Saturday, November 25, 2006

VIDAS SECAS
Graciliano Ramos
ROTEIRO DE LEITURA
Cid Ottoni Bylaardt
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Professor Adjunto da UFC

“E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos.”


O MUNDO SECO DE FABIANO E SUA GENTE

Cid Ottoni Bylaardt, professor da UFC

A novela Vidas secas, de Graciliano Ramos, se estrutura em treze capítulos que apresentam cenas de Fabiano e sua família na luta pela sobrevivênca no sertão agreste nordestino. Os capítulos possuem vida independente, isto é, cada um deles pode ser lido como uma narrativa completa. Os treze juntos, entretanto, compõem a saga da família de Fabiano. A unidade do texto como um todo advém do encadeamento da narrativa, que compõe uma história envolvendo os mesmos personagens em seu núcleo familiar. O tempo é o que decorre entre uma seca e outra, é o tempo cíclico que envolve a família de Fabiano e que irá se perpetuar entre seus filhos e depois os filhos de seus filhos e assim por diante, que renovam sua miséria e sua tentativa de sobreviver no espaço da secura, no sertão adverso.
O narrador é onisciente, em terceira pessoa, e freqüentemente desloca o foco narrativo para as consciências dos personagens, por meio da utilização do discurso indireto livre. Nessas introspecções, o narrador revela os pensamentos dos personagens - inclusive da cachorra Baleia -, seus pontos de vistas sobre os problemas que os cercam, os mesmos problemas vistos de perspectivas diferentes.
A novela é a história da luta pela satisfação das necessidades básicas e dos sonhos de Fabiano, sua mulher sinha Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo, a cachorrinha Baleia. Fabiano é um vaqueiro do sertão do nordeste que é obrigado a fugir da seca em busca de melhores condições de vida.
No início da narrativa, Fabiano e sua família, após andarem algum tempo em fuga, tomam posse de uma fazenda, onde ficariam até a seca seguinte. Este, mais a cidadezinha próxima, é o espaço onde se desenrolam as cenas da vida da família: o abuso de poder do policial que prende Fabiano, a lida na fazenda, a festa de Natal na cidade, a morte de Baleia, a chegada das aves de arribação anunciando a nova seca, e a retirada final, recomeçando o ciclo de miséria.
Fabiano é o vaqueiro matuto que tenta sobreviver com a família no espaço adverso da caatinga. Fugindo da seca, acaba por encontrar uma fazenda abandonada, onde se estabelece. Com o fim da seca, tenta fazer a fazenda reviver, e tem seus sonhos de felicidade:

A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.

Mas a vida de Fabiano e dos seus é um eterno recomeço, uma coisa cíclica que não admite estabilidade. Ele tem a intuição desse movimento circular ao se com parar com uma bolandeira, a roda puxada por cavalo que aciona o rodete de ralar mandioca:

Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. (...) E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia por quê, mas era.

Quando a chegada das aves de arribação anunciou mais uma seca terrível, Fabiano e sua gente tiveram que encetar nova viagem, para um novo pouso, que lhes proporcionasse meios para sobreviver. Apesar de todas as evidências de que suas vidas se repetiriam como num círculo, num movimento de bolandeira, sempre havia a esperança do desconhecido, de uma vida diferente:

Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato.Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles.


O ISOLAMENTO DOS SERES

Fabiano é um ser primitivo, voltado para as necessidades primeiras, de pouca fala e sem relações sociais. O vaqueiro considera-se um bicho, motivo de orgulho, porque bichos sabem vencer dificuldades; homens não. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. A autoridade é representada pelo soldado amarelo, que exige obediência, e obriga Fabiano a jogar trinta-e-um com ele. A obediência à autoridade não pode ser transgredida. Fabiano perde e sai do jogo e da bodega sem dar satisfação à autoridade; o crime é punido com uma surra e uma noite na cadeia. Fabiano não entende nada, chega a duvidar de que o soldado amarelo seja mesmo representante do governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar.
Num momento posterior, Fabiano encontra-se novamente com o soldado amarelo, desta vez na caatinga, no seu espaço. Sentia-se superior ao soldado, podia desforrar a desfeita anterior, mas o respeito ao governo não lhe permite a vingança. Governo é governo. Ao invés de se vingar, Fabiano ensina ao soldado o caminho.
Sinha Vitória tinha respeito pelo marido e sonhava com a cama de lastro de couro. Esse era seu supremo desejo de consumo. Embora Fabiano julgasse uma maluquice esse desejo (Cambembes podiam ter luxo?), pois não teriam como carregar uma cama na próxima retirada, sinha Vitória não abria mão de seu sonho. Quanto aos filhos, não queria que eles fossem vaqueiros como o pai. Sonhava para eles uma vida diferente. Queria ir para uma terra distante, diferente da caatinga, que só tinha montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Nem a saudade que ataca os sertanejos longe do sertão seria capaz de fazê-los voltar. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos?
O menino mais novo era grande admirador do pai. Vê-lo vestido com a roupagem de couro do vaqueiro, esporas, chapéu, montando a égua alazã inspirou-lhe o desejo de realizar algo que deixasse o irmão mais velho e Baleia admirados. E a façanha que lhe ocorreu foi fazer com o bode velho o que o pai havia feito com a égua alazã. O bode velho pulou e saltou, e o menino foi jogado ao chão humilhantemente. O irmão mais velho ria e Baleia desaprovava. Tentativa inglória.
O menino mais velho se preocupava com o significado da palavra inferno, que tinha ouvido sinha Terta pronunciar e quis saber o que era. A mãe lhe respondeu que era um lugar ruim demais, cheio de espetos quentes e fogueiras. O filho não se deu por satisfeito e continuou insistindo, impacientando a mãe, que lhe deu um cocorote. O menino foi chorar a um canto, consolado pela cachorrinha Baleia. Não entendia por que uma palavra bonita como inferno pudesse designar coisa ruim. Todos os lugares conhecidos são bons; se a palavra inferno pudesse virar coisa, também seria lugar bom. O mundo tem também seus males, mas eles são sempre vencidos. O mundo só é mau na época da seca, em que as pessoas têm de fugir e cansam de cair no chão. Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido.
A cachorra Baleia também tem seus sonhos e motivações de vida. Em seu mundo cão, ela se mostra tão humana quanto os demais personagens; a narrativa aproxima-os a todos em seu primitivismo. Durante a retirada, ela comera os pés, os ossos e a cabeça do papagaio, que tivera de ser sacrificado para alimentar o grupo. Os ossos do papagaio certamente não eram o papagaio, por isso Baleia não sentia remorsos por ter comido o amigo. Ela só achava estranho quando olhava para o baú sobre a cabeça de sinha Vitória e não enxergava mais a ave. Quando mais uma vez a comida se esgotou completamente, Baleia deu novo alento ao grupo caçando um preá, e ficou aguardando para receber os ossos e talvez o couro. Baleia não gostava era de receber pontapés, embora achasse-os necessários, não sabia bem por quê. Sua única saída era a fuga, mas mesmo assim ainda a apanhavam desprevenida às vezes.
Quando Baleia adoece, Fabiano resolve matá-la por medo de que ela transmita alguma doença ruim para alguém da família. O sofrimento é geral, principalmente por parte dos meninos, que a consideravam praticamente uma igual. O tiro de Fabiano atinge Baleia nos quartos e inutiliza uma das pernas traseiras. A cadela late desesperadamente, sinha Vitória reza, os meninos choram alto, desconsolados. Baleia não entende bem o que está acontecendo, tem vontade de morder Fabiano, e delira. Sente o cheiro bom dos preás vindo do morro, lembra-se de sua obrigação de conduzir as cabras ao bebedouro, das brincadeiras com os meninos, da cova em que costumava se espojar sob a raiz do juazeiro. O fim de Baleia é como um sonho:
Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.


AS PALAVRAS INÚTEIS E PERIGOSAS

A linguagem utilizada pelo narrador é econômica, contida, seca como os personagens, que, apesar de secos, contêm um resto de ternura:

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam.

A linguagem dos personagens também reflete sua condição de vida: ao isolamento social corresponde o isolamento lingüístico. Apesar de admirar as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, Fabiano sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. Por isso ele às vezes tentava reproduzi-las, mas ele preferia comunicar-se com as pessoas utilizando a mesma linguagem com que se dirigia aos bichos. A tentativa de se comunicar com um soldado na cidade utilizando uma linguagem “elaborada”, inspirada na fala de seu Tomás da bolandeira, produz um discurso sem sentido:

- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.

Fabiano é preso aparentemente sem motivo, por uma arbitrariedade de um policial, que desejava mostrar poder e autoridade. O vaqueiro não entende bem o que está acontecendo, que ele chama o demônio daquela história, e atribui tudo ao fato de ele não saber se comunicar:

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?

Fabiano lembra então a época da retirada, em que eles mataram e comeram o papagaio, que não sabia falar. A ignorância da linguagem deve ser punida: o papagaio morre; Fabiano é preso.
A ausência de manifestação lingüística revela-se um perigo também quando, na retirada final, sinha Vitória percebe que se ela não falar e não ouvir som de fala ela se fragilizará mais, e não suportará a viagem. A linguagem tem o poder de fortalecer as pessoas, mesmo que seja uma fala incompreensível, mesmo que seja pelo equívoco:
Sinha Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha , as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada.
A fala de sinha Vitória agradou a Fabiano, que também se animou e percebeu que o tempo passava mais rápido e a viagem rendia mais enquanto conversavam.
O vocabulário de Fabiano é tão limitado que, durante a festa na cidade, após ter bebido umas doses de cachaça, ele resolve desforrar-se do mundo civilizado que o oprime, e num ato de suprema coragem, que poderia levá-lo a se desgraçar, resolve fazer um xingamento coletivo a todos que o sufocam só por existirem:
- Cambada de...

Onde a palavra para completar tão magnífico xingamento?
Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem atinar com a palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da língua. E a língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na mulher e nos filhos uns olhos vidrados.
Fabiano sofre um bom tempo até encontrar a palavra para completar a expressão que libertaria sua valentia diante do perigo à sua volta:

- Cambada de cachorros.

A fala é pouca e o conhecimento também. Incomodam Fabiano as perguntas dos filhos. Que necessidade se tem de saber as coisas? Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
A ignorância total, no entender de Fabiano, é mais confortável, porque não gera a necessidade de novos conhecimentos. As pessoas que sabem alguma coisa acabam ficando curiosas e querem saber sempre mais, o que provoca insatisfação. Um exemplo é seu Tomás da bolandeira, homem instruído, que se arrasava mais do que todo mundo durante a seca, por ter menos resistência do que o povo ignorante. Entretanto, a sabedoria de seu Tomás inspirava respeito, e ele tratava as pessoas com cortesia, sem mandar, ele apenas pedia, e todos lhe obedeciam.
A linguagem deve representar concretamente a realidade. Qualquer tipo de abstração ou de associação indireta complica o cérebro de Fabiano. Quando sinha Vitória declarou que as aves de arribação queriam matar o gado, o vaqueiro se confundiu todo. O que ela dizia é que as aves, em grande quantidade, iriam beber o resto de água que permanecia no leito quase seco do rio, e o gado ficaria sem água e morreria de sede. Ele não podia atinar com o que a mulher queria dizer, achou até que ela estava delirando. Como é que aves tão pequenas poderiam matar bois e cabras? Fabiano ficou muito tempo pensando na frase de sinha Vitória, chegou a desistir de aprofundar o pensamento, até que percebeu a relação de causa e efeito da declaração da mulher, e ficou orgulhoso da inteligência dela:
Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam.
A relação estreita que Fabiano estabelece entre as palavras e as coisas cria situações embaraçosas, em que as pessoas acham que o sertanejo está zombando delas, de tão primitivo que é seu pensamento. Um exemplo é o caso do porco magro que estava reservado para o natal, mas teve que ser morto antes para o vaqueiro tentar vendê-lo e levantar algum dinheiro. O cobrador da prefeitura aborda Fabiano e lhe diz que, para vender o porco, devia pagar imposto. Quanto ao imposto, o sertanejo não podia contestar nada, porque a taxação é uma invenção de seres superiores a ele; mas quanto ao objeto da venda, ele o conhecia bem: estava certo de que o que ele trazia naquele saco não era porco, mas quartos de porco, pedaços de carne. Para Fabiano, o argumento é concreto, mas o cobrador não se conforma com essa simplicidade ofensiva.
O menino mais velho também lida com o concreto, e não se conforma com a definição abstrata de inferno que a mãe lhe deu. Se a palavra era bonita e o mundo concreto é bom, como é que o inferno podia significar coisa ruim?
Ele tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso, rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
A falta de domínio da linguagem mais uma vez é acompanhada de uma punição. O menino mais velho busca negar sua estagnação lingüística tentando aprender uma palavra difícil: inferno. Decorar a palavra e pronunciá-la iria certamente provocar a inveja e admiração do irmão mais novo.
Na festa de natal da cidade, os meninos ficaram maravilhados com a profusão de objetos que cercavam a vida das pessoas, coisas que eles nunca haviam imaginado que pudessem existir. E a origem dos objetos, teriam eles sido feitos por gente? O problema maior é que cada um daqueles objetos tinha de ter um nome, o que gerava uma situação absurda: era absolutamente impossível um ser humano decorar tantos nomes, e as coisas sem nome não eram coisas, não podiam ter sido feitas por gente. Estava criado o impasse. Coisas sem nomes eram distantes, misteriosas, e deviam possuir forças estranhas que fariam mal às pessoas.
Os meninos praticamente não conversavam, os diálogos são quase que exclusividade dos adultos. Mas são discursos descontínuos, fragmentados, ambíguos, em que um na verdade não prestava atenção no que dizia o outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meios de dominá-las.
Numa noite de inverno, Fabiano resolve contar, com o auxílio de gestos e de voz alta, histórias de seus próprios feitos, e à medida que narra passa a acreditar cada vez mais na grandeza de seus atos. Houve um determinado trecho que soou incompreensível para os meninos. A interrupção da narrativa pelos meninos quase levou Fabiano a puni-los, julgando que eles estavam fazendo pouco dele. Voltando atrás, o pai resolve recontar a passagem obscura com outras palavras, para torná-la mais compreensível. O menino mais velho, embora não tivesse entendido a passagem da primeira vez, não concordou com a mudança das palavras da história. A nova versão, para ele, mudava tudo, tornando-a outra história. Fabiano modificara a história ¾ e isto reduzia-lhe a verossimilhança. A repetição da passagem com outras palavras provocou a quebra do encantamento, teria sido melhor se ele tivesse repetido a passagem com as mesmas palavras, mesmo prejudicando o entendimento.
Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria por causa das palavras ¾ e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório.
As histórias eram contadas ao pé do fogo, na cozinha, em uma noite de inverno, Fabiano gesticulava, sua imagem era projetada pelo fogo, a narrativa era fantástica, exercia uma atração mágica sobre os meninos. A interrupção e o retorno à passagem obscura quebrou o clima de magia, o narrador perdeu sua condição divina, que não admitiria retornos, e a narrativa perdeu o encantamento.

As relações sociais de Fabiano são marcadas pelo sentimento de inferioridade, principalmente quando se comparava às pessoas da cidade. Por isso se isolava. Todos o prejudicavam de alguma forma, os negociantes, o patrão, os caixeiros.

A OPRESSÃO DOS DOMINADORES

Uma relação que permeia a narrativa é a da dominação. É através de Fabiano que a família faz seu contato com o mundo exterior, um contato difícil, sofrido, incompreensível para ele. As “autoridades” que o oprimem o fazem de várias maneiras: há a opressão dos que sabem mais, dos que são proprietários, dos que representam o governo.
No episódio em que Fabiano é preso, ele é obrigado a aceitar o convite do soldado amarelo para uma partida de baralho porque ele não consegue expressar seus desejos, e balbucia algo incompreensível. Ao se ausentar do jogo sem dar satisfação, o soldado acha que foi destratado e termina por prender o vaqueiro, depois de provocá-lo até obter uma reação, em que Fabiano xinga a mãe do soldado. Como ele não consegue se explicar, toma uma surra e pernoita na prisão.
Sua concepção de governo é confusa. Em certos momentos, acha que o governo é todo-poderoso e, portanto, não é desonra apanhar de um seu representante. Entretanto, pessoas tão ruins como aquele soldado amarelo não podiam ser representantes do governo, ou o governo no mínimo estava mal representado; então não podia se conformar com aquela situação.
Havia coisas ali a serem explicadas, mas ele, Fabiano, era um bruto, não tinha capacidade de explicar. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Na mente dele, era necessário ter cultura para relatar a situação, mesmo que a pessoa não estivesse no processo. Seu Tomás, por exemplo, podia muito bem relatar o caso:
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia muitos livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada.
Um ano depois, ao encontrar-se novamente com o soldado amarelo, desta vez em seu ambiente do sertão, Fabiano tem novamente sentimentos contraditórios ao tentar definir a figura que lhe aparece. Primeiramente, percebeu no soldado um inimigo, um bicho qualquer, mas inimigo. Depois percebeu que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Ele tinha medo, julgava-se em perigo; logo em seguida riu-se de seu próprio medo, pois na verdade aquela coisa frágil e medrosa que estava na sua frente não oferecia nenhum perigo. E ficou hesitante sobre se matava ou não o inimigo-autoridade, que permanecia imóvel, na expectativa medonha. O oponente era tremura, amarelidão, fraqueza fardada, sem-vergonha, mofino, aquela coisa arriada e achacada, peste. Afinal, Fabiano fraqueja diante do grande argumento: - Governo é governo.
Suas relações sociais - ou ausência delas - também são marcadas pelo sentimento de inferioridade, principalmente quando se comparava às pessoas da cidade. Por isso se isolava. Todos o prejudicavam de alguma forma, os negociantes, o patrão, os caixeiros. Se o prejuízo não era financeiro, era moral: tinha sempre a impressão de que estavam zombando dele, de que ele era sempre ridículo diante dos outros.
Sua relação com o patrão também é de perplexidade, ele não entende como é que as contas dele sempre divergem das suas, ou melhor, das de sinha Vitória, que é quem faz as operações, utilizando sementes de várias cores. Havia os juros, que nunca entravam nas contas da mulher, mas sobejavam nas contas do patrão, sempre contra o sertanejo. A dominação é completa: o dominador detém o poder das contas e o poder da posse; ao dominado resta sujeitar-se ou procurar serviço noutra fazenda. O sertanejo sofre, tenta se rebelar:

Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria?

A reação do patrão é imediata, só resta a Fabiano conformar-se, certo de que havia sido lesado.
Este é o mundo de Fabiano e de sua gente — um mundo difícil de entender quando outros seres humanos nele interferem, mas possível de lidar quando a relação é com a natureza, quando o que se exige é consertar seca, desentupir bebedouro, tratar dos animais. Mesmo a seca é superável. As relações dentro da família também seguem uma ordem estabelecida, com pouca comunicação mas sem surpresas, havendo lugar até para uma certa ternura seca entre as pessoas. O que atrapalha tudo são as pessoas de fora, que só por existirem já são uma afronta a Fabiano e aos seus.

Friday, November 10, 2006

MACUNAÍMA
Mário de Andrade



“Enfim, sou obrigado a confessar de uma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava copiar o Brasil, por meio dele mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem desde Gregório de matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence a Portugal. Meu nome está na capa e ninguém o poderá tirar”.
Mário de Andrade


O GRILEIRO DAS LETRAS

Cid Ottoni Bylaardt, professor da UFC


COPIEI, SIM, MEU QUERIDO DEFENSOR

Em 20 de setembro de 1931, Mário de Andrade publicou no jornal Diário Nacional uma carta pública dirigida ao antropólogo Raimundo de Morais. Este, agindo com malícia dissimulada em ingenuidade defensora, comenta, num verbete de seu Dicionário de Cousas da Amazônia, que pessoas “maldizentes” insistiam em que o livro Macunaíma era plagiado da obra do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, Von Roraima zum Orinoco. O dicionarista acata o boato, mas diz que duvida de sua veracidade, pois acredita que o romancista paulista “possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas”.
Raimundo de Morais esperava, naturalmente, que Mário se defendesse, mas o pai adotivo de Macunaíma surpreendeu os defensores da originalidade intelectual declarando solenemente sua condição de PLAGIADOR (1999: 165):

Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa.

Neste mea culpa, Mário investe descaradamente sobre a noção de propriedade textual, de autoria e de originalidade até então considerados, pelos guardiães do texto sagrado, do texto peça de museu, elementos fundamentais do processo de criação. Em sua exposição, o romancista de Macunaíma revela a ignorância dos eruditos “maledizentes”, entre os quais se inclui o próprio Raimundo de Morais, que não perceberam que o plágio era de toda uma cultura, e não apenas de um livro, comparando-se aos “rapsodos de todos os tempos”, que “transportam integral e primariamente tudo o que escutam ou lêem para seus poemas” (1999: 164).
Mário, em Macunaíma, copia o Brasil, mostrando sua cara e satirizando-o, mas não abre mão de sua autoria: “Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar”. Do livro do alemão, Macunaíma se libertou e ampliou suas fronteiras inicialmente nortistas, agregando a si e a sua ação “modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa” (1999: 165).
Fica aí declarada a condição parodística da escrita, a escrita de segunda mão, a apropriação dos enunciados, tantos e tão diversos que compõem um patchwork lingüístico proposital. Qual é, então, a intenção desse grileiro das letras? Que sentido procura ele dar a essa combinação de múltiplos elementos, que para alguns soava como um estranho amontoado de fragmentos, e para outros como uma unidade fortíssima na busca da identidade brasileira?
Embora tenha declarado que escreveu o livro de “pura brincadeira”, Mário de Andrade não nega que ele “vale um bocado como sintoma de cultura nacional”. Contém, portanto, as dúvidas e o fascínio do escritor em relação à cultura brasileira e às nossas etnias, numa oscilação hesitante entre otimismo e pessimismo extremos. A leitura de um Brasil simpático e surpreendente não é obliterada por qualquer traço de ufanismo que impeça uma visão crítica do passado e do presente cultural-literário brasileiro, uma releitura que busca redescobrir este país, que tenta investigar qual é a sua verdadeira cara, a sua real identidade.

AVENTURA PAPAGUEADA

O epílogo da narrativa nos informa de seu narrador, que ouviu toda a história de um papagaio. O papagaio, por sua vez, tinha ouvido tudo do próprio Macunaíma, quando este havia voltado para o Uraricoera e curtia o impaludismo e a solidão.
Quem conta a história é o papagaio, o que repete indefinidamente, o que se apropria dos discursos dos doutores, das frases feitas, dos provérbios, das adivinhas, das canções, dos mitos etc, e, principalmente, do livro Von Roraima zum Orinoco, do alemão Theodor Koch-Grünberg. O papagaio é o rapsodo, o aedo, o vate, que conta a história com “uma fala mansa, muito nova, muito!” “Isso é o Macunaíma e esses sou eu”, diz Mário de Andrade em sua carta a Raimundo Moraes (1999: 164), isto é, Macunaíma é o produto de várias escutas e leituras, e Mário é o papagaio-rapsodo, o que repete de seu jeito. É, portanto, um texto de terceira mão que papagueia de segunda mão outros discursos.

TEMPO E ESPAÇO SEM LIMITES

O tempo da narrativa é mítico, mágico, indefinido, mas pode-se acompanhar em cronologia progressiva a trajetória de Macunaíma, desde o nascimento até a morte.
No espaço, contrapõem-se o mundo mítico amazônico, e o mundo-máquina da metrópole, afinal transformado em preguiça de pedra, portanto manietado em seu sentido mais peculiar. Nenhum espaço do Brasil oferece ao herói seu pouso seguro. O mundo civilizado é uma bricolagem mal feita de empréstimos estrangeiros, e exige excessivos esforços do herói para se manter lá. A tribo é um espaço tão perigoso quanto a cidde, e vive um processo de decadência em direção ao extermínio, que ocorre ao final, vítima de um enorme “tangolomângolo”, palavra portadora de estragos proporcionais a sua extensão de significante.

A CONSCIÊNCIA NO MANDACARU

A rapsódia, em poesia, consiste numa obra épica que representa as peculiaridades de uma nação; na música, é uma composição formada de diversos cantos tradicionais ou populares de um país. Os rapsodos eram, na Grécia antiga, recitadores profissionais de textos alheios, aos quais enxertavam os próprios textos e/ou lhes davam interpretação particular. Macunaíma é a rapsódia de um herói que incorpora os cantos do Brasil e seus contracantos. Os múltiplos textos que compõem a obra são mitos, lendas, superstições, provérbios, anedotas e contos etiológicos falsos e autênticos; todos esses textos têm origem ameríndia, européia e negra.
Macunaíma, “o herói de nossa gente”, nasceu à margem do Uraricoera, na floresta amazônica. Filho da tribo dos Tapanhumas, revela desde pequeno seu caráter controvertido: manhoso, brincalhão, indolente, lascivo, infiel, mentiroso, embora apresente momentos de grandeza e coragem, geralmente não intencional. Ao transformar-se em um “príncipe lindo” quando fazia amor com sua cunhada Sofará, esposa de seu irmão Jiguê, manifesta também uma característica que o acompanhará em toda sua trajetória: sua capacidade de metamorfose, uma maneira de mostrar várias caras sem assumir uma fisionomia definida.
Após muitas andanças, em companhia dos irmãos, Macunaíma conquista Ci, a Mãe do Mato, não sem muita luta e muito sangue. O herói apanha muito dela, mas não desiste, terminando por ficar com a Icamiaba, tornando-se Imperador do Mato e iniciando uma fase de amores ardentes, até que tiveram um filho. A morte do filho fez com que Ci fosse para o céu, virando a estrela Beta do Centauro. Antes, ela deixou com Macunaíma a famosa pedra muiraquitã, artefato feito de pedra verde, em forma de jacaré, à qual se atribuem virtudes de amuleto.
Com a perda do filho e de Ci, o herói junta os irmãos, Jiguê e Maanape, despede-se das Icamiabas e parte. Nas lutas contra Capei, a Boiúna Luna, ele perde a muiraquitã. Um uirapuru revela ao herói que a pedra tinha sido comprada por um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, que morava em São Paulo, “a cidade macota lambida pelo Igarapé Tietê”.
O projeto do herói passa a ser, então, ir a São Paulo reaver a pedra verde. Um dos preparativos para a viagem foi o cuidado de deixar a consciência na ilha de Marapatá, na foz do rio Negro. “Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, para não ser comida pelas saúvas”. Não se pode exigir, portanto, que o herói pratique seus atos conscientemente. Se se pode duvidar de sua consciência até aquele momento, fica claro que a partir daí essa é uma palavra inexistente em seu vocabulário e em sua prática, mesmo porque não se tem notícia de que ele tenha voltado para buscá-la. Após tentativas frustradas de reaver a muiraquitã, Macunaíma envolve-se com Vei, a Sol, quebra sua promessa de ser fiel às filhas de Vei e perde a condição prometida de eterna juventude. Escreve uma carta para as Icamiabas, em que estabelece o confronto entre o barbarismo e a civilização, e pede mais dinheiro a suas súditas. O episódio de Vei e a carta merecem comentários mais detalhados adiante.
Incontáveis aventuras depois, o herói consegue reaver a pedra das amazonas e empreende viagem de volta ao Uraricoera, acompanhado de Maanape e Jiguê, e portando um revólver Smith-Wesson, um relógio Patek Philip e um “casal de galinha Legorne”. O casal é formado por um galo e uma galinha. Em sua luta com a Uiara, ele é mutilado, perde novamente a muiraquitã e é transformado na constelação da Ursa maior.

A SOL, A CARTA, A PEDRA

Os principais eixos de sustentação da trama na rapsódia são a disputa de Vei com Macunaíma, a “Carta pras Icamiabas” e o embate do herói com Venceslau Pietro Pietra pela posse da muiraquitã.
O capítulo VIII, “Vei, a Sol” é considerado pelo próprio Mário de Andrade como uma das alegorias centrais da narrativa. Atirado pela árvore Volomã em uma ilhota, o herói dormia sob uma palmeira em cujo cimo havia um urubu, que despejou sobre ele várias cargas de fezes — de urubu. Desiludido da vida, tenta obter um lugarzinho no céu apelando para a estrela-da-manhã e para a Lua, que, não suportando seu fedor, o despacham, com a expressão que se tornou vulgar, posteriormente: “— Vá tomar banho!”, que normalmente passou a ser dirigida a certos imigrantes europeus que tinham resistência ao banho. Macunaíma guarda, então uma característica européia, já que os índios se lavam com freqüência. Vei, a Sol, tem simpatia por ele, e ordena a suas três filhas que limpem bem o herói. Depois ela promete a ele a mão de uma das filhas, desde que ele se mantenha fiel à esposa.
Aí tem origem a grande transgressão do herói. Traindo sua palavra, ele resolve “brincar” com uma varina, vendedora ambulante de peixe, entre os portugueses. Vendo suas filhas preteridas por uma portuguesa, Vei recusa a Macunaíma a juventude eterna e a imortalidade, tirando-o de sua proteção. A escolha desastrada marca sua entrega ao europeu, atestando que os males do Brasil não são apenas as enfermidades e as formigas. Pode-se novamente fazer um paralelo entre a “entrega” de Macunaíma e a de Iracema, que configuram situações parecidas, porém ideologicamente diferentes. Numa, o tom é de censura; noutra, a doação é positiva; em ambas, o fato é inevitável. Para completar sua vingança, Vei encaminha Macunaíma para a morte pela sedução da Uiara.
O grande motivo da movimentação de Macunaíma é, sem dúvida, a pedra muiraquitã, presente que sua amada Ci lhe fez ao desencarnar. Na luta contra Capei, um monstro fantástico que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos, o herói perde o talismã, que posteriormente é adquirido pelo gigante Piaimã, ou Venceslau Pietro Pietra. Na primeira tentativa de abordar o gigante, Macunaíma é morto com uma flechada, e ressuscita graças aos poderes mágicos de seu irmão Maanape.
Na segunda tentativa, o herói se fantasia de francesa para tentar seduzir o gigante. Piaimã mostra-lhe toda sua coleção de pedras, mais a muiraquitã. Pietro Pietra declara que não vende e nem empresta a pedra das amazonas, mas é capaz de doá-la, dependendo dos agrados. Pressentindo o assédio, Macunaíma tenta fugir, mas é capturado e colocado em um tgrande cesto. O herói foge outra vez, e é perseguido por um cão de Venceslau Pietro Pietra, que o acua e faz com que ele entre num formigueiro. Usando artimanha, ele consegue escapar.
Macunaíma tem inveja do gigante porque não possui coleção de pedras, e decide colecionar alguma coisa, de preferência algo mais leve. Ele resolve então fazer uma coleção de palavras-feias de que ele gostava. O herói revela aí sua arma de combate: a força das palavras, escritas faladas, populares, eruditas, em latim e grego (que ele vinha estudando), em italiano e em indiano, enfim, o discurso torna-se para o herói a grande moeda de uso.
No Rio de Janeiro, Macunaíma visita um terreiro de macumba e pede a Exu que castigue Piaimã, que é então chifrado por um touro selvagem e ferroado por quarenta mil formigas-de-fogo. No terreiro, encontrava-se a força da palavra de vários poetas modernistas citados no capítulo.
O embate épico do herói contra Piaimã termina com a derrota do gigante, que morre fervendo na água da macarronada de Ceiuci, e desprende “um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói teve uma sapituca”. O herói então recupera os sentidos e a muiraquitã e retorna com os irmãos “pra querência deles”.
Na “Carta pras Icamiabas”, faz-se a paródia da retórica, em linguagem grandiloqüente e pomposa, própria de um “Imperator”, nem que seja do mato. É a sátira epistolar aos que falam e escrevem “bem”, mesmo que não sejam compreendidos, o questionamento do abismo existente entre a fala e a escrita. Ao mesmo tempo, o herói prova que ele também pode se apropriar do discurso erudito, assim como maneja com a maior naturalidade a língua falada, a linguagem chula, idiomas estrangeiros, enfim, o bastante para impressionar quem quer que seja.
Macunaíma não conseguiu reaver a pedra verde, mas conquistou o discurso precioso.
O ponto de vista aqui se desloca do rapsodo, ou aedo, para o personagem, recém-iniciado nos segredos dos discursos, e impressionado com o poder da linguagem, tanto que ele em seguida resolve estudar as duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. O poder do discurso revelado no pastiche da carta, construído sobre um arremedo de estilos variados, equivale, para o herói, a ser louro de olhos azuis e a possuir muito dinheiro para morar em São Paulo: são as exigências da sociedade emergente, cuja antítese é o negro ou mestiço pobre e ignorante. A fala do povo é coisa bastarda, deformada, “bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano”.
A boa escrita lusitana pode ser identificada nos diálogos que Macunaíma trava com Pero Vaz Caminha, Luís de Camões, Pero de Magalhães Gandavo, Manuel Botelho de Oliveira, José de Anchieta, Rui Barbosa.
Esta é a verdadeira pedra mágica de Macunaíma, que, através do discurso, pretende se impor às suas súditas e se igualar aos dominantes na maior cidade do Brasil. O texto confronta-se com a oralidade predominante na narrativa como um todo, constituindo uma ruptura com o discurso da rapsódia, coincidindo com o momento em que o herói toma a palavra. Em suma, esse discurso é seu, e não aquele que o rapsodo ouviu de um papagaio e colocou em sua boca. Por mais que se considere o fato de que as palavras teriam chegado até nós por arte do aruaí, a peculiaridade do texto o desloca da narrativa do papagaio e do aedo, depositando-o na pessoa de Macunaíma.
A “Carta pras Icamiabas” insere-se exemplarmente na proposta da estética modernista de par com Oswald de Andrade, de apropriação de variados discursos, deslocados de seu contexto original, compondo o universo lingüístico de Macunaíma, propositalmente desordenado, não-linear, cheio de altos e baixos. Tais recursos encontram berço na rapsódia, forma livre, caráter de fantasia.

A MELANCÓLICA ASCENSÃO

Macunaíma havia nascido preto retinto, a cor dos Tapanhumas. Em trânsito para São Paulo, ele se banha em uma poça mágica e fica “branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele”. Jiguê copiou o ato do irmão, mas como a água estava suja do negrume do herói, ele ficou “da cor do bronze novo”. Maanape não conseguiu molhar senão as palmas das mãos e as solas dos pés, que ficaram vermelhas, enquanto o resto do corpo permaneceu negro. Por sua reação, Macunaíma estabelece uma hierarquia do melhor para o pior na transição gradual de branco para bronze para negro: mais que uma gradação, é uma degradação preconceituosa.
Considerando a questão da formação do povo brasileiro, pode-se fazer um paralelo entre Macunaíma e Iracema, ambos portadores de algum tipo de símbolo ligado à fundação. Na obra de José de Alencar percebe-se a intenção de enaltecer o elemento indígena como etnia importante para a formação do povo brasileiro. A intenção, entretanto, não pode ser realizada plenamente por força do preconceito do autor, que se irradia para o narrador e os personagens de Iracema. Um exemplo claro é uma das notas de pé de página do autor, que desmistifica com explicações “racionais” um ritual mágico de Araquém, o pajé dos pitiguaras, que faz as entranhas da terra ecoarem a voz de Tupã, deus supremo dos índios. No caso de Alencar, o preconceito é proposital e aceito ingenuamente como a atitude certa para os padrões do século XIX meado.
Quanto a Macunaíma, ele sabe que ser branco é “melhor” do que ser mameluco, mulato, negro ou índio. O comparativo melhor é arraigado na cultura brasileira, o escritor o percebe e denuncia o ato de preconceito como um dos traços contraditórios da identidade do brasileiro; a visão do preconceito aqui é, portanto, crítica, como a constatar que o brasileiro, infelizmente, é assim.
Ser brasileiro, para Macunaíma, é ser inseguro, indeciso, debater-se entre opções não muito claras de vida, lutar entre os pólos de opressão e submissão, transitar entre etnias dominadoras e dominadas. O “herói de nossa gente” é um ser de muitas caras e de nenhuma, em busca de sua identidade.
Macunaíma vive muito e morre muito, e parece que até a questão de vida e morte é controvertida para ele. Ele morre duas vezes sem querer morrer, e é impedido de morrer quando se cansa da vida, recusado por Caiuanogue, a estrela-da-manhã, e por Capei, a Lua.
Sua primeira morte se dá na primeira batalha contra Venceslau Pietro Pietra, atingido por uma flechada no coração. Foi ressuscitado pelo feitiço de Maanape. Na segunda morte, o herói é enganado por um macaco, que o convence a quebrar seus próprios testículos para comer. Macunaíma pegou “um paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto”. Foi novamente restituído à vida por Maanape.
O fim de Macunaíma é patético. Vei, a Sol, para se vingar do herói, guia-o até a lagoa onde é derrotado pela Uiara, sereia lindíssima que, não por acaso, tinha os cabelos negros como a asa da graúna. Esse é um momento de delicado impasse para o herói. Ao se deixar seduzir pela Uiara, secundado pela punição que lhe foi imposta por Vei, por preferir o herói a cultura européia, ele termina por abrir mão da vida terrena, após um momento de indecisão entre ir morar no céu ou na ilha de Marajó. Se a permanência na terra é complicada, a entrada no céu também é difucultada, novamente por Capei e por Caiuanogue, e também por Pauí-Pódole, que termina por resolver o problema do herói:

Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos fez em encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revólver relógio, numa constelação nova. É a constelação de Ursa maior. (1997: 166)

Merece comentário a aproximação que Mário de Andrade faz entre a Uiara e Iracema, heroína de José de Alencar, símbolos da nacionalidade que se recusa ao herói. Assim como Iracema, a Uiara é belíssima e tem os mesmos cabelos negros. Iracema morre para o Brasil nascer; a Uiara provoca a morte de Macunaíma, numa luta etnocida, mas representa uma raça igualmente derrotada no confronto mortal com a civilização européia.
O exílio cósmico do herói é tão triste quanto inútil, ou seja, não é saída nem solução para o impasse entre o primitivismo ameaçado e a vida urbana pseudo-europeizada e semi-americanizada. Assim como o retorno de Macunaíma ao Uraricoera não tem sabor de triunfo, sua transformação em estrela não é apoteótica, mas melancólica.
A declaração do autor sobre seus sentimentos quanto à morte do herói atestam que a narrativa não era para ele apenas o “livro de pura brincadeira” que ele queria fazer parecer inicialmente. Eis o patético depoimento do autor (1999: 180):

(...) Pouco importa, si muito sorri, escrevendo certas páginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando o herói desiste dos combates da terra e viver o “brilho inútil das estrelas”, eu chorei. Tudo, nos capítulos finais, foi escrito numa comoção enorme, numa tristeza, por várias vezes senti os olhos umidecidos, porque eu não queria que fosse assim! E até hopje (é o livro meu que nunca pego, não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou três vezes que reli este final, a mesma comoção, a mesma tristeza, o mesmo desejo amoroso de que não fosse assim, me convulsionaram.

BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica. LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José de Costa Rica, Santiago de Chile. ALLCA XX, 1997.
GLAESER, Célia Flud. Linguagem e fundação. Belo Horizonte: Universidade, 2000.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

Monday, October 30, 2006

PAU-BRASIL – Oswald de Andrade
O DISCURSO DE EXPORTAÇÃO - ROTEIRO DE LEITURA
Cid Ottoni Bylaardt
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Professor Adjunto da UFC (cidobyl@ig.com.br)

PAU-BRASIL

Nas primeiras décadas do século XX, a arte brasileira, e especialmente a literatura, apresentava um cenário de transição histórica, sob a ação dos simbolistas e dos tardios parnasianos e realistas-naturalistas. A Europa do pós-guerra produzia movimentos de vanguarda que de alguma forma inquietava nossos intelectuais.
A Semana de Arte Moderna de 1922 produziu o escândalo cultural que faltava para se acender a fogueira das discussões sobre o passado, o presente e o futuro da arte brasileira. Seus protagonistas partiram de uma “unidade do contra” em relação à arte daquele momento e do recente passado, representados na literatura pelo parnasianismo e naturalismo passadistas e pelo simbolismo. Sua linha de frente, composta por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira e outros, realiza uma verdadeira agitação cultural ¾ revistas, livros, manifestos, eventos ¾ a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, em direção ao resto do país.
Os modernistas ¾ que se opunham aos passadistas e independentes ¾ dividiam-se em quatro correntes principais: dinamista, primitivista, nacionalista e espiritualista. Oswald, com sua poesia Pau-Brasil, costuma ser incluído entre os primitivistas.

O PRIMITIVISMO DE OSWALD

O livro de poemas “Pau-Brasil”, de 1925, é precedido do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, publicado no Correio da Manhã em 18 de março de 1924.
A primeira frase do manifesto é “A poesia existe nos fatos”. Aí começa a proposta de revolução oswaldiana. Para ele, fatos são o carnaval do Rio, nossa formação étnica, nossa riqueza vegetal e mineral, nossa culinária. Opondo-se aos simbolistas nefelibatas e à torre de marfim parnasiana, Oswald propõe que a poesia se faça de cada pedaço deste Brasil, desde suas origens.
A poesia de até então é mais um saber do que uma arte, a literatura das belas-letras, com sua erudição e seu cerimonial de hierarquias e regras; para os modernistas, uma deformação.
Em oposição a essa poesia “pesada”, Oswald propõe “a alegria dos que não sabem e descobrem”, a poesia “ágil e cândida”, como uma criança. Para ele, poesia não pode ser coisa de gabinete, de academicismo, eruditismo, mais um saber do que uma arte, provocadora de “indigestões de sabedoria”. Daí a reivindicação de uma literatura mais despojada: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos, como somos”, a expressão de brasilidade através da linguagem.
A poesia “culta”, parnasiana, inspirada em modelos e regras europeus, é uma poesia de importação; a poesia “Pau-Brasil”, que nasce aqui, é poesia de exportação, daí a denominação, homenagem à primeira riqueza brasileira de exportação, o pau-brasil.
O manifesto estabelece as leis da poesia Pau-Brasil: a síntese em oposição ao detalhe naturalista, o equilíbrio contra a morbidez romântica, a invenção e a surpresa em negação à cópia, a valorização de estados primitivos da alma brasileira, uma nova perspectiva sentimental, intelectual, irônica e ingênua, uma nova escala, que privilegie o novo, o atual, o sentido puro da existência, sem fórmulas, com “olhos livres”. “A poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal”.
A poesia incorpora, portanto, as características multifacetadas da sociedade brasileira, como o arranha-céu, o carnaval. É preciso ser “regional e puro em sua época”, a prevalência da inocência sobre o “estado de graça”.
A poesia Pau-Brasil é, enfim, a proposta de libertação da influência dos cânones europeus, que serviam de modelo para a literatura brasileira; a proposta de renovação da linguagem poética, livrando-a da “eloqüência balofa e roçagante”. É a valorização da poesia curta, condensada, antidiscursiva, o “poema-minuto”, invenção de Oswald.

ROTEIRO DE PAU-BRASIL

Se o objetivo de Oswald de Andrade é exportar um produto para o estrangeiro, no caso a poesia, como ocorreu com o pau-brasil do século XVI ao XIX, é preciso apresentar ao comprador um catálogo da mercadoria oferecida. Este menu contém, assim, dez títulos, que compõem o roteiro de um Brasil poético. Esse roteiro parte da descoberta do Brasil, seguindo com a colonização, a vida em fazenda, uma viagem pelo vale do Paraíba até o Rio, o carnaval, a aventura amorosa, flagrantes urbanos, impressões sobre as cidades de Minas, o regresso da Europa e as escalas do Brasil.

POR OCASIÃO DA DESCOBERTA DO BRASIL

“Escapulário”, o primeiro poema desta parte, contém um diálogo com uma oração católica, o “Pai Nosso”, à guisa de invocação para compor sua obra poética. O poema interliga a poesia, a grandiosidade da natureza brasileira, representada pelo Pão de Açúcar, e a religião católica, que acompanha os brasileiros desde o primeiro momento do “achamento”. Este texto histórico/religioso/metalingüístico ostenta um título que remete a um adorno de religiosos e devotos, um “bentinho”, que se supõe abençoado, e, portanto, “dá sorte”.
Solicitada a proteção divina para seu empreendimento, o poeta deita falação sobre sua crença poética, num mini-manifesto que contém seus assuntos e seus modos de dizê-los. Reveladora é a relação da ignorância do poeta que descobre a poesia com a ignorância de Cabral ao descobrir o Brasil. É a pureza primitiva contra o enciclopedismo de importação, os caminhos imprevisíveis que se descortinam em nosso país, retirando de nossa vida objetivos racionalmente definidos, conforme sugestão de Blaise Cendrars contida em “Falação”:
¾ Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta de vosso destino.

A proposta é, então, de uma poesia despojada, imprevisível, inventiva e sintética, que contenha o que o Brasil tem de autêntico, e de diferente dos outros:

E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade.
Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau-Brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

HISTÓRIA DO BRASIL

Invocada a assistência da musa do Pão de Açúcar e feita a proposta, numa inversão da fórmula épica, inicia-se o passeio espacial-temporal. Quem abre a “História do Brasil” é, obviamente, Pero Vaz Caminha. O poeta se apropria de textos de Caminha para compor os quatro primeiros poemas. O primeiro poema, “A descoberta” tem seus versos retirados quase que integralmente do texto corrido da carta de Caminha. O texto da carta é o seguinte (assinalamos com itálico as palavras ou expressões que compõem o texto poético):

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram vinte e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas (...). E, quarta-feira seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam furabuchos. Quarta-feira, 22 de Abril: neste dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra! (Carta de Pero Vaz Caminha)

Os demais poemas desta seção apresentam flashes do primeiro contato do colonizador com o elemento autóctone. Merece registro a projeção das personagens femininas do ano de 1500 para o século XX no poema “As meninas da gare”. As “moças bem moças e bem gentis” que emergem da carta de Caminha com “suas vergonhas tão altas e tão saradinhas” são lançadas a uma estação de trem paulista do início do século XX, eliminando as grandes diferenças étnicas entre a nudez das índias inocentes e o pudor das garotas da burguesia que se exibem numa estação de trem.
Pêro de Magalhães Gândavo é um cronista português do século XVI que registrou suas impressões sobre a terra brasileira em duas obras principais: Tratado da terra do Brasil no qual se contém a informação das cousas que há nestas partes e História da província de Santa Cruz que vulgarmente chamamos Brasil. Oswald dialoga com o historiador mantendo a grafia arcaica do texto original, com a intenção de preservar tanto o primitivismo da situação quanto a visão européia sobre nossa terra.
O poeta recorre a Gândavo para reafirmar o acolhimento afetuoso da terra aos que nela chegam, a beleza de seu formato, que lembra uma harpa, instrumento que produz melodia suave e harmonia agradável, a pureza do ar e a abundância das águas, a riqueza que não deixa a ninguém no desamparo, as frutas, os animais, enfim, a descrição do paraíso. Não se pode esquecer a menção ao nosso primeiro produto de exportação, símbolo da proposta de Oswald: “Também há muito paobrasil / nestas capitanias”.
É importante observar que todos os textos reaproveitados por Oswald sofrem um processo de deslocamento, de atualização, sendo retirados de seu contexto de origem para também fazerem uma viagem espacial-temporal por esse Brasil contraditório, o que é confirmado pelos próprios títulos dos poemas.
Os títulos indicam uma atualização, ou uma transposição dessa terra edênica ao momento da enunciação, com a utilização de nomes técnicos para aspecto poéticos, como “Corografia” (estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município), “Salubridade” (conjunto das condições propícias à saúde pública), “Sistema hidrográfico” (conjunto das águas correntes ou estáveis duma região) e “Natureza morta” (gênero de pintura em que se representam coisas ou seres inanimados).
Clemente Foulon, o capuchinho francês Claude D’Abbeville, esteve no Maranhão em 1612. Publicou, em 1614, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. Na recriação das palavras em francês do capuchinho, o poeta confronta a moda indígena com a moda francesa, comenta a nudez das índias e decanta a beleza da natureza brasileira. Basicamente os mesmos assuntos são desenvolvidos nos versos recriados de Frei Vicente de Salvador.
Mais para o final do século XVII, aparece Fernão Dias Pais, em excertos da carta enviada ao governador-geral do Brasil, Afonso Furtado de Mendonça, pedindo permissão para formar sua bandeira, que iria desbravar os sertões de Minas e iniciar seu povoamento, em busca de ouro e pedras preciosas. A referência ao “terreal paraíso” das terras brasileiras é reiterado em “Frei Manoel Calado”.
O poema “Vício na fala”, intertexto de um certo J. M. P. S., desconhecido escritor português do início do século XIX, refere o modo de falar das gentes incultas do Brasil, cotejado com a expressão dita culta: “milho”/“mio”; “melhor”/“mió”; “pior”/“pió”; “telha”/“teia”; “telhado”/“teiado”.
A referência ao príncipe Dom Pedro, que logo se transformaria no Imperador Dom Pedro I, fecha esse roteiro da história do Brasil até a independência. O texto em questão é a carta que Dom Pedro escreveu ao patriarca José Bonifácio, referindo-se ao importante papel que desempenhou o regimento dos pardos por época da independência do Brasil, exercendo estreita vigilância sobre os possíveis reacionários ao golpe.

POEMAS DA COLONIZAÇÃO

Esta parte compõe-se de quinze poemetos, sendo o maior de sete versos e os menores de quatro. Os textos são extremamente sintéticos, de imagens incompletas, inacabadas, que exigem do leitor a composição mental da cena, como em “Negro fugido”:

O Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando pilão na cozinha
Entraram
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
Montaram nele

A cena que finaliza o relato dá margem a várias construções na mente do leitor, imaginando-se o que pode significar o verso “Montaram nele” em se tratando de um escravo fugido apanhado por seus donos.
A maioria dos poemas desta parte trata da vida dos escravos negros nas fazendas, que um dia seriam libertados e trocados por “terras imaginárias / onde nasceria a lavoura verde do café”. Desfilam em pequenos flashes do cotidiano das fazendas os escravos de ofício (marceneiro e cozinheiro), as jovens escravas sempre grávidas, o escravo assassino e suicida, o escravo fugido apanhado por seus perseguidores, o fantasma da mulatinha morta, a discussão dos negros sobre palavras da língua, o medo de assombração, o assassinato do negro comprado na cadeia, a briga de negros com soldados, a escrava que tem uma filha com o senhor e se joga no rio com a criança, temendo a represália da senhora, o levante dos escravos que terminou com várias “caveiras espetadas nos postes”, que faziam um ruído fúnebre à noite, enfim, a comida, o trabalho, as pequenas alegrias e o sofrimento dos negros, bem como seu castigo, retratado em cena que remete a uma macabra culinária humana:
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura

Com tanto sofrimento, o negro prepara produtos que fazem sua fama nos bailes da corte, como a farinha, a pinga, o fumo: “É comê bebê pitá e caí”. Aos brancos cabe também uma pitada de sofrimento, na figura do rapaz convocado para a guerra do Paraguai, onde ficou para sempre, deixando a noiva a tocar piano de saudade.
Toda essa movimentação, toda essa vida tem um chefe supremo, que regula as condições de existência de todos: o dono, que exerce um poder feudal, maior do que o do próprio imperador.

SÃO MARTINHO

A vida de fazenda é retomada nessa parte; não o espaço escravista da seção anterior, mas a fazenda moderna, iluminada pela mesma lua desde os tempos do descobrimento. O Brasil agora é cortado pelas estradas de ferro, e a moeda de valor é o café, é o símbolo da pujança paulista, o carro-chefe de sua prosperidade, o orgulho do fazendeiro que “olha os seus 800 000 pés coroados”.
A prosperidade, entretanto, permite que se retome a vida bucólica no pomar antigo, as crendices, as tragédias passionais, as cantigas de violas (“O violeiro”, quadrinha de versos heptassílabos), a festa do churrasco e do chimarrão. Os tempos antigos, retratados na decadência do ex-escravo, o “Pai negro”, cedem lugar a tempos mais modernos, lembrados na presença da escola rural, nas leis de registro obrigatório das crianças, e na indústria que nasce no rastro da opulência do café:

Os fornos entroncados
Dão o gusa e a escória
A refinação planta barras
E lá embaixo os operários
Forjam as primeiras lascas de aço

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O título misterioso pode ser as iniciais de rio Paraíba, ou de reflexão poética, ou de roteiro de poesia. Rio Paraíba porque os poemas dessa parte parecem reconstituir uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, de trem, cujo espaço predominante é o vale do rio Paraíba. Reflexão poética pela revelação que o poeta tem por meio de seu filho:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Essa parte é também um roteiro de poesia, porque fornece um itinerário de descobertas poéticas, de São Paulo ao Rio de Janeiro, com instantâneos, “Como um fotógrafo”, das cidades do interior paulista e fluminense, sua simplicidade, seus imigrantes, seus produtos, que se destinam às capitais, seus bancos de jardim e cinemas freqüentados por moças vigiadas por mães.
A chegada próxima ao Rio de Janeiro é anunciada por dizeres de linguagem publicitária que anunciam um apartamento na então capital do país, local de chegada da poesia itinerante de Oswald de Andrade nessa parte.

CARNAVAL

Essa parte se inicia com a interjeição festiva com que, na Antiguidade, se evocava Baco durante as orgias: Evoé, e viva o Carnaval, a alegria, o delírio, o “brilhante cortejo” que, por tão grandioso, não será submetido, e sim sobremetido à apreciação do Brasil, que julgará a competência das “hostes aguerridas / do riso e da loucura”.
O tom do primeiro poema, “Nossa Senhora dos cordões”, fazendo jus ao nome, é religioso, e contém um pedido à santa que proteja o evento. Numa atitude irônica, Oswald carnavaliza as graças religiosas, os intelectuais (“o culto povo carioca”) e a imprensa (“Acérrima defensora da Verdade e da Razão”). A carnavalização das instituições tem como objetivo proteger o carnaval contra sua institucionalização como bem cultural da elite, composta de “distintos cavalheiros da boa sociedade / Rigorosamente trajados”, das “damas / Fantasiadas de pavão”

SECRETÁRIO DOS AMANTES

Aqui se apresenta um voz feminina que fala da Europa reportando-se ao amante possivelmente no Brasil. Em meio a excelentes hotéis, jantares magníficos, as belas paisagens européias, a locutora registra sua saudade e tristeza pela separação. Entretanto, o choro de saudade do amante apartado pela distância não compensa as manchas de maquiagem provocadas pelas lágrimas.

POSTES DA LIGHT

Dentro deste roteiro brasileiro se insere um outro, pela cidade de São Paulo. Evidenciam-se os contrastes: o antigo e o moderno no confronto entre a carroça puxada por cavalo que entrava o bonde que transporta doutores advogados, com castigo para o anacrônico infrator; a Biblioteca Nacional, que ostenta, entre suas obras canônicas e de legislação vetusta, títulos transgressores como “A arte de ganhar no bicho”; a prostituição e os ricos da sociedade “Hípica”.
São variados os retratos de São Paulo, a cidade “sem mitos”, de múltiplas identidades e tradições: o vale do Anhangabaú, com seu viaduto de ferro; o Jardim da Luz, recreio das famílias paulistanas; a praça Antônio Prado; os pontos nobres de residência etc.
Não podem faltar os tipos populares, como o malandro com passagem na polícia que aborda mocinhas e o lambe-lambe que registra instantâneos poéticos de seres apaixonados (técnica utilizada pelo próprio autor em seus instantes de poesia).
Em “Escola Berlites”, o autor refere-se às famosas escolas de língua do início do século XX, que utilizavam o método “direto” de ensino de línguas (associação objeto-palavra), do pedagogo americano Maximilian Berlitz, cujo sucesso se difundiu pelo mundo. A evocação do poeta recai no mau-humor da professora e nas frases sem nexo que se formam nas línguas estrangeiras.
Elementos importantes na vida de uma capital metropolitana são as invenções da modernidade, que começavam a incorporar os hábitos de vida da sociedade de então: a vitrola acionada por manivela que tocava discos de cera de carnaúba; o cinema, diversão que inaugura um novo tipo de sedução interdita; a rádio bandeirantes que “cinematiza” uma luta de boxe, os automóveis, os arranha-céus.
A publicidade na capital também aparece como um sinal dos novos tempos: os reclames de vendas de imóveis em regiões nobres da capital, anúncios de lutas de boxe, o “Reclame” da “graciosa atriz” Margarida Perna Grossa.
No futebol, o direito ao ufanismo: as muitas vitórias e a única derrota da seleção brasileira em uma excursão pela Europa
A “caipirinha vestida por Poiret” do poema “Atelier” é referência à pintora Tarsila do Amaral, que foi casada com Oswald. Os retratos agora são dos quadros de Tarsila, com seus temas, suas cores, o som (as locomotivas; klaxon: buzina de automóvel) o cheiro do café no “silêncio emoldurado”.
Seguem flashes sobre a vida na cidade grande: a prostituição em “Bengaló”; o amor “interesseiro”, porém sincero em “Passionária”; a língua falada que difere da escrita em “Pronominais”, lutas de boxe, os passeios, os parques etc.
Oswald não deixa de espetar uma ironia nos homens “importantes” de São Paulo, como na cena dos doutos advogados atravancados por um cavalo e no Espírito Santo da procissão, de quem ele espera o poder de “inspirar os homens / De minha terra”.

ROTEIRO DAS MINAS

Neste roteiro, o poeta apresenta várias cidades mineiras, colocando seu foco principal no aspecto religioso e histórico de nossa tradição, durante a Semana Santa. O convite para redescobrir as Minas Gerais, em viagem de trem, começando por São João del Rei, é feito no primeiro poema, lembrando o locutor os feitos dos bandeirantes no passado.
A paisagem dessa Minas de sangue e ouro é vista da janela do trem: a madrugada no alvorecer, torres de igrejas, pontes de muitos rios, coqueiros em grupos, palmas, criações de cavalos... As cidades se sucedem. Sete-lagoas, Sabará, Caeté: muita moça bonita, algum ouro, e o malandro violeiro; São José del Rei: o ouro terminando, a decadência, o Judas enforcado no sábado de aleluia; Traituba: sobrado com jeito de igreja, pomares, frutas, passarinhos, carros de bois. E mais: Ibituruna e seus campos, Carmo da Mata, Tartária, Capela Nova, Bom Sucesso...
Ouro Preto merece destaque: a igreja de São Francisco de Assis, com púlpitos do Aleijadinho e teto de mestre Ataíde, a lembrança dos tempos rigorosos do Conde de Assumar. Em Congonhas, os profetas do aleijadinho em sua “religiosidade no sossego do sol”.
Tarsila do Amaral: “Abaporu”
O asseio se dá na típica Semana Santa mineira. Nas festividades, mais alegria do que pesar pela tragédia de Cristo, nos rituais, a procissão que ilumina as ladeiras, a encenação da Paixão de Cristo, o dia de Reis com o bumba-meu-boi. A volta à tranqüilidade marca o final dos festejos (“Ressureição”).
O poeta, que seguia o roteiro da Semana Santa, despede-se das festas com “aquela paixão / No coração”, e segue sua viagem até a proximidade da capital, onde pousa num hotel “rigorosamente familiar”, que “oferece vantagens reais”. Aproxima-se o Barreiro, a Gameleira, Lagoa Santa (“Águas azuis no milagre dos matos”), Santa Luzia, terra do pintor Marcolino, Sabará e seu córrego onde havia “negros a cada metro de margem” e que ainda atrai faiscadores.
A viagem finda com a despedida da paisagem mineira em “Ocaso”:

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
A cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro das minas

LÓIDE BRASILEIRO

“Minha terra tem palmares”: tanto o sofrimento dos negros escravos marginalizados pela sociedade dominante quanto o conjunto de palmeiras que embelezam esta terra compõem os motivos de saudade e de crítica para quem está para lá do Atlântico. “Canto de regresso à pátria” é uma irreverente paródia da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Sua intenção é dessacralizar a poesia canônica, retirando-lhe a aura de objeto único, irreproduzível, a ser exposto no museu da veneração.
Lóide Brasileiro é o navio que conduz o poeta de volta a pátria. A partida em Lisboa se confunde com a partida para o descobrimento do Brasil da “pátria quinhentista”. No mar, o navio com seus bêbados, gigolôs e jogadores, além de famílias tristes; no céu, o Cruzeiro, que marca a passagem do Equador, “Primeiro farol de minha terra”.
A aproximação da terra brasileira é anunciada pelos “Rochedos São Paulo”, nas proximidades do Amazonas e por “Fernando de Noronha”, ilha solitária, “terra habitada no mar”.
A chegada à costa brasileira revela Recife, do ciclo da cana-de-açúcar, e Olinda, que conserva em seus canhões a memória das batalhas contra os holandeses. Em seguida a orla marítima baiana, com suas jangadas, e o Rio de Janeiro do Pão de Açúcar. São Paulo se anuncia por uma publicidade governamental: “A Secretaria da Agricultura fornece dados / Para os negócios que aí se queiram realizar”.
No porto de Santos, os funcionários da alfândega examinam as malas, mas não conseguem apreender a “saudade feliz” que o poeta carrega de Paris.
O poeta termina com a expressão em latim que alguns autores, em geral religiosos, põem, às vezes, no fim de um livro, em sinal de gratidão: “Laus Deo” (Louvado seja Deus).

A ESTÉTICA DO REAPROVEITAMENTO

O material utilizado por Oswald em Pau-Brasil é o passado brasileiro, revisitado em textos de outros autores, expressões em latim e em outras línguas, dizeres populares, orações etc. Eis o que chamamos de escrita parodística, escrita de segunda mão, uma apropriação dos enunciados pré-existentes ao texto. Coloca-se então a questão do plágio, da cópia. Oswald investe contra o status poético brasileiro do início do século, que é a estética da imitação, da cópia de modelos estrangeiros, conforme ele afirma em “Falação:

Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa.

Estaria o poeta entrando em contradição, do tipo “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Faz-se necessário observar que Oswald, ao reutilizar outros textos em sua poesia, não está reproduzindo situações, não está promovendo um espelhamento deles a partir de seu berço de origem. Deve-se entender a “cópia”, aqui, como uma deformação do texto original, um reaproveitamento parodístico, um deslocamento que leva o texto a uma outra dimensão, com o intuito de homenagear, ou de satirizar, ou de inverter.
Não existe, portanto, uma mera reprodução textual, mas um reaproveitamento que constrói uma revisão crítica do passado histórico-literário brasileiro, produzindo uma releitura, uma redescoberta do Brasil que dá voz a todos os elementos que participaram dessa construção.
Laus Deo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo. Secretaria do Estado da Cultura, 1990.
CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. V. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1970.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1987.

Wednesday, October 25, 2006

PROJETO DE PESQUISA: O ESVAZIAMENTO DA HISTÓRIA NAS LITERATURAS BRASILEIRA E PORTUGUESA CONTEMPORÂNEAS

UFC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

DEPARTAMENTO DE LITERATURA





PROJETO DE PESQUISA








TÍTULO:

O ESVAZIAMENTO DA HISTÓRIA NAS LITERATURAS BRASILEIRA E PORTUGUESA CONTEMPORÂNEAS





AUTOR DO PROJETO:
Cid Ottoni Bylaardt
CENTRO/UNIDADE:
Centro de Humanidades/Curso de Letras
DEPARTAMENTO/SETOR:
Departamento de Literatura / Setor de Literatura Brasileira
LOCAL DE EXECUÇÃO
Universidade Federal do Ceará
INÍCIO:
Setembro/2006
CONCLUSÃO:
Julho/2008


APRESENTAÇÃO

Este projeto de pesquisa pretende traçar as linhas gerais de investigação do indeferimento da História[1] nas literaturas brasileira e portuguesa contemporâneas. O termo literatura é considerado aqui no sentido de uma atividade artística que rompe com a tradição das belas-letras, conceito que predominou na escrita literária até o século XIX, e com repercussões significativas na concepção de discurso literário ainda no século XX. Essa ruptura corresponde historicamente a um deslizamento do sentido do vocábulo literatura, que pode ser definido como a passagem de um saber para uma arte. A literatura já foi porta-voz dos deuses até sua retirada, em que a obra passa a falar de sua ausência na reutilização de sua história desprovida do sagrado. A obra também já falou pelo homem da ordem, pelo equilíbrio de suas edificações e pela manutenção do status quo. A palavra literária democrática fala pelo homem em sua diversidade: os deserdados, os sem-palavra, os desesperados, os idealistas, os conformados. Essa palavra literária age na História, embora seja uma ação inconsistente e ineficaz. Em todas essas situações, o que sempre foi subtraído da linguagem literária é ela mesma, seja no apagamento do poema pela obscuridade do sagrado, seja na edificação do mundo em seu ofício subalterno de servir às verdades do homem. Quando a obra literária já não tem mais o que reivindicar, quando a própria História e o próprio saber se encarregam de defender a História e o saber, é então que o discurso literário se afirma nele mesmo, em direção a sua absolutização.
Nesse movimento, a literatura tende a desvincular-se da História entendida como a consolidação de um saber ligado a um objetivo humanista. Esse afastamento será investigado em obras de ficção e em textos poéticos, priorizando-se a literatura brasileira e portuguesa da última década do século XX em diante. Entre os autores que serão pesquisados contam-se João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Silviano Santiago, Rubem Fonseca, Lobo Antunes, Teolinda Gersão, Haroldo e Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Horácio Costa, Afonso Ávila, Paulo Henriques Britto, Hilda Hilst, Maria Gabriela Llansol, Herberto Helder e outros mais cujos textos se mostrarem inseridos na tendência que este projeto propõe investigar.
A fundamentação teórica inclui pensadores e ensaístas como Maurice Blanchot, Haroldo e Augusto de Campos, Afonso Ávila, Ruth Silviano Brandão, Lúcia Castelo Branco, Vera Casa Nova, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Michel Foucault, Georges Bataille.
Todos esses elementos nos parecem suficientes para se estabelecerem sólidas relações entre os trajetos da literatura contemporânea e de determinadas vertentes da metalinguagem literária, que têm em Maurice Blanchot um de seus mais importantes pensadores.

JUSTIFICATIVA

A pesquisa proposta neste projeto pressupõe uma mudança de paradigma na abordagem das relações da literatura com a História. O termo História será considerado aqui como uma narrativa das aventuras do saber e dizer humanos, como o registro de uma cultura, uma episteme. Numa perspectiva tradicional, a literatura, entendida como a construção de uma supra-realidade, insere-se num universo maior denominado cultura, propiciando o surgimento de uma sinédoque subordinante que incomoda e gera perturbações e mal-entendidos. Um deles é o de que, como parte da cultura, a literatura deve servir a ela. Essa sinédoque, entretanto, pode ser desfeita, ou até mesmo invertida, se se considerar que a literatura ─ na acepção proposta nesta investigação ─ possui o infinito, mas o finito lhe escapa, ao falar dos confins do tempo e da História. Temos aí a questão da demarcação do espaço literário: como pode tudo, a literatura tem inclusive o poder de se retirar da História e do poder, de trapaceá-los ao trapacear a língua, de erigir a mentira como sua verdade. Se o logro salva o texto na construção da arte, deita a perder a tese que aponta para o saber, e vice-versa. O olhar da congruência, a expectativa da lógica podem aí se atrapalhar, frustrando o encontro dos fins que propicia o aplauso apaziguador e a execração da não-conformidade, tornando-se tormenta e impossibilidade.
Ao se analisarem certos textos recentes da literatura brasileira e portuguesa, assim como de outras literaturas, do período denominado “pós-modernismo” (termo carregado de imprecisão), é possível perceber elementos comuns que parecem caracterizar determinados discursos literário do final do século XX e do início do XXI. Assim, na narrativa e na lírica, podem-se constatar a multiplicidade de enunciadores (o narrador ou eu-lírico único e inquestionável passa a ser substituído ou replicado por outra, ou outras vozes, que fazem do relato um texto sem um dono que lhe confira autoridade); a instabilidade e desautorização do enunciador (a autoridade do narrador/eu-poético tradicional passa a ser colocada em questão na medida em que outras vozes se interpõem ou rebatem a voz “central”, ou a que deveria ser o centro, que não há mais); a insolubilidade, ou a ausência de desfecho (a complicação, o clímax e o desenlace clássicos não mais constituem o apelo da narrativa; a lírica ressente-se de uma direção estabelecida); a desmaterialização da trama narrativa (não há propriamente uma trama, no sentido tradicional; os acontecimentos não apresentam obrigatoriamente uma relação de causa e efeito entre eles; as estruturas são corroídas internamente por fatias, vazios, parecendo fadadas à auto-destruição, ao despedaçamento); a indefinição entre real e ficção (transmutação contínua do real em irreal e do irreal em real); a variação de escala, desmesura, tendência ao “menos” (desproporcionalidade entre as partes de um texto, ou excessiva miniaturização da narrativa, ou expansão da lírica); instabilidade e tensão enunciativa (não há mais um condutor confiável da trama ou do universo poético; ele dá voltas, mostra-se indeciso, não sabe muitas vezes para onde ir); forma ditada pela lógica interna da obra (as formas tradicionais da narrativa, como também da lírica, parecem definitivamente abandonadas; o que define a forma é o próprio texto; assim, cada obra é em si uma forma mais ou menos original); interferência de outros sistema semióticos (intensifica-se o diálogo da literatura com outras linguagens, particularmente na poesia); revelação dos bastidores da escrita (intensificação da metalinguagem, problematização direta do processo criativo).
Considerando-se essa tendência geral de errância e dispersão, percebe-se que a História perde seu poder ordenador do texto literário, que recusa o tempo progressivo e teleológico. O discurso literário que atua ao lado da História nesse sentido deve ser entendido como o discurso universal, dos metarrelatos totalizantes (ou “totalitários”), das utopias políticas ou artísticas. O indeferimento da História coloca em sua ausência a heterogeneidade, a diferença ─ ou a indiferença ─, a fragmentação, a indeterminação, o relativismo. Enquanto a modernidade procurava estabelecer projetos para o homem e sua episteme, em busca de progresso linear, verdades absolutas, instituições duradouras, a contemporaneidade vê pulverizarem-se quaisquer tipos de projetos totalizantes.
A fundamentação teórica principal desta pesquisa é a obra de Maurice Blanchot (1907-2002), que dedicou pelo menos seus últimos cinqüenta anos de vida inteiramente à literatura. É evidente que seu pensamento teve desdobramentos significativos, e ecoam, por exemplo, nas obras de Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Rancière, e Georges Bataille, entre outros.
Maurice Blanchot assim se manifesta sobre a trajetória da obra literária na humanidade:
L’œuvre qui a été parole des dieux, parole de l’absence des dieux, qui a été parole juste, équilibrée, de l’homme, puis parole des hommes dans leur diversité, puis parole des hommes déshéritées, de ceux qui n’ont pas la parole, puis parole de ce qui ne parle pas en l’homme, du secret, du désespoir ou du ravissement, que lui reste-t-il à dire, qu’est-ce qui s’est toujours dérobé à son langage? Elle-même. Quand tout a été dit, quand le monde s’impose comme la vérité du tout, quand l’histoire veut s’acomplir dans l’achèvement du discours, quand l’œuvre n’a plus rien à dire et disparaît, c’est alors qui elle tend à devenir parole de l’œuvre. En l’œuvre disparue, l’œuvre voudrait parler, et l’expérience devient la recherche de l’essence de l’œuvre, l’affirmation de l’art, le souci de l’origine. [2]

A literatura, assim, nasceu para servir aos deuses, que se manifestavam por seu intermédio. Na Modernidade, com a retirada deles, a arte se volta para o homem, tornando-se imitação ¾ tarefa subordinada. Ao representar o mundo e os homens, o artista transforma-se no criador que glorifica a arte e se engana pensando tornar-se divino ao interferir no mundo como o trabalhador de seis dias, missão menos divina de Deus. Ao invés de assumir a herança dos deuses que se foram, o artista tornou-se nada mais que um ser subordinado à ordem do mundo.
A literatura que será pesquisada a partir deste projeto representa, no embate contra o divino e contra o humano, o desvio da concepção ordenada da prosa e da poesia em direção às aventuras do sentido, inaugurando uma nova partilha entre a ordem do discurso e a ordem das condições. A literatura não é, então, apenas o que sucede as belas-letras clássicas, mas aquilo que as suprime, como evento singular da escrita, não mais subordinado à concepção de inventio (assunto), de dispositio (organização das partes) e de elocutio (tons e complementos convenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto). É a ruptura da literatura, que contém em si a ilusão da continuidade, mas que leva a sua absolutização. Não mais as relações estáveis entre as palavras e as coisas e as idéias. Não mais a ordenação das posições do falante e do discurso, do pai enunciador e da letra filhote. Não mais o elemento ordenador da mimese. Não mais a convenção entre o enunciador e o destinatário que regula as maneiras de recepção da obra de arte. Não mais a correspondência entre a letra e seu pai, mas a falha entre o corpo e a letra.
A quebra das convenções estabelece a “doença” da escrita: sua orfandade faz com que a contingência determine seu referencial, ou seja, a escrita não possui a priori um referencial ou um enunciador pré-determinado. A teoria da representação lingüística (cada palavra a uma coisa representada) ou a idéia de que a palavra é signo sucumbem aí. O remédio para a doença da escrita é sempre outra escrita, um texto que corrige as falhas do outro, numa interminável palinódia.
A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como a sociedade das deslegitimações que tende a derrubar a divisão entre os superiores e inferiores em vários níveis, num regime que remete ou que converge para a desigualdade e para a desordem democrática. Essa perturbação é um efeito da disseminação dos discursos, que confirma a deslegitimação própria da democracia, dispersão e desvio do discurso, que erra sem voz que lhe confira legitimidade.
Em La bête de Lascaux, Blanchot apresenta tal errância recorrendo ao Fedro, de Platão. No diálogo, Sócrates rejeita a palavra escrita, porque ela não pensa no que diz, diz sempre a mesma coisa, não escolhe seus interlocutores, não responde se lhe perguntam e não se defende se a atacam. Os argumentos que condenam a linguagem escrita servem para condenar também a palavra pura do sagrado, que excede seu locutor. Contrariamente à perspectiva socrática, essa palavra impessoal, para Blanchot, é a palavra da literatura, do eterno recomeço, que se manifesta
là où la transparence de la pensée se fait jour de par l’image obscure qui la retient, où la même parole, souffrant une double violence, semble s’éclairer par le silence nu de la pensée, semble s’épaissir, se remplir de la profondeur parlante, incessante, murmure où rien ne se laisse entendre.[3]

É a pulverização do suposto corpo glorioso de uma sociedade, outrora representado pela epopéia de um povo, na qual o criador escreve como quem fabrica armas e utensílios necessários à perpetuação do grupo, num imitativo elevado que exprime o ethos da coletividade, em que a História aparece como elemento organizador da arte, em que a ordenação é respeitada pelo artista que não quer passar por incompetente, em que o modo de ser da literatura corresponde aos modos de fazer da comunidade.
A literatura não mais belas-letras, em oposição à escrita convencional, é capaz de dar a qualquer corpo obscuro a capacidade do brilho, porque a escrita deixa de se enquadrar em esquemas de representação para promover a errância da letra sem pai, a heresia da conspurcação das belas letras, o espírito errante que desafia a coerência entre a ordem das palavras e a das coisas. O compartilhamento da letra por todos é uma contingência igualitária que propicia um novo tipo de desigualdade decorrente da deslegitimação (ligada à lei dos astutos), que se opõe à desigualdade existente no sistema de legitimação.
Nessa condição, a literatura tenderia a aproximar-se de sua absolutização, tornando-se um evento tanto mais singular, único, quanto mais se afastar de seu locutor, enunciador ou produtor, com “la disparition élocutoire du poète”, nas palavras de Mallarmé, e conseqüentemente do trabalho do mundo, que forma a História. Para Maurice Blanchot, o apagamento do sujeito é uma das características primeiras da obra de arte:
L’œuvre d’art ne renvoie pas immédiatement à quelq’un que l’aurait faite. Quand nous ignorons tout des circonstances qui l’ont preparée, de l’histoire de sa création et jusq’au nom de celui qui l’a rendu possible, c’est allors quélle se raproche le plus d’elle-même. C’est là sa direction véritable[4].

O rompimento das regras, a quebra das convenções acarreta novos antagonismos que marcam o texto literário, a partir da oposição ao suporte mítico e histórico, bem como a dispensa da alegoria como referência, como um sentido que se coloca atrás da intriga.
A escrita que Blanchot reivindica é essencialmente simbólica. Para ele, o símbolo é uma figuração que não representa nem significa nada; ele apenas apresenta os seres e as coisas, “et non plus, dans l’absence d’une chose, cette chose, mais, à travers cette chose absente, l’absence qui la constitue, le vide comme milieu de toute forme imaginée et, exactement, l’existence de l’inexistence”[5]. Assim, os fatos, os gestos, os movimentos que ocorrem numa narrativa são detalhes insignificantes desprovidos de sentido. Em seu conjunto, entretanto, anunciam algo fora do real, “une expérience du néant, la recherche d’um absolu négatif, mais c’est une rechercehe qui n’aboutit pas, une expérience qui échoue, sans que pourtant cet échec puisse recevoir une valeur positive”[6]. O símbolo literário blanchotiano situa-se, portanto, fora da História e do poder.
Numa posição clássica, o escritor onipotente cria seres submissos, o pai gera filhos, fazendo-se mestre de vida ou mestre de jogo. Para Blanchot, há literatura quando o escritor quebra as leis da escrita para atender às exigências profundas da obra, entregando-se totalmente a ela, deixando de ser ele mesmo, tornando-se o totalmente outro. Essa exigência que faz o homem escritor se transformar é relacionada pelo pensador francês ao olhar de Orfeu sobre Eurídice, a transgressão necessária e inevitável. Há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos rompem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebrando as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da letra artisticamente trabalhada. A literatura não é então apenas a purificação da linguagem em seu interior, muito menos o engajamento impuro.
Tradicionalmente, o sujeito escritor é o pai do discurso, e o personagem é seu refém, ou seja, aquele que não deveria ler nem participar da vida do escrito. Ao abandonar sua posição de senhor, atendendo a uma exigência profunda da obra, o ser se dilui em homem, escritor, narrador, personagem, na “quadruple métamorphose” de que fala Blanchot[7] em relação a Proust, transformando-se também no louco que cria o “próprio” da literatura, eliminando a paternidade reguladora das convenções. Não é essa a maneira como “a” literatura se determina, “no jogo das transformações e das reviravoltas da fábula”[8]? O “próprio” da literatura é, então, a reescrita do que já foi escrito, uma tagarelice sem fim sobre uma história que não edifica, em que não se evidencia a potência do escritor, que não se faz mestre de vida nem mestre de jogo, incapaz de gerar seres submissos que atuem como instrumentos de reflexão sobre a busca da verdade, negando fazer da literatura filosofia ou História.
Essa idéia conduz Maurice Blanchot ao “estado neutro” da linguagem. A neutralidade de que ele fala advém da relação de busca que o escritor mantém com o livro. O livro nunca está pronto; não é ele propriamente que exerce atração sobre o escritor, mas a busca dele. O livro só importa na medida em que ele representa a busca do livro, independentemente dos gêneros e espécies. E é essa busca que conduz o escritor a neutralizar a escrita literária, em reduzi-la ao ponto zero impessoal da linguagem, que é o próprio da literatura:

(...) plutôt comme ce qui ne se découvre, ne se verifie ni ne se justifie jamais directement dont on ne s’approche qu’en s’en détournant, qu’on ne saisit que là où l’on va au-delà, par une recherche qui ne doit nullement se préoccuper de la littérature, de ce quélle est “essentiellement”, mais qui se préoccupe au contraire de la réduire, de la neutraliser ou, plus exactement, de descendre, par un mouvement qui finalement lui échappe et la néglige, jusqu’`a un point où ne semble parler que la neutralité impersonnelle.[9]

A neutralidade, ou a exterioridade, no sentido dado por Blanchot, é a condição do discurso que se desenvolve a partir de si mesmo, rumo ao espaço neutro, que pulveriza na literatura seu caráter de mitologia, retórica ou ideologia. O silêncio da literatura, o possível caminho da absolutização, o espaço fechado, separado e sagrado, que é o espaço literário, o desaparecimento do sujeito, o desdobramento do discurso a partir de si mesmo, a parole neutre, as heresias da letra sem corpo, todos esses movimentos são bastantes para se relacionar o pensamento de Blanchot ao estudo das obras da contemporaneidade.
Outros pensadores importantes para esta pesquisa são Barthes, Foucault, Rancière, Deleuze e Derrida.
O Barthes pós-estruturalista, principalmente, desenvolve questões fundamentais para esta investigação, como a idéia do aniquilamento do autor na literatura, o grau zero da escrita, o neutro, e particularmente a relação da doxa ─ carregada de História e de ideologia ─ com a escrita literária.
Foucault, embora não seja um filósofo exclusivamente dedicado à literatura, elegeu o texto literário como complemento de suas análises arqueológicas, principalmente na postura não-humanista da literatura contemporânea. O autor de As palavras e as coisas trabalhou várias idéias ligadas à literatura, como a experiência do fora, ou do exterior, a transgressão, a passagem para além da morte, o simulacro, a audição do murmúrio infinito, o amontoado do todo-dito.
Gilles Deleuze, com seu conceito fundamental de imanência, também guarda pontos em comum com o pensamento do exterior de Blanchot. Esse diálogo intertextual pode ser percebido ainda nas noções deleuzianas de “gagueira”, do informe ou do inacabamento na escrita, do neutro, da literatura como um devir outro da língua (a escrita literária como uma espécie de língua estrangeira).
Em Derrida, nossa investigação deverá voltar-se para sua abordagem da “desconstrução”, principalmente, com o questionamento da noção de centro no conceito de estrutura, e das relações binárias entre os opostos.
Jacques Rancière, pensador de tendência marxista, é um caso curioso de filósofo cujo interesse maior não está propriamente ligado nem à literatura nem aos estudos das linguagens. Sua relação com a literatura aparece mais especificamente no livro Políticas da escrita, em que ele lança um olhar do exterior sobre o fato literário. Suas idéias mais importantes referem-se à errância da letra, ao autor como refém da escrita, à perturbação democrática da letra sem corpo que a sustente, à ruptura da literatura com as “belas-letras”.
Entre os estudiosos brasileiros que desenvolveram idéias ligadas à temática desta pesquisa, citamos principalmente Haroldo e Augusto de Campos, Afonso Ávila, Ruth Silviano Brandão, Vera Casa Nova, Lúcia Castelo Branco, Leila Perrone-Moisés e Maria Esther Maciel, entre outros.
Os elementos de destaque da pesquisa propriamente dita, entretanto, são os textos literários. Como possível ponto de partida, citaremos aqui, com breves comentários, alguns deles, cujas leituras iniciais parecem apontar para os rumos estabelecidos para esta investigação.
Em As iniciais (1999), de Bernardo Carvalho, por exemplo, as leis que regem o texto são as leis do que Rancière chama “esse mundo de baixo, esse mundo molecular, in-determinado, in-individualizado, anterior à representação, anterior ao princípio de razão”[10]. Aqui, a narração clássica é esvaziada, transformada em blocos de textos que se superpõem e se entremeiam, é a literatura escondendo seu trabalho ao mesmo tempo em que o realiza. O sentido é indeterminado, a narrativa se questiona a si mesma, autor/narrador/personagens são indefinidos e não mostram o rosto nem o nome, os bastidores da narração aparecem em forma de um “laboratório” em que um escritor se exercita, e o leitor, bem como as demais vozes e corpos presentes, participa de um jogo que não parece conduzir a nenhum lugar.
Nove noites (2002), também de Bernardo Carvalho, apresenta a história de um homem de um grande centro urbano que se desloca até uma aldeia indígena para investigar a morte de um etnólogo. Para isso, ele tem que deixar em casa seu conceito de verdade e mentira, a partir das idéias dos índios, para os quais a verdade não possui uma consistência lógica intrínseca: o que é considerado verdade neste momento pode já não sê-lo amanhã ou depois. Essa instabilidade impede que se tenha um relato totalizante das relações entre os povos.
Diário de um fescenino (2003), de Rubem Fonseca, é o diário de um escritor chamado Rufus. Enquanto escreve suas memórias, ele declara a intenção de escrever um novo romance, um bildungsroman, “com detalhes de um episódio importante da história universal”, um romance grosso, de muitas páginas. Em seu diário, o escritor tece considerações sobre a literatura e seu modo de existência, bem como sua relação com o público leitor. Há comentário sobre a condição de palinódia da literatura, sobre a glória das letras no plano social, e definições irônicas sobre a escrita: “A literatura, meu filho, é a mais nobre das artes e tem como principal objetivo elevar, enriquecer e aprimorar a mente e o espírito das pessoas”[11].
Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, é um caso curioso de forma literária inclassificável: não é romance, não é novela, não são contos (a capa de trás fala em “seu último romance”). Não tem princípio nem fim, não se dirige a lugar nenhum; os textos desconexos ─ como as experiências de vida em uma grande cidade ─ são numerados até o 69, após o que aparecem duas páginas negras e um diálogo entre marido e mulher que, da cama, ouvem os gemidos de alguém esfaqueado mas não têm coragem de verificar o que é. Profusão de discursos e enunciadores, de recursos semiológicos: previsão metorológica, vida de santa, pequenas narrativas, diálogos, poemas, relação de empregos, lista de 53 livros os mais variados possíveis, oração, relação de pessoas que buscam outras para amizade, casamento, diversão, lista de garotas e garotos de programa, o negro, o índio, o branco, a prostituta, o corrupto, o país podre, sem esperança nem dignidade. O excesso que se traduz no nada.
Em Budapeste (2003), Chico Buarque levanta a questão de autoria. José Costa é um escritor de aluguel, um prostituto da escrita, ghost writer carioca. Ele vai para Budapeste, e escreve para as glórias de outros escritores, até que o seu livro, Budapest, que ele achava que não tinha escrito, fez o maior sucesso na Hungria, até que ele se convence de que era ele mesmo o autor, e de que o livro acontecia ao mesmo tempo em que ele o lia.
A viagem sem começo nem fim é descrita em Meu tio Roseno, a cavalo (2000), de Wilson Bueno. Quem narra é o sobrinho do tio Roseno, cuja identidade varia constantemente – Rosano, Rosalvo, Rosilvo, Rosevalvo... Mistura de português, espanhol e guarani, é uma ficção híbrida de fronteira, sem lugar demarcado, sem chegada definida. A busca de Andradazil, a filhinha recém-nascida, é a preocupação da origem, glorificada na guerra. Entretanto, Andradazil não há, o cavaleiro quixotesco viaja por seis céus e entrecéus para chegar ao sétimo céu desta fábula, que lhe mostra “só uma linha e a fímbria do horizonte”.
O vôo da madrugada (2003), de Sergio Santana, é um livro de contos. A escrita denuncia sua alteridade: “sinto em minha mão a leveza do ‘outro’ ”, a morte faz sua escrita na figura da defunta linda que deita sobre o ombro do narrador passageiro; o filho drogado faz sexo nefando com a mãe, num prenúncio da relação atormentada da obra com o escritor da angústia da criação; da oscilação entre a clareza e a obscuridade da escrita.
Dalton Trevisan, em Pico na veia (1999), constrói a miniaturização da ficção, em suas “ministórias de joões”, relatos de desmesura, deformação, sodomia; registro do absurdo no cotidiano, e do cotidiano do absurdo.
O falso mentiroso (2003), de Silviano Santiago, é a narrativa cheia de falhas, denunciadas pelo próprio enunciador, referências históricas enganosas, suspeitas e sem consistência, multiplicação das identidades da voz narrativa e das condições de seu nascimento.
Utilizando um conceito histórico, a guerra, João Gilberto Noll, em A céu aberto (1996), dispersa-o totalmente: a guerra não tem começo nem fim, nem causa nem conseqüência. Os personagens transitam no espaço do imprevisível, do impossível; é o mergulho total no desconhecido, na impossibilidade da História na literatura.
António Lobo Antunes é um romancista português contemporâneo cuja escrita pode ser relacionada a uma das mais importantes idéias desenvolvidas por Maurice Blanchot: a de que a literatura só é possível no domínio da impossibilidade. Tal afirmação, obviamente paradoxal dentro de uma lógica binária, liga-se a uma busca não-explicitada da escrita literária, que independe da pessoa do escritor,uma demanda sem plano nem objetivo, conduzida pela força da própria escrita àquilo que Blanchot chamou vertige d’espacement. Mesmo quando utiliza elementos históricos fortes como a Revolução dos Cravos em O manual dos inquisidores e a guerra de Angola em O esplendor de Portugal e em Boa tarde às coisas aqui em baixo, a História comparece como elemento de fragmentação, de dispersão da escrita, e não como uma sólida referência a que ela pudesse se ancorar.
Quanto ao texto eminentemente poético, Leminski, em seu último livro publicado (La vie em close, 1991), celebra o espírito errante da letra no poema “Limites ao léu”, ao promover uma definição antropofágica de poesia empilhando curtas apreciações de 22 poetas, incluindo ele mesmo, numa dispersão desconcertante de sentidos de múltiplos intertextos que ecoam no vazio do seguinte poema:

TEXTOS TEXTOS TEXTOS
malditas placas fenícias
cobertas de riscos rabiscos
como me deixastes os olhos piscos
a mente torta de malícias
ciscos[12]

O vazio da aventura da linguagem continua a ecoar em Arnaldo Antunes, numa evocação do tartamudear deleuziano:

a gagueira quase palavra
quase aborta
apalavraquasesilêncio
quase transborda
osilêncioquaseeco[13]

Em Macau (2003), de Paulo Henriques Britto, a poesia é apresentada como algo incerto, sem rumo, uma "fala esquisita, aparentemente anárquica", isto é, sem ordem e sem governo, "cágados com as quatro patas viradas pro ar", "cascos invertidos" que testemunham o percurso de um caminho avesso a uma direção, um caminho sem começo nem fim, sem partida nem chegada. A fala da poesia é a voz "do outro lado da linha formigando de estática", algo que se esforça para perceber, mas não se dá a conhecer francamente. A linguagem poética se debate em sua falta de rumo sem poder "reassumir sua posição natural”.
Esse nomadismo do signo aflui na errância do olhar do poeta em Crisantempo (1998), de Haroldo de Campos, que declara ser preciso “demência / obsessão / incerteza / certeza // escuridão gozosa / graça plena / fogo liquefeito” para “fazer deste papel poema”.
Herberto Helder, poeta português contemporâneo, avisa: “― E o poema faz-se contra a carne e contra o tempo.” Em seguida, emenda: “E cantar / era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta / loucura. Cantar era uma razão / de morte e de alegria.”[14] A “razão” do fazer poético transforma-se, portanto, em desrazão, à altura das estrelas e da loucura, da alegria que se perfaz pela morte da morte, como confirma o poeta no trecho adiante. Se a morte morreu, ela não tem mais direito à morte; estamos então no domínio da impossibilidade da morte, que é o reino da poesia:

Cantar onde a mão nos tocou,
o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo.
Cantar na mesa, na árvore
sorvida pelo êxtase.
Cantar sobre o corpo da morte, pedra
a pedra, chama a chama ― erguido,
amado,
aprendido.[15]

A seleção de exemplos de ficcionistas e poetas pára aqui; a busca, entretanto, não pára. Muitos são os autores, muitas são as obras, o empreendimento é de risco, e por isso mesmo de intensa emoção, de altos prazeres.

OBJETIVO GERAL:

Empreender uma investigação crítica, histórica e interdisciplinar de obras das literaturas brasileira e portuguesa contemporâneas, em busca de respostas a questões que envolvem a autonomia ou a absolutização da literatura e o conseqüente esvaziamento da História.


OBJETIVOS ESPECÍFICOS:

· Analisar criticamente a construção de uma escrita contemporânea que indefere, ou pelo menos minimiza a importância do saber e da História (a “parole neutre” de que fala Blanchot), a partir da leitura e da análise de obras da literatura brasileira e portuguesa contemporâneas produzidas pelos seguintes autores, e outros mais: João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Silviano Santiago, Rubem Fonseca, Lobo Antunes, Teolinda Gersão, Paulo Leminski, Manuel de Barros, Haroldo e Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Horácio Costa, Afonso Ávila, Paulo Henriques Britto, Hilda Hilst, Maria Gabriela Llansol, Herberto Helder, Ana Haterly.
· Examinar, segundo a literatura teórica pertinente, o processo de ruptura do relato humanista nos textos supracitados, estabelecendo uma relação entre eles e o pensamento de Blanchot, principalmente, e de outros pensadores e ensaístas, como Haroldo e Augusto de Campos, Afonso Ávila, Ruth Silviano Brandão, Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Michel Foucault
· Comparar a escrita de escritores brasileiros e portugueses contemporâneos com a filosofia da errância da letra postulada por Jacques Rancière como o “próprio” da literatura, como desdobramento da desordem democrática e conseqüente esvaziamento da História.
· Relacionar os textos desses escritores às teorias de Maurice Blanchot de “exteriorização” da obra, ou de seu afastamento do mundo como “exigência profunda” da escrita, que garante a autenticidade do texto literário mediante o movimento exorbitante da paixão e do desejo.
· Investigar o jogo entre o autor, os narradores e os personagens, e que leva o escritor a abandonar sua posição de prepotência para assumir a desordem do relato, tornando-se refém de seu texto.
· Analisar a errância e a dispersão na literatura contemporânea a partir das seguintes figurações:
¨ a desarmonia e o dissenso;
¨ a tolice do todo-dito no mundo;
¨ a apresentação de um contramundo em detrimento do relato em espelho;
¨ a anulação da hierarquia entre escritor e personagem;
¨ a luta do personagem para mudar a escrita;
¨ a incompletude e a insolubilidade do relato;
¨ a potência da palavra que não apazigua.
· Apontar possíveis direções das literaturas brasileira e portuguesa contemporâneas a partir das conclusões alcançadas


METODOLOGIA

A partir de uma perspectiva comparativista, o trabalho consistirá no estudo crítico de obras da literatura contemporânea do Brasil e de Portugal, mais especificamente a partir de 1990, para a verificação do grau de ruptura que ele empreende com a tradição e a cultura tradicional na construção da escrita.
Inicialmente, será feita uma seleção das obras dessa literatura que possam propiciar a investigação pretendida. Em seguida, será efetuada uma leitura cuidadosa das obras selecionadas para a análise proposta.
A análise será realizada mediante o suporte teórico e filosófico das obras de Maurice Blanchot indicadas na bibliografia. Embora a investigação vá se centrar fundamentalmente no estudo comparado da escrita contemporânea com as propostas de Blanchot, é evidente que outros textos teóricos (ver bibliografia) comparecerão em momentos oportunos.
Essa pesquisa produzirá, obviamente, ensaios contemplando a proposta, que deverão ser publicados em livros e/ou revistas acadêmicas, e apresentados em congressos ou eventos similares.


CRONOGRAMA

Levantamento do material: setembro a novembro de 2006
Coleta de dados: dezembro de 2006 a fevereiro de 2007
Análise dos dados / leitura dos textos: março a dezembro de 2007
Elaboração dos textos: até maio de 2008
Revisão e ajustes finais: junho de 2008
Disponibilização dos trabalhos: julho de 2008.


RESULTADOS E CONTRIBUIÇÕES

Essa pesquisa deverá adquirir significativa importância para o estudo da literatura contemporânea de língua portuguesa, tanto de Portugal quanto do Brasil, com um mapeamento de obras essenciais e com a configuração de um corpus de idéias e tendências ligadas à arte atual.
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[1] A palavra História será grafada sempre com letra maiúscula no sentido de registro dos modos de fazer e dizer das sociedades, ou seja, o saber e a ideologia da humanidade.
[2] BLANCHOT, 1999A, p. 310. Trad.: A obra que foi palavra dos deuses, palavra da ausência dos deuses, que foi palavra justa, equilibrada, do homem, depois palavra dos homens em sua diversidade, depois palavra dos homens deserdados, daqueles que não têm a palavra, depois palavra do que não fala no homem, do segredo, do desespero ou do êxtase, que lhe resta dizer, o que é sempre subtraído à sua linguagem? Ela mesma. Quando tudo foi dito, quando o mundo se impõe como a verdade do todo, quando a história quer cumprir-se na realização do discurso, quando a obra não tem mais nada a dizer e desaparece, é então que ela tende a se tornar palavra da obra. Na obra desaparecida, a obra quereria falar, e a experiência torna-se a busca da essência da obra, a afirmação da arte, a preocupação com a origem.
[3] BLANCHOT, 1982, p. 36. Trad.: lá onde a transparência do pensamento se faz dia em nome da imagem obscura que o retém, onde a própria palavra, sofrendo uma dupla violência, parece aclarar-se pelo silêncio nu do pensamento, parece engrossar-se, completar-se com a profundidade falante, incessante, murmúrio em que nada se deixa entender.
[4] BLANCHOT, 1999, p. 293. A obra de arte não envia imediatamente a quem quer que a tenha feito. Quando ignoramos todas as circunstâncias que a prepararam, da história de sua criação até o nome de quem a tornou possível, é então que ela mais se aproxima dela mesma. Essa é a direção verdadeira.
[5] BLANCHOT, 2003A, p. 84. Trad.: “e não mais, na ausência de uma coisa, esta coisa, mas, através dessa coisa ausente, a ausência que a constitui, o vazio como centro de toda forma imaginada e, exatamente, a existência da existência”.
[6] BLANCHOT, 2003A, p. 86. Trad.: “uma experiência do vazio, a busca de um absoluto negativo, mas é uma busca que não resulta, uma experiência que fracassa, sem que entretanto esse fracasso possa receber um valor positivo”.
[7] BLANCHOT, 1998, p. 25
[8] RANCIÈRE, 1995, p. 77.
[9] BLANCHOT, 1998, p. 272. Trad.: …antes como o que não se descobre, não se verifica nem se justifica jamais diretamente, de que não se aproxima a não ser afastando-se, que só se percebe lá onde se vai além, numa busca que não deve preocupar-se minimamente com a literatura, daquilo que ela é “essencialmente”, mas que se preocupa ao contrário em reduzi-la, em neutralizá-la ou,mais exatamente, em descer, por um movimento que finalmente lhe escapa e a negligencia, até um ponto onde só parece falar a neutralidade impessoal.
[10] RANCIÈRE, “Deleuze e a literatura”, op. cit., p. 4.
[11] FONSECA, 2003, p. 181.
[12] LEMINSKI, 1991, p. 52.
[13] ANTUNES, 1997, p. 11.
[14] HELDER, 2004, p. 29.
[15] HELDER, 2004, p. 30.