não ouvi mais o cantar da musa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o peito que me cobre a blusa.
Já a mim nenhuma cena soa
Nem o céu se me desabotoa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como a língua cobre de saliva
Cada dente que sai da gengiva.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o sangue cobre a carne crua,
Como a pele cobre a carne viva,
Como a roupa cobre a pele nua.
Estou cego a todas as músicas.
E se eu canto é como um som que sua.
(Tudos)

Tudo
Todas as coisas
do mundo não
cabem numa
idéia. Mas tu-
do cabe numa
palavra, nesta
palavra tudo.
(Coisas)

O MACACO

o macaco se parece com o homem
a macaca parece mulher
algumas pessoas se parecem
outras pessoas se parecem com outras
as macacas de auditório são meninas
as crianças parecem micos
os papagaios falam o que pessoas falam
mas não parecem pessoas
para os cegos os papagaios se parecem pessoas
o homem veio do macaco
mas antes o macaco veio do cavalo
e o cavalo veio do gato
então o homem veio do gato
o gato veio do coelho
que veio do sapo que veio do lagarto
então o homem veio do lagarto
o lagarto veio da borboleta
que veio do pássaro que veio do peixe
pessoas se parecem com peixes
quando nadam
pessoas se parecem com peixes
quando olham o vazio
pessoas se parecem com peixes
quando ainda não nasceram
pessoas se parecem com peixes
quando fazem bolas de chiclete
macacos desaparecem
peixes parecem peixes
micróbios não aparecem
todos se parecem
pois se diferem
(Nome)
IMAGEM

palavra lê
paisagem contempla
cinema assiste
cena vê
cor enxerga
corpo observa
luz vislumbra
vulto avista
alvo mira
céu admira
célula examina
detalhe nota
imagem fita
olho olha
.(Tudos)

AS COISAS
As coisas têm peso,
massa, volume, tama-
nho, tempo, forma, cor,
posição, textura, dura-
ção, densidade, cheiro,
valor, consistência, pro-
fundidade, contorno,
temperatura, função,
aparência, preço, desti-
no, idade, sentido. As
coisas não têm paz.
(As coisas)
PENSAMENTO VEM DE FORA
Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.
ANDRADE, Carlos Drummond de. OBRA COMPLETA. Rio: Aguillar, 1964.
ANTUNES, Arnaldo. Tudos. 3.ed. São Paulo: Iluminuras, 1993
ANTUNES, Arnaldo. As coisas. Il. Rosa Moreau Antunes. 2.ed. São Paulo: Iluminuras, 1993. p.91
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1998.
LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 2000.
LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1995.
LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
MACHADO, Aníbal. Cadernos de João. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
PAES, José Paulo. Odes seguidas de odes mínimas. São paulo: Companhia das Letras, 2002.
QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 2001.