Tuesday, October 30, 2007

“Modernidade em ruínas” – Roteiro de Leitura
1. Segundo LPM, como se formam os cânones literários?
2. Quais são as aspirações dos novos escritores?
3. Qual é a relação entre a literatura e a sociedade de consumo? Como se situa aí o ato da leitura?
4. Quais são os sinais, apontados por Octavio Paz, de falha do projeto moderno?
5. Para LPM, qual é a diferença entre modernidade e modernismo?
6. A partir do texto de LPM, tente definir “pós-modernidade” e aponte seus traços principais e sua delimitação temporal na história.
7. Quais são os argumentos dos que rejeitam o pós-moderno?
8. Qual é a posição de Habermas em relação à pós-modernidade?
9. Como Ihab Hassan opõe o moderno ao pós-moderno?
10. Como LPM contesta o binarismo de Hassan?
11. Que considerações LPM faz sobre os chamados traços pós-modernos?
12. Que crítica faz LPM a Linda Hutcheon?
13. Quais são os traços que caracterizam os escritores-críticos estudados por LPM?
14. Por que LPM diz que a literatura está na UTI?
15. Comente: “Das posturas românticas, a pós-modernidade só abandonou a utopia, a nostalgia do absoluto, da totalidade, do sublime” (p. 189).
16. Que modificações a autora aponta no ensino da literatura no século XX?
17. Qual a contribuição dos próprios professores de literatura para o que a autora chama “estrangulamento dos estudos literários”?
18. Qual a posição de Terry Eagleton em relação à literatura?
19. Comente a expressão “movimento pendular entre texto e contexto” (p. 193).
20. Qual é a situação dos estudos literários no Brasil?
21. Por que a autora se refere à sociedade norte-americana utilizando a expressão “evangelização belicosa” (p. 195)?
22. Em que as condições de aprendizagem brasileiras diferem das norte-americanas?
23. Qual é a relação entre os culturalistas e o cânone?
24. Quais são os três mal-entendidos que a autora enumera sobre o cânone?
25. Explique a posição de Harold Bloom sobre o cânone.
26. Em que LPM concorda e em que ela discorda de Bloom?
27. Qual é a opinião geral da autora sobre a cultura de massa e a globalização?
28. Que tipo de cultura, segundo LPM, está ameaçada de extinção?
29. Como se situa a literatura nesse contexto?
30. Qual é a posição de Roland Barthes em relação à literatura contemporânea?
31. Como LPM descreve as idéias de Blanchot?
32. Qual é a constatação de Haroldo de Campos sobre a poesia pós-moderna?
33. Resuma o balanço que Octavio Paz fez da literatura contemporânea.
34. A que tipo de confusão levou a má assimilação das idéias de Foucault, Barthes, Derrida e Sollers?
35. Qual é a conclusão de LPM sobre os escritores-críticos modernos?
O desastre da escritura: “Meu tio o Iauaretê”

Cid Ottoni Bylaardt
(Universidade Federal do Ceará)



“Meu tio o Iauaretê” é o desastre da escritura, a escritura do desastre . O termo do desastre é simultaneamente complemento e adjunto: tanto é o processo pelo qual o desastre é escrito quanto a escritura empreendida pelo desastre: a escritura é agente do desastre e alvo dela. A esse propósito, a força impressionante da linguagem em “Meu tio o Iauaretê” de Guimarães Rosa reporta a alguns fragmentos de Maurice Blanchot em L’écriture du desastre. O primeiro deles relaciona ato de escrever e desastre, desvinculando-os da experiência:

Le desastre inexpérimenté, ce qui se soustrait à toute possibilité d’expérience — limite d’écriture. Il faut répeter: le desastre dé-crit. Ce qui ne signifie pas que le désastre, comme force d’écriture, s’en exclue, soit hors écriture, um hors-texte. (BLANCHOT, 1980, p.17)

O desastre não-experimentado é o relato do bugre que o visitante ouve e no qual interfere, mas sobre o qual não pode exercer controle. O relato se de-screve, com todas as possibilidades que essa clivagem sugere. O texto de Blanchot faz pensar então na instabilidade da situação dos corpos que se movem na narrativa de Rosa: de um lado, o interlocutor mudo que interfere violentamente tanto na enunciação quanto no enunciado do texto, e de outro o falador, que não aceita as imposições do visitante, vistas como ameaças a sua integridade selvagem, mas que também não alcança impor as suas. Ao ler o texto de Rosa, caímos freqüentemente na tentação simplificadora de associar o falante ao escritor e o ouvinte ao leitor. Todavia, não se pode esquecer, por um lado, de que o visitante também participa ativamente da escrita, funcionando como a outra mão, que sugere, exige, obriga; por outro lado, o locutor é também ouvinte, acatando ou repelindo as imposições-sugestões.
O operador do discurso é o eu falo, que automaticamente remete à posição formal clássica da situação em que a fala versa sobre um objeto ao qual o “eu” responsável dá suporte. Esse “eu falo” aqui, entretanto, coloca em risco a narrativa, por ser portador de um discurso que falta, que não conduz ao desfecho confortável que distende, mas ao vazio que acumula tensão. A linguagem, ao invés de se fechar, expande-se ao infinito, e o sujeito se dispersa até o desaparecimento no espaço da não-delimitação, no tempo da ausência de tempo. Agora, o eu falo não é mais responsável por um discurso, mas condutor trôpego de uma gramática-onça que não responde mais por verdades humanas. A sintaxe do homem-fera mostra sua última palavra sem fechá-la em predicado ou complemento, um signo móvel sempre pronto a se abrir para outros, em movimento disperso, jamais em linha, sem regras nem unidade, sem começo nem final. Um tecido irregular, uma rede sem centro nem simetria, sem um fio que indique a porta de entrada ou o caminho de saída.
O eu falo da cultura ocidental tende a privilegiar o sentido, a transparência, a presença; a escritura literária, por outro lado, inclina-se a negar a existência, e portanto a presença tanto do que se diz quanto de quem disse; ninguém fala, não há ser humano a quem possa ser atribuída essa fala: a experiência fundamental volta-se à desaparição do sujeito. Essa ausência de obra, de conceito, de Deus, de totalidade, essa direção ao desconhecido tem como único desdobramento o desastre, ou o não-fim. Fechar a obra, terminar o texto seria aceitar o saber absoluto, o êxito.
O discurso do bugre-fera ruma para a metamorfose, para a palavra estranha e estrangeira, para a língua híbrida que não faz relatos exemplares. As histórias de onça reportam a um viver da classe da pureza, com o amargo arrependimento do locutor de ter matado muitas delas. Dos homens, não tem piedade, nem ódio, nem desejo de vingança. Apenas mata-os, ou entrega-os às colegas onças, porque isso faz parte de sua ordem natural. Assim, Gugué, Antunias e Riopôro morrem de “doença”, isto é, viram comida de onça; o preto Bijibo, “muito bom, homem acomodado”, também é entregue às feras; Rauremiro e toda a família são “devorados” pelo próprio narrador; preto Tiodoro parece ter tido o mesmo fim. Só Maria Quirinéia sobrevive à selvageria do homem-onça... além de seu marido, evidentemente, mas este não se situa em nenhuma esfera ameaçadora, por ser ele próprio uma criatura-limite, o louco manso no limiar do humano.
A instabilidade das situações narradas conduz à obscuridade das cenas que marcam o fim das páginas da novela. Não são poucas as exegeses que apontam a morte do sobrinho-onça como algo inquestionável. Ensaístas ilustres, como Walnice Nogueira Galvão, Haroldo de Campos, Ettore Finazzi-Agrò e Clara Rowland apostam na morte inquestionável do bugre, assassinado a tiros pelo visitante.
Haroldo de Campos afirma que “o interlocutor virtual também toma consciência da metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está disparando contra o homem-iauaretê o revólver que sua perspicácia mantivera engatilhado durante toda a conversa” (CAMPOS, 1992, p. 62). Ele se refere ainda aos “rugidos de morte do homem-onça” (idem) e ao “estertor de suas últimas exclamações” (idem). Há, portanto, nessa leitura, a morte física do locutor. Considerando que um dos pontos mais importantes da exegese de Campos é o fato de que o discurso do sobrinho do iauaretê incorpora o “momento mágico da metamorfose” (CAMPOS, 1992, p. 62), conforme referência emprestada de Ezra Pound, do projeto de seus Cantares, causa estranheza o fato de que a impossibilidade da transformação tenha de ser punida com a morte, ao invés de permanecer na dimensão do impossível, do irresolvível, o que nos parece mais adequado à idéia de desastre da escritura e escritura do desastre.
No ensaio de Ettore Finazzi Agrò, o óbito está no título: “A voz de quem morre. O indício e a testemunha em ‘Meu tio o iauaretê’” (AGRÒ, 2006, p. 25). O ensaísta assinala aí, de forma feliz, a “relação impossível” que se estabelece “no limiar certo mas sem consistência entre o humano e o infra-humano ou não humano” (p. 28), e aponta o “desejo absurdo” do escritor de dar voz a essa impossibilidade, na superação da necessidade de uma testemunha. É precisamente pelo caráter impensável do evento que a narrativa do iauaretê-sobrinho, a nosso ver, deve eliminar a morte, mantendo-a suspensa no limiar do intransitável.
Clara Rowland, por sua vez, estabelece uma relação de causa e efeito entre a narração e a morte: “É por contar que matou que o narrador irá morrer” (ROWLAND, 2006, p. 45) ao mesmo tempo em que sustenta, com propriedade, o caráter inconcluso do texto. A morte, em algumas abordagens, pode ser a salvação da escrita, mas para nós é a traição da escritura, em cujo desastre apostamos. Não se trata de morrer, mas de estar a morrer.
No ensaio de Walnice Nogueira Galvão, talvez pela época em que foi escrito, por sua proximidade e compromisso com a mitológica straussiana, chega-se a assinalar o caráter paradigmático da morte do bugre, aquele que tem que morrer porque não pode ser nem fera nem humano, porque é incestuoso, numa saída dialética para o impasse: “Exemplarmente, termina abatido a tiros de revólver pelo interlocutor branco” (GALVÃO, 1978, p. 31). Nesse caso, a morte funcionaria como um desfecho, um ajuste de contas com o implausível, uma confortável determinação.
O texto de Rosa, todavia, não direciona a essa conclusão, a essa distensão seguida de repouso. Ao contrário, tais cenas promovem um recrudescer de tensão que não se resolve, apontando possivelmente para uma dispersão, para uma multi-metamorfose que pulveriza os seres, mas jamais para algo como um remanso merecido do texto, produto de vingança, punição ou exeqüibilidade. Repetindo um lugar-comum do discurso policialesco, não há crime sem cadáver, e aqui essa ausência soma-se às falhas patrocinadas pelo desastre.
Essa indefinição relacionada à morte do contador da história é, portanto, imanente à história, e suscita uma inevitável comparação com Grande sertão: veredas. Têm sido apontadas semelhanças entre o conto e o monumental romance: a presença de um visitante tácito, que parece ter uma certa ascensão cultural sobre o narrador, o qual, por sua vez, despeja sua verborréia memoriosa sobre o chegante. As semelhanças, entretanto, param aí, e as diferenças revelam-se muito mais profundas do que parecem. É intrigante saber que Rosa escreveu "Meu tio o Iauaretê" em momento não muito distante da criação de Grande sertão: veredas, de acordo com o breve resumo da trajetória do conto, fornecido por Clara Rowland, pesquisadora de Rosa:

"Meu tio o Iauaretê" ocupa na obra de Rosa um lugar instável. Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor, continuou a ser revisto e alterado pelo autor até a sua morte súbita em 1967, sendo mais tarde editado por Paulo Rónai para a publicação póstuma de Estas estórias (1969), com marcas de reescrita e de indecisão, sobretudo no nível lexical. Da sua inclusão no plano original do último livro de Rosa dão conta os projetos de índices e as sugestões para o ilustrador. No entanto, uma nota autoral remete-o a uma fase anterior à publicação dos dois livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas. (ROWLAND, 2006, p. 43)

Temos aqui um elemento externo que causa perplexidade. Se a escritura de "Meu tio o Iauaretê" chega a ser anterior a Grande serão: veredas, por que Guimarães Rosa o teria retido por pelo menos doze anos, até ser publicado como conseqüência de sua morte, e sem uma edição “autorizada” e “definitiva”, como era costume na época? Uma explicação fácil é atribuir a omissão à inconveniência de duplicidade formal, como ocorre na indagação de Walnice Nogueira Galvão: “Seria a exploração de um mesmo achado formal a explicação para o engavetamento?” (GALVÃO, 1978, p.34).
Optamos pela conjectura menos óbvia: Guimarães Rosa teria retido esse texto pela sua total incompatibilidade com a narrativa de Riobaldo. No romance, temos como narrador um ex-jagunço que percorre um caminho inverso ao do bugre onceiro: Riobaldo está aposentado, vive uma vida abastada e tranqüila, em que seus tiros não matam, apenas ferem uma inocente tábua de tiro-ao-alvo, sua companheira de brinquedo bem-educado. Definitivamente, o ex-jagunço civilizou-se, sua história circunscreve-se de forma definida num espaço-tempo mítico, sim, que se amplia pela imensidão do sertão-mundo, sim, mas que é da ordem do apaziguamento, do repouso, em que pese o sinal ∞ que se apõe ao final da escrita, necessário aviso de que a travessia não se completou, alívio para um incômodo. A enunciação traz o discurso para o domínio da linguagem possível, da legibilidade, por seu divórcio com o enunciado. Seu tácito interlocutor não é para ele uma ameaça, mas um paciente escutador de histórias bem instalado na confortável residência do rapsodo, a apreciar o relato. O anfitrião sente orgulho por hospedar um doutor culto, e uma certa inveja sadia por querer ser ilustrado como o visitante, mas seus sentimentos são civilizados, adequados a uma convivência social obsequiosa.
Por outro lado, a relação entre o narrador e o visitante de Meu tio o Iauaretê é de extrema tensão, que vai da fingida cortesia à franca hostilidade. O contador vive um momento de indefinição, em que sofre a mais terrível metamorfose possível: a passagem de sua condição humana para o pós-humano (ou infra-humano?). Aqui a enunciação cola-se ao enunciado, numa vertiginosa babilônia que escapa à busca de uma lógica racional. O espaço é tão amplo quanto o do grande sertão, a cabana não tem paredes limítrofes com o mundo da barbárie, as feras transitam por todos os lados, aquele que tinha por missão desonçar o mundo agora alimenta os felinos com carne humana, o visitante parece mais um agente da civilização que exerce um patrulhamento inútil sobre a ação da selvageria. O discurso se ininteligibiliza e se desautoriza do ponto de vista civilizado tanto pela metamorfose do homem em bicho quanto pela ação da cachaça ingerida por ele em grandes doses. A instabilidade instaurada por Rosa nesse texto é de tal ordem que não comporta desfecho, daí a impossibilidade da morte.
Não teria então o autor segurado este, que é seu filho rebelde, para que o outro, evidentemente mais comportado, e que tinha tudo para ser festejado, como o foi, não sofresse a ação da comparação maliciosa? Ou, situação mais trágica, para que um não funcionasse como palinódia do outro? Ou quem sabe essa tensão entre um texto e outro fosse uma experiência necessária à escrita de Rosa, e ter o texto-fera na gaveta não produzisse o efeito de provocar a mão que não escreve em sua função reguladora da escritura de escritor-onça e que terminou por nos presentear com as feras de Tutaméia? Não interessam as respostas às perguntas, mas elas têm que ser feitas, e têm que nos fazer pensar.
Esta leitura arrisca uma morte mais notável, pertencente ao estatuto da escritura, a morte que possibilita a metamorfose em direção à impossibilidade da morte. Há um texto que precisa morrer para ceder lugar à escritura do onceiro-onça, e este não se encontra exclusivamente nas palavras finais. Eis o desastre rosiano: a escritura do que não pode ser experimentado, ou do que é vivenciado no limite, um limite da ordem da linguagem. Segundo Blanchot, o desastre dé-crit, que sugere a forma da terceira pessoa do verbo décrire, em francês. Sem o hífen, o verbo equivaleria ao nosso descrever — o desastre descreve —, o que empobreceria enormemente a sugestão, já que a ação pretendida não é do estatuto da exposição minuciosa, da representação fotográfica, do traçado nítido. Destacado de escrever, sem dúvida o mais importante dos verbos utilizados por Blanchot, o prefixo, de grande vitalidade em francês e em português, acumula significados que ferem de todos os lados o radical: ação contrária à que ele sugere; cessação da ação indicada; ação mal feita; negação da qualidade do ato; separação; mudança de aspecto; remoção. Assim, pelo excesso, o verbo se esvazia, evocando a escritura-desastre do domínio das onças.
Tal idéia do desastre encontra ressonância na linha de argumentação de Giorgio Agamben em The man without content, segundo a qual a essência do conteúdo artístico desdobra-se a partir do princípio criativo-formal, condenando o artista a viver além de sua própria realidade: “The artist is the man without content, who has no other identity than a perpetual emerging out of the nothingness of expression and no other ground than his incomprehensible station of this side of himself” (AGAMBEN, 1999, p. 55).
Esse “homem sem conteúdo”, isto é, esse homem que se afasta do humanismo da escrita em direção ao inumano da escritura aparece com toda sua força nesta criatura linguageira que de matador de onças passa a provedor de carne humana para as feras. Essa é a escritura que, ao recusar a lei dos humanos, procura sua lei própria. Cabe ressalvar que essa recusa não se dá, como a palavra pode sugerir, de uma maneira determinada, definitiva, mas está carregada de tensões, de volutas e meneios atormentados, de desistências e recomeços.
Esse desastre pede um escritor que não saiba escrever, isto é, que não seja portador da má consciência nietzschiana, um selvagem vagabundo, livre do castigo e de todas as outras monumentais barreiras destinadas a obstruir os instintos de liberdade do ser primitivo. A má consciência, então, será alocada na figura do interlocutor, que se apresentará como pregoeiro da ira, da crueldade, da necessidade de perseguir, próprios do “homem superior” que tanto busca o conhecimento quanto se guia por ele.
Avulta aqui então esse homem sublime, a suprema mistificação do humanismo, a criatura que espreita o parente das onças, como a testar a viabilidade de sua condição humana. Não ri, não brinca, não dança, é sério, grave, vingativo, como um Teseu mais preocupado com sua missão de derrotar o monstro do que com a dificuldade de se desvencilhar de seu labirinto. Homem branco, bonito e rico, ele patrulha os movimentos do sobrinho do Iauaretê, quer impor o objeto da escrita, encontrando resistência: “Ah, mas isto eu não conto, que não conto, que não conto, de jeito nenhum! Por quê mecê quer saber? Quer saber tudo? Cê é soldado?...” (p. 232) . O visitante carrega, assume, suporta as provas com um fardo às costas, enfrenta monstros, estabelece leis, quer botar ordem no sertão — quer ordenar a escrita. Ele é o homem da ordem, o soldado que vigia e pune.
O animal que o representa, segundo Nietzsche, é a mula. A viagem aos confins da teia-labirinto, todavia, faz estropiar a mula que carrega o fardo, provocando uma baixa inicial na superioridade do sublime: “Cavalo seu é esse só? Ixe! Cavalo tá manco, aguado. Presta mais não. Axi... Pois sim. Hum, hum.” (p. 191). A mula de Nietzsche, aqui, é comida de jaguar: os cavalos do visitante fugiram, espalharam-se pelo mato, seu destino garantido é bucho de felino, conforme o bugre. O ex-onceiro recusa carregar o fardo: não gosta de cavalo; cavalo e cachorro são presas de onça. O visitante pressente o perigo de estar perdido nesse labirinto sem a mula que ateste sua condição de homem superior, sem o meio de se evadir heroicamente desse meio desconhecido.
No ensaio “O mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, Gilles Deleuze faz uma leitura da concepção nietzschiana da tríade Teseu-Ariadne-Dioniso, ligada ao conceito de homem superior e ao de eterno retorno, desenvolvidos pelo filósofo alemão (DELEUZE, 2000, p. 140). Depois de ajudar Teseu a se conduzir pelo labirinto após ter matado o Minotauro, Ariadne foge com o herói e é abandonada por ele na ilha de Naxos. É então seduzida por Dioniso, que se casa com ela. Deleuze pinça em vários textos de Nietzsche, e principalmente em Assim falava Zaratustra, uma interpretação do affair: “Passar de Teseu a Dioniso é, para Ariadne, uma questão de clínica, de saúde e de cura.” (DELEUZE, 2000, p. 144). Teseu é a impossibilidade do regresso, Dioniso é o eterno retorno.
Esse Teseu que o ex-onceiro hospeda em “Meu tio o Iauaretê” não tem o fio de Ariadne em suas mãos; não tem nem mais a mula para carregar seu fardo. Ariadne não pode ser mula, caso contrário será apenas uma aventureira fracassada sem fio e sem fibra, apenas com um cavalo estropiado. Ela só pode ser onça; sendo assim, não lhe cabe fornecer o fio que conduzirá o herói sublime com segurança à luz do dia; ela fornece, sim, o fio da teia que vai enredar definitivamente aquele que não se escuta no labirinto, na teia do infinito. Essa Ariadne não dorme; encontra um Teseu dormindo e transforma-o em Dioniso, seduzindo-o, fazendo-o transpor o limiar do humano, da linguagem-teseu para a linguagem-onça, o jaguanhenhém dionisíaco. Num parágrafo aparentemente perdido de Assim falava Zaratustra, Nietzsche refere-se à saudável metamorfose: “Porque eis aqui o segredo da tua alma: quando o herói a abandona, é então que se aproxima em sonhos o super-herói” (NIETZSCHE, s/d, p. 107). Nietzsche refere-se certamente, embora de forma enigmática, ao abandono de Ariadne por Teseu, e sua aproximação a Dioniso. Ariadne, portanto, é alma, é Maria-Maria, o segredo de nosso homem-onça.
A noite da sedução é memorável: o personagem não sabe ainda que é parente de onça, ou pelo menos ainda não tem certeza. Maria-Maria se achega enquanto ele dorme; o ritual da morte é substituído pelo jogo do afeto, em que ela declara seu amor a ele: “Onça que era onça — que ela gostava de mim, fiquei sabendo...” (p. 208). Os dois dormem juntos, e ele percebe que não pode mais matar onças, com exceção da suaçurana, aquela que conspurcou seu leito de amor com suas fezes fedorentas. Maria-Maria é porã-poranga, catú, bicho bonito, bela fêmea, bonita e cheirosa: “Bonita mais do que alguma mulher. Ela cheira à flor de pau-d’alho na chuva” (p. 209). Até o hálito das onças é perfume para ele. Ele se afirma seduzido e zela por sua condição de onça-macho, declarando que não permitirá a aproximação de nenhum marido-onça; doravante, é o ser viril: “Se algum macho vier, eu mato, mato, mato, pode ser meu parente o que for!” (p. 210). A tentativa de sedução perpetrada pela outra Maria, a Quirinéia, que não é onça, redundou em fracasso: por pouco ela não virou comida de fera, sendo salva por seu charme; o bugre, todavia, permaneceu irredutível, prometido para sua Maria-Onça. Suspendeu o ódio que a tentativa de assédio provocou nele, permitiu que Maria Quirinéia fugisse, e até ajudou-a, para não matá-la. Inconsciente do perigo que esse homem-felino representava, ela ainda o provocou: “Mecê homem bom, homem corajoso, homem bonito. Mas mecê gosta de mulher não...”; ao que ele tornou com uma resposta ambígua, incompreensível para ela: “Gosto mesmo não. Eu — eu tenho unha grande” (p. 233).
Bacuriquirepa é a afirmação pura; Maria-Maria é anima, a afirmação desdobrada. Ao dizer sim a Dioniso, a positividade redobra-se nele, o sim-sim que produz o eterno retorno da união Ariadne-Dioniso, que permite à escritura se desvencilhar da finalidade rumo à felicidade. O bugre dionisíaco não é panema ─ doente, infeliz ─ mas marupiara ─ criatura feliz, de sorte (p. 227), que redobra em si pensamento de onça, pensamento de leveza, de quem não tem que carregar fardo, apenas ser ditoso:

Eh, então mecê aprende: onça pensa só uma coisa — é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... Quando algũa coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar. Daí, só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual, feito em antes... (p. 223)

Maria-Maria sabe com seu saber próprio que dizer sim é desatrelar-se, descarregar os fardos, afirmar a vida. O pensamento feliz não comporta seu contrário que autorizaria o movimento dialético: ele simplesmente pára de funcionar no momento em que o bom-bonito é ameaçado, para recomeçar quando os sinais vitais se reapresentam.
O sobrinho-onça faz, então, o caminho inverso do homem Nietzscheano, seu sublime desafeto, que perde a liberdade para civilizar-se: ele inicialmente contribui para o processo civilizatório, assumindo a missão de desonçar o mundo; em seguida reconhece seu próprio erro, e é seduzido pela onça, que o atrai para o mundo selvagem, inserindo-o nele de forma tensa. Esse é o movimento que a escritura do relato faz, ampliando desmesuradamente seu caminho, tornando-o infinito, sem lei que o limite, desvencilhando-se dos pesados valores que correspondem ao patrimônio do homem superior nietzschiano: “ ‘Este é agora o meu caminho: onde está o vosso?’ Era o que eu respondia aos que me perguntavam “o caminho”. Que o caminho... o caminho não existe.” (NIETZSCHE, s/d, p. 168)
Esse movimento não-dialético estabelece o relacionamento entre a escritura e a morte, mas a morte numa dimensão que não é da ordem do desfecho, da conclusão, e sim do porte de um embate repleto de riscos para a integridade da linguagem; não a morte que nos livraria do desastre, mas a que nos faz abandonar-nos a ele, como assinala Blanchot:
(...) d’où le rapport œuvre d’art et recontre avec la mort: dans les deux cas, nous nous approchons d’un seuil périlleux, d’un point crucial où nous sommes brusquement retournés. (…) Passage à la limite. Il reste possible que, dès que nous écrivons et si peu que nous écrivons — le peu est seulement de trop — , nous sachions que nous approchons de la limite — le seuil périlleux — où le retournement est en jeu. (BLANCHOT, 1980, p. 18)

No caso do nosso sobrinho de onça, o perigo do umbral repousa na ambigüidade do próprio retorno. O ser pode encontrar sua volta à condição humana, por exigência da notoriedade a que aspira; pode também retornar ao tempo sem tempo e ao espaço sem espaço, que é o retorno do desastre, o retorno sem presença, o não-desejado porque não-planejado. Assim, o evento singular do eterno retorno de Dioniso em direção a Ariadne não é da ordem do desejo, mas da exigência da escrita naquilo que ela tem de irrecusável. É nessa recusa da escrita que, segundo Blanchot, reside o dom de escrever: “Celui qui ne sait plus écrire, qui renonce au don qu’il a reçu, dont le langage ne se laisse pas reconnaître, est plus proche de l’inexpérience inéprouvée, l’absence du ‘propre’ qui, même sans être, donne lieu à l’avenement” (BLANCHOT, 1980, p. 154). O que os homens chamam de estilo, nesse caso, vem a ser o que resta de outra recusa, a resistência do escritor a abandonar-se à escrita, negativa que acarreta a notoriedade que o entrega ao poder, que evita o apagamento, a desaparição.
Um dos traços mais importantes desse devir-onça, em sua recusa do devir-homem, é a instabilidade do nome, o excesso que não identifica, que conduz ao nada: “Ah, eu tenho todo nome” (p. 215). E produz-se aí uma lista de denominações: Bacuriquirepa, Breó, Beró, Tonico, Antonho de Eiesús, Macuncôzo, Tonho Tigreiro. O acúmulo se reduz a nada: “Agora, tenho nome nenhum, não careço” (p. 215); “Agora tenho nome mais não” (p. 216). A mãe é Mar’Iara Maria, bugra, nome que contém a beleza de Maria-Maria, e que é iara, dona, senhora. O nome é o que estabiliza o ser, que lhe dá um presente e um aqui, a honra do super-homem que provoca no ser dionisíaco a estranheza, o horror. Ouçamos mais uma vez Blanchot: “L’horreur — l’honneur — du nom qui risque toujours de devenir sur-nom , vainement repris par le mouvement de l’anonime: le fait d’être identifié, unifié, fixe, arreté dans um présent.” (BLANCHOT, 1980, p. 17). O nosso ex-onceiro não consegue atribuir-se um nome — ou atribui-se todos. Mas ele também atribui nomes às onças, agora que não as mata mais. É curiosa a forma como se dá essa atribuição, fugindo à determinação humanística que atrela o ser à realidade, conduzindo à noção blanchotiana de sur-nom. O personagem-onça declara que as onças agora têm nome, e o interlocutor provavelmente pergunta se foi ele quem as nomeou. Ele titubeia, admitindo ser o responsável pelo batismo, mas ressalvando que “era mesmo o nome delas”. O homem branco duvida, deixando o bugre indignado: “Atié... Então, se não é, como é que mecê quer saber? Pra quê mecê tá preguntando? Mecê vai comprar onça? Vai prosear com onça, algum?” (p. 211). O visitante, com sua objeção, procura atrair o ato de nomear para o lado do humano, para provocar o efeito prático do nomear para existir. O bugre resiste bravamente, e utiliza os verbos comprar e prosear de maneira altamente irônica em relação às pretensões do visitante, que quer demonstrar imenso saber cartesiano, mas que no fundo pouco sabe. As onças de sua convivência não têm mais valor de troca e nem são mais objeto da prosa do ser humano a qual pretende dispor de sua existência. Desprezando o comprar e o prosear, privilegiando o saber, o bugre ataca: “Teité... Axé... Eu sei, mecê quer saber, só se é pra ainda ter mais medo delas, tá-há?”. Coitado, que seja assim... Dioniso provoca o super-homem; o saber totalizante só tem valor aqui no sentido de fomentar o pavor, de estabelecer uma supra-realidade que só reafirma a luta do homem contra o monstro, nesse caso com desvantagem daquele em relação a este.
O desastre perpetrado pela narrativa do bugre-onça é a afirmação da singularidade do extremo, em que o eu, em sua passividade e entrega, sai do eu para encontrar-se em um fora, em tempo de estar a morrer, em que o ser nem suporta nem é suportado, em que a morte é pura e vã. Esse tempo e lugar da ausência só podem ser marcados pela linguagem do fragmento, da explosão, da dispersão, que não logra nem relatar uma experiência exemplar nem invocar uma episteme, um código que não comporta o discurso da nominação. Ao invés do silêncio, o balbucio daquele que, não sabendo mais falar, não pode calar-se. Este homem, que elimina os portadores dos pecados da gula, preguiça, soberba, avareza, luxúria, no processo de apagar o rastro civilizatório, submete-se a uma alienação radical que subverte o eu do mestre, do interlocutor que encena o saber da totalização da potência egoísta, do dominador que manipula a força da perseguição inquisitorial. Essa subversão se dá pela força da paixão anônima, dionisíaca, que luta para corresponder a ela à revelia de seu consentimento. Esse ser, entretanto, também é acossado pela recusa, ou pelo vacilo, correndo igualmente o risco de retornar ao saber, ao eu que sabe, e que sabe que está exposto a uma onipotência egoísta, portadora da má consciência, a uma vontade assassina que mata por um motivo. Daí a existência de duas linguagens ou duas exigências, uma dialética, outra não-dialética, uma na qual a negatividade é o objetivo, que é a do domínio do homem superior, e outra na qual o neutro fala pelo ser e pelo não-ser, e que é a da escolha de Ariadne em relação a Dioniso. A lei do desastre é a lei do excesso, a lei não-codificável, a outra lei, o ilimitado cuja perda ou falha não podem ser medidas.


Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. The man without content. Trad. Georgia Albert. Stanford: Stanford University Press, 1999.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 16 ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 2002.
CAMPOS, Haroldo de. “A linguagem do Iauaretê” in: Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Ed. Século XXI, 2000.
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. “A voz de quem morre. O indício e a testemunha em ‘Meu tio o Iauaretê’”, in O eixo e a roda, Revista de Literatura Brasileira. V. 12. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2006.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “O impossível retorno”, in Mitológica Rosiana. São Paulo: Ática, 1978.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética. Vol. 1. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Trad. José Mendes de Souza. São Paulo: Tecnoprint, s/d.
_________ . A gaia ciência. São Paulo: Ed. Escala, 2006.
ROSA, Guimarães. “Meu tio o Iauaretê”. in Estas estórias. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
ROWLAND, Clara. Loup, si on jouait ai loup? Diálogo, palavra e morte em “Meu tio o Iauaretê” de João Guimarães Rosa. In: DUARTE, Lélia Parreira (org.). As máscaras de Perséfone. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006.

Tuesday, April 03, 2007

DRUMMOND: A METAMORFOSE EM DIREÇÃO À POESIA PURA

CID OTTONI BYLAARDT
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Professor Adjunto da UFC


Embora a expressão poesia pura tenha sido usada diversas vezes na história da poesia, com as mais variadas conotações, remonta à década de vinte do século vinte o início de uma série de posicionamentos a respeito de purezas e impurezas dos poemas, e da possibilidade ou não ─ e em que circunstâncias ─ de existência de poesia pura. O abade Henri Brémond pode ser considerado o iniciador da celeuma; Poe, Baudelaire, Mallarmé e Valéry, citados por Brémond como “teóricos modernos da poesia pura”, utilizaram o termo em acepções diferentes, o que impede que se chame o affair de “doutrina”, como queria o abade francês. Brémond proferiu uma leitura intitulada La poésie pure em Paris, no ano de 1925, que acendeu a polêmica em torno do chamado “torneio da poesia pura”. Os poetas citados por Brémond haviam mencionado a expressão poesia pura de maneira genérica, sem a intenção de transformá-la em bandeira de uma pretensa escola purista. Valéry, no auge do “torneio”, declara ter usado o adjetivo puro de uma maneira não técnica, sem jamais pensar em emitir uma teoria, ainda menos definir uma doutrina, ou, de forma alguma, considerar como heréticos todos aqueles que não concordassem comigo .
A associação feita por Brémond do nome de Valéry à sua “doutrina” de poesia pura teve um interesse eleitoreiro, o de preparar o campo para a eleição do poeta à Academia Francesa. Anos mais tarde, o próprio abade pronunciou um “esclarecimento”, em que ele admite que sua maior intenção era preparar o sucesso de Valéry entre os intelectuais, ou seja, sua fala teria tido uma intenção mais impura, e menos literária. Ele chegou ao ponto de reconhecer a própria incompetência para criar qualquer teoria poética: Minha formação literária ─ poética ─ é completamente superficial, e sobretudo arcaica. (...) Não li mais do que 200 versos de Valéry, e não o releio .
Para Henry Decker, a querela não passou de uma disputa sobre palavras mal definidas, título de um artigo em que o crítico contrapõe as razões de Valéry e Brémond. Entre os pólos antagônicos poesia-inspiração, na concepção bremondiana, e a poesia-fabricação valéryana, há uma infinidade de gradações que pretendem ou separar o puro do impuro, ou definir os limites em que termina a pureza e começa a impureza em poesia, ou determinar a impossibilidade ou, paradoxalmente, a necessidade da convivência desses elementos, na qual um é fundamental para que o outro apareça.
A poesia-inspiração, caminho para a pureza poética, na concepção de Brémond, teve seus defensores, como Jules Lemaître:

A idéia de poesia pura encontra-se, então, ligada àquela de inspiração, do gênio que sopra, de facilidade suprema e divina, um estado de graça que bastante naturalmente comparamos à comunicação com Deus .

O próprio Brémond admitia a precisão da linguagem poética, especialmente da poesia de Valéry, mas sem abrir mão do inefável em poesia:

A linguagem é precisa, ou então se torna verborrágica. Tanto a linguagem poética como a outra. Mas aquela tem algo de particular, de divino, isto é, sua própria precisão tem por objetivo único o de abrir, o máximo possível, as portas do mistério .

A poesia-fabricação também tem seu halo de misticismo: a paixão de Mallarmé e Valéry pela técnica envolvem uma “mística da paixão e da precisão”, que pode ser justificada pelo possível sentido da crença de Valéry, contida na pergunta de Thibaudet: “o homo faber não tem direito à sua mística, assim como o homo sapiens?
Decker complementa ele mesmo:

A poesia pura seria um produto da mente ao invés de uma efusão da alma, verso dirigido unicamente à nossa inteligência (ou aos nossos sentidos), um mero jogo espirituoso, como alguns disseram .

Paul Souday não aceita a “facilidade” da inspiração:

É certo que os modernos são, em geral, mais conscientes, mais refletidos, ou mais preocupados em levar ao público as suas reflexões. Mas essa nova moda coincidiu precisamente com o renascimento do lirismo. A poesia não perdeu nada com isso, e isso prova que ela não consiste em um puro instinto nem em não sabemos qual iluminismo fluido [outra vez Brémond] e estúpido .

É evidente que o calor da batalha não costuma dar margem a relativizações. A questão da pureza ou da impureza da poesia, entretanto, exige uma definição de parâmetros, entre os quais possamos palmilhar a poesia e sua criação.
A obra objeto de nosso estudo de poesia pura será a primeira parte de Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade. Considerando a epígrafe da obra, que contém uma citação de Paul Valéry, ─ Les événements m’ennuient ─ e a introdução do editor, que situa o livro de Drummond como marco de poesia pura, faz-se necessário ouvir o poeta francês sobre suas concepções de pureza em poesia, para se tentar perceber como ¾ ou se ¾ esses conceitos se realizam no poeta itabirano.
Vamos tentar rever primeiro o que não é considerado poesia pura, na opinião de alguns teóricos, para, verificadas as impurezas, cotejá-las com o que remanesce de elemento puro. Henri Brémond, em que pese ter admitido a superficialidade e arcaísmo de sua cultura poética, foi bastante taxativo ao relacionar as impurezas da poesia:

Impuro é, portanto ─ oh, de uma impureza não real, mas metafísica! ─ tudo o que, em um poema, ocupa ou pode ocupar, imediatamente, nossas atividades de superfície, razão, imaginação, sensibilidade; tudo o que o poeta nos parece ter querido exprimir, e exprimiu com efeito; tudo o que dissemos que ele nos sugere; tudo o que a análise do gramático ou do filósofo tira desse poema; tudo o que uma tradução conserva. Impuro, é evidente demais, é o assunto ou sumário do poema; mas também o sentido de cada frase, a seqüência lógica das idéias, a progressão do discurso, o detalhe das descrições e mesmo as emoções diretamente excitadas. Ensinar, contar, pintar, causar arrepios ou provocar lágrimas, de tudo isso se desincumbiria muito bem a prosa, pois é seu objetivo natural. Impura, em uma palavra, é a eloqüência (...)

A julgar por essa relação de impurezas, o que sobraria de pureza num poema? As respostas são bastante metafísicas e nada palpáveis: o poema provoca uma metamorfose extraordinária nas palavras de todos os dias e de todo mundo, fazendo com que elas vibrem de repente com uma luz e uma força novas , realidade misteriosa e unificante, encantamento obscuro, magia mística, corrente elétrica...
Robert Penn Warren faz um lista do que, segundo vários críticos, teria de ser excluído da poesia que se pretendesse pura:

1. idéias, verdades, generalizações, “significado”;
2. imagens precisas, complicadas, “intelectuais”;
3. materiais desgraciosos, desagradáveis;
4. situações, narrativas, transições lógicas;
5. descrições exatas, detalhes realistas, realismo em geral;
6. mudanças de tom e de clima;
7. ironia;
8. variações métricas, adaptações dramáticas de ritmos;
9. o próprio metro;
10. elementos subjetivos e pessoais.

Os elementos acima não foram dispostos em ordem de importância ou de freqüência de aparecimento em poemas de um modo geral. O primeiro item, entretanto, assume fundamental importância quando se relacionam idéias a palavras, com tudo que estas contêm de informações, de significados potenciais, de representações.
O ponto de partida da discussão sobre palavras e idéias, ou pelo menos a referência mais famosa ao affair é certamente a frase de Mallarmé: “On ne fait pas des vers avec des idées mais avec des mots”.
Para Jorge Guillén, o dito é verdadeiro, o que não significa a eliminação das idéias:

¡Exacto! Y qualquiera interpretación formalista, aunque fuese del próprio Mallarmé, sería errónea. Porque la palabra del verso también es idea ─ con toda una constelación de asociaciones, alusiones, sugestiones .

T. S. Elliot percebe a presença das idéias na poesia como um elemento de liame do leitor ao texto, algo necessário porém não determinante da qualidade de um poema:

O principal uso do “significado” de um poema, em um sentido comum, pode ser (aqui estou falando outra vez de algumas espécies de poesia, e não de todas) o de satisfazer um hábito do leitor, de manter sua mente distraída e quieta, enquanto o poema faz seu trabalho sobre ele: da mesma forma que o ladrão imaginário está sempre provido de um pedaço de carne suculenta para o cão-de-guarda .

Na linha da metáfora do pedaço de carne, numa abordagem que não dispensa o sentido lógico, Raïssa Maritain afirma que o significado, em poesia, é o que nos conduz ao sentido poético, que é espírito. A propósito dessa ”ponte” que conduz à poesia (identificada com o sentido poético), Maritain cita Marcel Raymond:

A experiência prova que o sentimento do desconhecido só se propaga a partir do conhecido .

O efeito da poesia no leitor (algo que é concebido nos misteriosos retiros do ser) é provocado, assim, tanto pela presença do sentido lógico quanto por certo ilogismo saboroso, que não é o sem-sentido, mas a superabundância de sentido. E assim conclui Maritain:

Assim é, acreditamos, a fonte do sentido poético, ele próprio livre e suficiente, sentido poético este que comporta inevitavelmente um sentido e uma falta de sentido lógico.

O sentido, o significado, as idéias, para alguns, deviam ser excluídos de qualquer poesia que se pretendesse pura. Apenas num postulado puramente idealista, teórico, ou pretensamente metafísico, pode-se admitir essa exclusão. Um poema pode, sim, apresentar-se desprovido de sentido ─ hermetismo absoluto. Basta inventarem-se combinações de fonemas destituídos de conteúdo semântico. O resultado será um amontoado de sonoridades e ritmos de maior ou menor apelo auditivo, mas isso certamente não conduzirá a nenhum tipo de êxtase ou contemplação que ultrapasse um possível interesse momentâneo que possa manter sequer uma parcela do status conquistado pela arte da poesia em sua existência.
Algum sentido o poema há de apresentar, mesmo que seja a negação do ato de escrever, a constatação da impotência da palavra, como Un coup de dées. E esse sentido, que é uma idéia, é que intriga, instiga, provoca novas descobertas e conduz ao que Susan Sontag chamou de sentido poético. Há, portanto, acima do nenhum sentido, o escasso sentido lógico, o algum sentido, que se pode graduar até o muito sentido lógico, que é o sentido da prosa. É evidente que o excesso de significado pode destruir um poema, ou impedir sua existência, mas a ausência de algum tipo de passagem para se descortinar o mundo que a poesia criou, subvertendo, destruindo e reconstruindo o que as grosseiras palavras do dia-a-dia dizem, pode ser a pá de cal na busca do sentido poético. A existência do significado é necessária, mas na dose exata de luz que seja mínima para permitir a entrada no reino da obscuridade necessária à contemplação, e máxima para que não ofusque a sensibilidade com a obviedade desencantadora.
Assim atuam os demais elementos impuros da poesia, numerados da segunda à décima posição no decálogo de Robert Penn Warren acima citado. Sua presença no poema é imperiosa, como pequenos figurantes que não podem aparecer muito, mas que devem contribuir para o brilho dos astros principais, mesmo que seja à custa do contraste. As estrelas têm, para brilhar, necessidade da noite, e de não ficarem muito perto umas das outras .
Já que não se pode falar de poema puro, pois a própria existência do poema pressupõe impurezas, a começar de seu elemento de fabricação, pode-se falar de poesia pura, encontrada em maior ou menor grau nos discursos poéticos, veiculada pelo contraste entre elementos puros e seus antípodas coadjuvantes, catapultas grosseiras para o vôo poético. Eis o óbvio: tanto mais puro será um poema quanto maior for a quantidade de poesia pura nele encontrada. Podemos encontrar índices de pureza nos poemas, como os que enumeramos abaixo. A enumeração, entretanto, e a constatação desses elementos no discurso poético não nos conduzem a explicações dos poemas, ou à aferição de seu grau de pureza ou de sua grandeza. Sempre haverá outras possibilidades de leitura de um texto poético, e essa inesgotabilidade é condição sine qua non para sua existência.
Não obstante, atentemos para alguns “elementos de pureza” mais visíveis, ou “dizíveis”, que permitam uma abordagem menos abstrata da questão da pureza dos poemas:

· menor aproximação possível com o mundo real e entrada no mundo poético
· maior identidade possível entre forma e conteúdo
· jogo com a lógica dos paradoxos, do impossível, do imponderável
· hermetismo proveniente de pressão interior
· valor absoluto das palavras
· linguagem sintética
· purificação/depuração da realidade pelos processos imagísticos
· arquitetura formal
· contenção e purificação das emoções
· predominância do sentido poético sobre o sentido lógico


A obra poética de Carlos Drummond de Andrade apresenta um momento que se afigura como diferente dos demais ─ anteriores e posteriores. É o livro de poemas Claro enigma, publicado em 1951, contendo poemas compostos entre 1948 e 1951, cuja primeira parte, “Entre lobo e cão”, vai constituir o objeto principal de nossa investigação da poesia pura drummondiana. Talvez seja este o livro de Drummond menos elogiado pela crítica, menos conhecido pelo público, menos citado por exegetas, atacado mesmo por alguns, como veremos, mas é certamente o momento mais intrigante e instigante da obra do poeta.
Pouco antes da publicação de A Rosa do Povo (1945), Drummond já declarava sua preocupação com o trabalho sério na poesia, alertando sobre as facilidades de que alguns poetas modernistas usufruíam ao romperem com a técnica, e de certa forma repreendendo-se a si mesmo:

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista...

A abdicação da “poesia-para” em favor da “poesia-poesia”, entretanto, foi mal compreendida por muitos críticos, entre os quais Emanuel de Moraes, que declarou sobre o Drummond de Claro enigma:

Uma terrível negação da arte de poetar que lhe impõe a madureza, contendo a mão do poeta e seus sortilégios de prestidigitador. (...) o seu verso ficou encasulado pelo formalismo métrico, desaparecendo o encanto de “ser apenas um compromisso claro entre o verso livre e a metrificação” (....) Demais, pode-se dizer que a sua própria imaginativa viu-se contida pelo rigorismo, por não se haver Drummond, na maioria das vezes, integralmente se adaptado aos critérios de composição tradicionais, inadequados que eram à expressão de sua poesia.

É impossível não citar aqui, entre os que menos consideram Claro enigma, o famigerado estudo de Luiz Costa Lima, intitulado “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade”. O autor do artigo nutre uma evidente má-vontade para com esse livro de Drummond, manifestando seu desconforto com o fato de que ele se desvia totalmente do que vinha sendo feito até então na obra do poeta.
O artigo se baseia na proposta de um efeito corrosivo que permeia a poesia de Drummond desde Alguma poesia (1930), ora como advertência histórica e esperança de reconstrução, associada à idéia de luta, de corrosão ativa (corrosão-escavação), ora como cega destinação para um fim ignorado (corrosão-opacidade), e em muitos momentos imbricando-se mutuamente. A corrosão, então, para o crítico, não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta . O princípio que norteia o estudo de Costa Lima pressupõe, portanto, uma íntima convivência ou relação do poeta com a temática do real, do palpável, de uma tomada de consciência certeira da realidade.
A própria epígrafe de Claro enigma (Les événements m’ennuient, frase de Paul Valéry) começa por exercer uma ação desconcertante sobre o princípio defendido por Costa Lima, anunciando o que ele lamentaria ser uma tendência em sufocar o princípio-corrosão pela opacidade absoluta . Preocupado em defender sua hipótese corrosiva a todo custo, o crítico culpa o poeta por se desviar dela no livro em questão, acusando-o de possuir um tom amaneirado , de revestir-se de enganosa claridade , ressaltando, entretanto, que, como grande poeta, na maioria dos casos Drummond consegue conter seu resvalar para a composição menor . Não conseguiu, entretanto, segundo o crítico, deixar de tangenciar a menoridade em poemas como “Memória” e “Chamado”, citados nominalmente, e outros, de pequenez subentendida pelo rancor do crítico.
Os elementos que conduzem os poemas de Claro enigma em direção a uma maior pureza poética, no sentido que estamos considerando aqui, podem ser sintetizados na expressão de C. Lima: a repressão da forma mais sensível de revelação do Tempo e da História. É evidente que para o crítico essa mudança não agrega virtudes; ao contrário, a novidade não deixa de vir a afetar a qualidade de poemas, mesmo inteiros. Embora admita a possibilidade de esta época de maturidade do poeta marcar um despertar mais vivo de sua consciência artesanal , o autor do artigo registra o aparecimento neste momento dos primeiros poemas formalizantes de Drummond, como uma possível concessão do autor à geração 45.
Em nossa concepção, a suposta renúncia do poeta ao Modernismo constitui, ao contrário, uma adesão a um Modernismo mais arejado e trabalhado, com propostas mais ousadas e, por isso mesmo, menos óbvias. Alguns anos depois de Claro enigma, o poeta declarou, em tom irônico:

Às 398 razões de incompatibilidade entre a arte moderna e o público poder-se-ia acrescentar mais esta: o público geralmente procura o assunto, enquanto a arte moderna o esquiva ou o elimina.

Certamente a citada forma mais sensível de revelação do Tempo e da História é o que o crítico procurou ─ e não encontrou ─ na obra em questão, decepcionando-se.
O poema “Memória” ─ passará de um poema formalizante? ─ é emblemático da opinião do crítico, que apenas cita esse seu parecer sem se deter em nenhum aspecto elucidativo da afirmativa, como se o rótulo de formalizante bastasse por si para definir a qualidade do poema. Abstraindo-nos da carga pejorativa intencional do adjetivo, pensamos em formalizante como uma obra que revela um cuidado formal minucioso, que não se deixa tomar pelas facilidades do acaso ou pela adesão a circunstâncias e compromissos a que se espera que não falte o poeta.
O poema compõe-se de quatro tercetos de redondilhas menores com rima e ritmo absolutamente regulares, compondo uma unidade monolítica:

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
estas ficarão.

A unidade formal compõe-se com o sentido, aprisionando o jogo dialético das formas de negação do esquecimento, identificado com o real, que é destruição, em oposição à perpetuação da memória, do intangível, que é criação. Ao invés de princípio da corrosão, faz-se presente o princípio da metamorfose, da construção do encantamento numa esfera além do tempo e da história, e que não os tem necessariamente como ponto de partida. Temos aí a palavra depurada, a emoção contida, o afastamento da realidade para se buscar outra com as mesmas palavras utilizadas na anterior. O poema reveste-se de intensa brevidade, em que a memória contemplada é evocada em imagens de pureza, serenidade, limpidez. O poeta segue um método consciente, rigoroso, a tendência é formalista sem dúvida, mas a poesia está presente, sem corrosão.
Outro poema de Drummond execrado pelo crítico é “O chamado”, cujo assunto é o poeta Manuel Bandeira. Esse poema é comparado a “Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro”, de Sentimento do mundo (1940). A “Ode” é um belo poema sobre o poeta pernambucano, longo e emotivo, com uma apreciação bastante sentimental sobre o homem e sua poesia, repleto de referências intertextuais e metalingüísticas. O poeta homenageado é uma espécie de deus que perdoará e protegerá o mundo dos poetas que não são deuses, mundo cheio de pessoas humildes e às vezes fracas, oprimidas, que esperam poder se consolar com sua poesia, que estará sempre presente, perfeitamente inserida no tempo e na história, seguindo caminho diverso da arte de Rimbaud e Maiakovski. O poema é cheio de impurezas (no sentido “técnico” do termo) que contrastam com momentos de pura poesia.
”O chamado” de Claro enigma é o seguinte:

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai ¾ a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparência sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.

Na opinião de Costa Lima, a “Ode” tem a virtude de apresentar maior proximidade à mentação modernista, que cede lugar, em “O chamado”, à polícia estrita da palavra. Este apresentaria um debilitamento progressivo da terceira estrofe até o final, que não consegue concluir, e, como para substituir essa impossibilidade, o amaneirado se incorpora ao texto Drummondiano .
O poema anterior exibe sua qualidade na apreensão polifacética do conjunto Bandeira-tempo, possibilitada pelo fato de que a visão do poeta louvado se realiza em conjunto à visão do tempo que em comum eles pisam . Concluímos então com Costa Lima que a superioridade da “Ode” consiste no contato próximo à realidade e aos sentimentos grandiosos, que, ao invés de se debilitarem, vão adquirindo força até resvalar no divino.
O segundo Bandeira é evidentemente mais contido, mais condensado, o que o próprio crítico reconhece, mas não hesita em taxá-lo de amaneirado, o que nos parece uma contradição, a menos que o caso seja muito mais grave, de uma condensação formal tão vazia que apenas sobra lugar para o rebuscamento, o adorno.
Em confronto com a “Ode no cinqüentenário do poeta brasileiro”, a depuração da linguagem em “O chamado” nos parece a realização antecipada da declaração do poeta logo após a publicação de Claro enigma:

A dificuldade inicial com que defronta o poeta de língua portuguesa, sendo esta, de natureza, analítica, e a poesia, sintética: trata-se de esconder o objeto, e não há cofre na sala; nem vão, nem subterrâneo dissimulado.

Sem querer comparar a qualidade de duas peças absolutamente distintas, produzidas pelo mesmo autor em momentos diferentes e expectativas diversas, julgamos que o Bandeira de Claro enigma, sem a dimensão mítica do Bandeira de Sentimento do mundo, é o poeta do imponderável, o antigo lume que procura achar o brilho na noite escura, busca que se identifica com a do eu-poético. O brilho não se relaciona com o poder de encantamento do poeta, que os dois sempre tiveram de sobra, mas uma direção misteriosa, sem rumo certo, a que se pode chamar destino, que unifica o poeta e o fazer poético na ambigüidade da palavra Chamado. Onde o maneirismo? Certamente na ausência do princípio-corrosão, que para Costa Lima tem comparecimento obrigatório nos melhores poemas de Drummond, como um bruxo velado e escarninho. O veredito é taxativo sobre a influência do princípio e seu gênio difícil:

Mas também zeloso ou ciumento de seus direitos, onde é calcado deita fora a grandeza da peça, substituindo-a por um tom amaneirado e qualitativamente doloroso. Mais do que a imagem acima usada, o princípio-corrosão é, entretanto, semelhante ao gênio maligno da História, a se fazer presente pelo menos nos instantes mais poderosos.

A imagem do princípio-corrosão, ainda que possa ser contestada como condição para a existência de poesia maior em Drummond, é muito útil para auxiliar na exploração do que há de poesia pura em Claro enigma. Podemos deixar a corrosão de lado a partir de agora, já que ela está intimamente ligada ao tempo e à história, e às circunstâncias e acontecimentos, que o poeta aborrece. Não se pode corroer o abstrato e o ausente.
Essa renúncia ao tempo e à história aparece na obra de Drummond como um resultado do excesso de consciência histórica, que aflige a arte e a intelectualidade ocidentais deste século, como constata Susan Sontag:

Em pouco mais de dois séculos, a consciência da história transformou a si própria de uma libertação, um abrir de portas, uma iluminação abençoada, em uma carga quase insuportável de autoconsciência.

O esvaziamento do princípio da corrosão em Claro enigma cede lugar ao que chamaremos de princípio da metamorfose, que preside o novo tempo da poesia drummondiana inaugurado nessa obra, e caracteriza a busca da pureza nesta fase. Esse princípio condutor da estética da metamorfose será examinado mais de perto, juntamente com outros elementos de afastamento da linguagem material, impregnada historicamente, na primeira parte da obra, “Entre lobo e cão”. Assim, a tentativa de purificação da linguagem em Claro enigma passa necessariamente por seu afastamento e negação da linguagem como agente de acumulação histórica. Daí a aceitação, de braços cruzados, de uma ordem outra de seres / e coisas não figuradas com que o poeta anuncia, já no primeiro poema, ‘Dissolução’, o clima de contemplação que perpassa a obra:

Escurece, e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

A imagem do escurecer vai-se transformar em um símbolo, pela recorrência e persistência, na obra. A metáfora remete à idade madura do poeta ─ reforçada pela expressão Entre lobo e cão, que intitula a primeira parte: lusco-fusco, escurecer, boca da noite ─, mas amplia-se na direção de um mundo novo, para o qual o ser é guiado e não lhe resiste. É a ruptura com o tempo e a história que se anuncia:

E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Os sentimentos do mundo se esvaem, e esvaziam o universo das acumulações históricas, ampliando o espaço da nova ordem, que abriga outros habitantes, entre os quais possivelmente se inclui o poeta, o que comprova a imagem da pele na escuridão. Essa curiosa combinação de metonímia e metáfora da metamorfose reúne elementos antitéticos (pele branca x noite negra) que se fundem e se desconstroem em outra dimensão: a pele, metonímia do ser, metáfora do poeta e da poesia, se funde com a escuridão, metáfora do desconhecido, e se derrete em um fim unânime.
A passagem é hesitante e encerra perdas e danos; enquanto o tempo que se vai é claro e agressivo, e portanto opressor, o que se descortina parece prometer a paz, mas como produto de destruição, de negação. A dimensão que abriga a ordem outra é tão indefinida que não comporta medição de tempo, mas é definitiva, não admite retorno.
Merece destaque a desconcertante metáfora sinestésica da cor do galo. É a própria lógica do paradoxo: a cor do galo é uma elisão do óbvio e discursivo “a cor da madrugada no momento em que o galo canta”. O momento, com sua cor, representaria o retorno impossível à claridade, ao renascimento que exprime a extinção da ordem então vigente.
Outra inversão que produz o contraste do puro com o impuro é a intratextualidade com A rosa do povo, rosa muito mais rica, cheia de encantos humanos e de libertação da consciência histórica, representativa da fase mais produtiva do poeta (conforme suas próprias palavras), e que agora é negada. Deve-se observar que o intratextual, bem como o intertextual, tem escassa recorrência em Claro enigma, exatamente pelo que esses recursos têm de compartilhamento com a cultura precedente e, portanto, pelo que contêm de impureza histórica. É evidente, aqui, o efeito de contraste do mundo impuro (rico e cheio de amor) com a busca da pureza de outra realidade.
O mesmo efeito é produzido pelo diálogo com “Vou-me embora pra Pasárgada” na referência à imaginação falsa demente. Entra aqui uma terceira dimensão no processo de negação e desconstrução. O mundo de Pasárgada, que nega o mundo real, também é negado na atual projeção. Em ambos se calam a palavra e a imaginação, e o corpo, vazio de tanta acumulação, se torna leve, sereno, tranqüilo.
A metamorfose do eu-lírico em direção à ordem outra é também uma exigência da busca de purificação da linguagem, ou seja, as palavras ordinárias devem-se despir de sua impregnação histórica para adquirirem nova existência em um mundo diferente, conforme afirma Raúl Castagnino:

Pero el poeta ─ porque es tal ─ inyecta a las palabras corrientes una virtud nueva, creadora y recreadora; y espera de ellas el servicio de que provoquen asociaciones, despierten sugestión, estimulen adivinaciones y, también ─ aunque esto sea, en cierto modo, indice situacional de un tiempo poético ─ que comuniquen una idea. Les proporciona (...) una capacidad de irradiación (...) que hace que, con escuchar o leer las palabras del poema, el receptor se encuentre, no más rico en información, con mayores conocimientos prácticos, sino tocado en lo profundo, por algo intangible, pero real y evidente.

Um dos recursos mais utilizados por Drummond para fazer desprender das palavras tudo aquilo de que elas são capazes é emparelhar conceitos e imagens, jogar com a lógica dos paradoxos, dos impossíveis, dos imponderáveis. Arturo Rivas Sainz fala do caráter dual da metamorfose:

Metamorfosis y translación son afirmaciones y negaciones simultáneas: negaciones de principios de identidad y de contradicción, porque todo lo que se metamorfosea o se traslada, al mesmo tiempo que es, puesto que se puede cambiar, tiene la posibilidad de ser ‘outra cosa’ y, portanto, la contradictoria posibilidad de ser, puesto que es, y la de no ser lo que es, puesto que puede cambiar.

Assim, são índices de metamorfose e contradição em “Dissolução” antíteses como dia / noite; vazio / vasto; pele / escuridão; agressivo espírito / paz destroçada; mil anos / cor do galo; alma / corpo.

No poema “Remissão”, o princípio da metamorfose se apresenta novamente: a poesia feita de circunstâncias é pasto dos vulgares, impureza contaminada das emoções da vida, tornada fria pela impregnação dos pesares e angústias. A poesia pura é aquela que não pretende ensinar, nem emocionar, nem informar nada; resta, portanto, o contentamento de escrever, no sentido valéryano da fabricação poética.

“Ingaia ciência” é o conhecimento que não dá prazer, a madureza que traz em si também a metamorfose, um acúmulo de história inoperante no caminho da destruição.

À negação do tempo e da história junta-se a negação do mito em “Legado”. O inferno do mundo não se curva à lira de Orfeu; o poeta não engana o mundo, o mundo não engana o poeta, seu legado se situa em sua trajetória terrestre, nos poemas de mundo, na pedra no meio do caminho.

“Confissão” é despedida daqui (cego é quem se recusa a ver). A existência foi paradoxal, Dei sem dar e beijei sem beijo. Em direção à mudança, tesouros tangíveis desaparecem, os sinais do mundo não podem ser recompostos.
Curiosa é a presença do trocadilho: Não amei bastante sequer a mim mesmo, / contudo próximo. O trocadilho é um elemento impuro, por sua carga histórica e mítica; aqui, sua utilização é elemento de contraste deste ser excessivamente humano e impuro com o impossível ser amado, isto é, o imponderável, o irreconstituível, o que é derrotado pelo mundo da técnica, conforme observa Octavio Paz:

Se o mundo como imagem se desvanece, uma nova realidade cobre toda a terra. A técnica é uma imagem tão poderosamente real ¾ visível, palpável, audível, ubíqua ¾ que a verdadeira realidade deixou de ser natural ou sobrenatural: a indústria é nossa paisagem, nosso céu e nosso inferno.

A inesperada metáfora do pássaro e do avião encena a inútil e terminada busca de pura liberdade azul e doida, que se destrói em confronto com o útil, o qual, por sua vez, será destruído ao deixar de ser útil.

Salvo aquele pássaro - vinha azul e doido -
que se esfacelou na asa do avião

Segundo Ortega y Gasset, citado por Octavio Paz , o homem deste século perdeu a imagem do futuro, com a morte de seus mitos e de suas histórias, o que implica a mutilação do passado. Conforme Paz,

Nosso tempo é o do fim da história como futuro imaginável e previsível. Reduzidos a um presente que se estreita cada vez mais, nos perguntamos: aonde vamos? Na realidade deveríamos indagar: em que tempo vivemos?

Essas indagações são lançadas de várias maneiras no poema “Perguntas em forma de cavalo-marinho”. Nosso presente sem futuro está contido no tempo sem começo nem fim. O sucateamento do passado e a imobilidade circular do presente tecnicista frente à inutilidade deixa o homem perplexo diante do fim da história como processo previsível. Assim, as perguntas feitas no poema permanecem sem resposta, à espera de que os signos em rotação possam furar o bloqueio do desconhecido
A transformação se faz presente de novo em “Os animais do presépio”, em que o eu-lírico incorpora a aparente leveza do reino animal , embutida no negrume geral, que rende homenagem ao nascimento do enviado. Ele é, afinal, o arauto da metamorfose para o desconhecido.
Em “Sonetilho do falso Fernando Pessoa”, o eu-lírico recorre à impureza da intertextualidade para evocar a busca da pureza absenteísta do poeta português e sua atitude protéica de vestir várias peles e de se auto-negar na diversidade dos heterônimos e na ausência de comunicação com os valores convencionais.
A existência agônica da humanidade é vista através da impassibilidade contemplativa de um bovino em “Um boi vê os homens”. A lógica, aqui, é deslocada para a visão do boi, que pertence a um outro mundo, de onde observa as impurezas humanas, entre as quais sua necessidade de expressar seus pobres sentimentos, emitindo sons absurdos e agônicos.
A contenção das emoções, a arquitetura formal e um certo hermetismo caracterizam “A tela contemplada”, poema metalingüístico sobre a criação artística. A arte contemplada no poema é de tendência formalizante, a estética do apagamento e da brancura. Os mitos criados por esse novo artista se desprendem da terra e já recuam para a noite, símbolo do mundo não terreno, onde não cabem os sentimentos.
“Ser” é um poema que escapa da crítica contundente de Costa Lima, talvez por ter como assunto algo estritamente ligado à história terrena do homem: a geração de um filho. Entretanto, percebemos claramente aqui também o princípio da metamorfose. O filho que não foi feito existe abstrato, sem carne, sem nome, e habita um mundo próprio,

(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

Um dos poemas mais emblemáticos de todo esse processo de desconstrução e de negação da linguagem em favor de sua depuração em Claro enigma é “Contemplação no banco”. O ponto de partida é o prosaico banco de jardim ou de praça, em que o coração pulverizado sente o peso da existência no mundo e aspira a escapar-lhe. O processo imagístico predominante nessa primeira estrofe é a metonímia, imagem mais pé-no-chão, mais próxima deste mundo. Contrapõe-se-lhe a metáfora da flor na segunda estrofe, que, calcária e sangüínea, pode ser um produto da humanização do espaço, produto que contém a possibilidade de ultrapassar a dimensão humana e o tempo da humanidade.
Essa flor será mentada e entoada para se opor às misérias da humanidade, e florescerá em um outro mundo, para um novo homem.
Na segunda parte, constrói-se o homem que nega, superior, a humanidade, que não pode ser chamado de irmão, porque a vida nova / se nutre de outros sais. A construção compreende uma integração de formas puras, um sublime arrolamento de contrários / enlaçados por fim. Esse homem, que se confunde com a poesia pura, afasta-se da linguagem e da arte deste mundo, do nosso vão desenho / e de nossas roucas onomatopéias, de nossos desgastados signos conspurcados pela acumulação histórica.
A terceira parte do poema tenta divisar o novo ser e a nova linguagem, que se desata do mundo em direção a uma nova existência, dissolvendo a cortina de palavras. Sua criação, entretanto, exige palavras que nunca foram inventadas, e o poeta se revela um místico sem Deus, incapaz de dizer o inefável, o que nem a literatura proporciona:

Triste é não ter um verso maior que os literários,
é não compor um verso novo, desorbitado,
para envolver tua efígie lunar, ó quimera
que sobes do chão batido e da relva pobre.

“Cantiga de enganar” é o desengano do mundo e o engano no Mundo. Mais uma vez, comparece o tema da desconstrução e da metamorfose para outra dimensão inefável e inexplicável. O tema se repete na insatisfação criadora em forma de soneto de “Oficina irritada” e na tentativa de se libertar de uma visão tecnicista do mundo em “Opaco”, que resulta na impossibilidade de apreender o além do aqui.
“Sonho de um sonho” — três sonhos superpostos: elos / de uma infindável cadeia / de mitos organizados / em derredor de um pobre eu.
O sonho, com ser sonho, comporta a lucidez, que tem a função de concretar o fluido e abstrair o maciço. O eu-lírico encontra-se receptivo, magnético, com boa recepção do mundo, possibilidades claras convergindo em sua direção. O ouro do tempo (as glórias temporais, mundanas) provoca ambição, mas dá medo. E ainda sonhava pouco, havia muito mais. Ai de mim! Que mal sonhava.
Essa ordem lúcida comportava milhares de seres que eram ao mesmo tempo um, substância essencial e desejo de unidade. O eu-lírico converte-se no centro que produz raios, que ao mesmo tempo são centros e divergem para rotas não percorridas, embora anotadas em antigos portulanos e em indizíveis trajetórias .
Num momento o sonho se confunde com a realidade. De que é formado o sonho? Não de nossos desejos, não de nossos silêncios, mas do encanto das palavras,

mas do que vigia e fulge
em cada ardente palavra
proferida sem malícia,
aberta como uma flor
se entreabre: radiosamente.

O sonho do sonho apresenta vida própria, exterior ao eu-lírico; ele pode ser apreciado e contemplado externamente. O sonho-poesia não reflete nem imita a realidade; antes, transforma-a. O espelho é o diamante, a fonte de luz; o obscuro lado da vida é terra que se recupera pelo poder da poesia, libertando as sementes da perfeição.
Observe-se que neste poema o eixo da ordem outra inverte-se da obscuridade para a claridade, mas a falsidade do sonho faz prevalecer a treva,

nas paredes degradadas,
na fumaça, na impostura,
no riso mau, na inclemência,
na fúria contra os tranqüilos,
na estreita clausura física,
no desamor à verdade,
na ausência de todo amor,
eu via, ai de mim, sentia
que o sonho era sonho, e falso.

O princípio da metamorfose faz-se presente também neste poema, mas de uma forma diferente dos demais: na busca da claridade e na prevalência da obscuridade.
O último poema desta parte objeto de nossa investigação é “Aspiração”, que condensa o desejo de poesia e de vida do poeta, em direção a uma pureza calma, sem sobressaltos de saltos da crueldade ao diamante. Emoções da vida, prazeres e sofrimentos mundanos, os sentimentos convencionais são negados em favor da aspiração maior.

Aspiro antes à fiel indiferença
mas pausada bastante para sustentar a
[vida
e, na sua indiscriminação de crueldade
[e diamante,
capaz de sugerir o fim sem a indiferença
[dos prêmios.

Os demais momentos desta obra contêm também exemplos evidentes da busca da pureza, embora, talvez, não tão concentrados como na primeira parte. ”Notícias amorosas” contém os mais belos poemas de amor da poesia de Drummond, com tudo o que contêm de impureza, satisfazendo o gosto de Luiz Costa Lima:

Como grupo distinto e de qualidade ímpar destaca-se em Claro enigma a série constituída pelos poemas sobre o amor. Não nos parecem ser ocasionais a qualidade que os acompanha e a liberação do formalismo. O amor oferece a matéria pela qual o impuro, o misturado, o confuso, o mundo ainda pode ser alcançado. O absenteísmo da fase do poeta não retira o sal incluso no amor.

Embora esses poemas de amor não constituam objeto deste estudo, convém constatar que eles não abusam do impuro, do misturado, do confuso. Antes, o amor é visto de uma perspectiva calma, sublime, serena, sem pilhérias, ironias ou arroubos. Eles contêm de pureza a despersonalização do lirismo amoroso, a depuração dos sentimentos, a atitude de contemplação que ultrapassa a fronteira entre o mundo de todo dia e o mundo criado pelo amor.
O mesmo se pode dizer dos poemas das seções restantes: “O menino e os homens”, “Selo de Minas”, “Os lábios cerrados” e “A máquina do mundo”, que contêm muito de matéria impura: memória, homens, família, cidades. Não obstante, devemos insistir que o tratamento dado à matéria é que confere ao poema sua pureza — ou ausência dela. O assunto, conforme observa A. C. Bradley, não se encontra dentro do poema, e sim fora dele:

O assunto é uma coisa; o poema — matéria e forma unidos — uma outra. Sendo assim, é certamente óbvio que o valor poético não pode residir no assunto, e sim, inteiramente, no seu oposto, o poema.

Não é nosso objetivo aqui discutir a qualidade desses poemas ─ algo indiscutível ─, mas assinalar seu teor proposital de pureza como estética escolhida e trabalhada pelo autor. Não se pode deixar de assinalar, porém, que os poemas de Claro enigma realizam no leitor o que A. C. Bradley percebe na poesia:

Sobre a melhor poesia flutua uma atmosfera de sugestão infinita. O poeta nos fala de uma coisa, mas nessa uma coisa parece estar contido o segredo de tudo. Ele disse o que queria, mas o sentido parece se esconder por detrás dele próprio, expandindo-se em algo sem fronteiras, ou somente visto como algo que, pressentimos, seria capaz de satisfazer não somente a imaginação, mas o todo de nós.

Concluindo:

Ela é espírito. Vem não sabemos de onde. Não nos falará forçada, nem nos responderá em nossa linguagem. Não é nossa serva; é nossa mestra.

Cremos, enfim, ter podido mostrar algo da pureza perseguida por Drummond em Claro enigma, e que reside em seu dualismo, em sua bipolaridade, que provoca tensão e confere força à poesia em sua metamorfose. Ela é pura no sentido de que não pretende ensinar, nem emocionar, nem informar nada; ela não se fundamenta em notícias do mundo, nem em intertextualidade. É pura no sentido de produzir um certo hermetismo essencial, provocado inicialmente pela própria negação da imagem habitual do mundo e do desejo de depuração verbal, da busca de superação da inevitável inequivalência entre o caráter analítico da linguagem usual e a necessária síntese da linguagem poética.
É evidente que algum hermetismo sempre advirá de uma poesia que busca deslocar-se de influências circunstanciais, através de um maior grau de abstracionismo que resulta em poemas de alto teor de pureza. Essa dificuldade de intelecção, entretanto, não deve prejudicar o convívio do leitor com a poesia, conforme observa Susan Sontag:

O espectador se aproximaria da arte como o faz de uma paisagem. Uma paisagem não exige sua “compreensão”, suas imputações de significado, suas angústias e suas simpatias
(...) A uma tal plenitude ideal a que o público nada pode acrescentar, análoga à relação estética com a natureza, aspira uma grande parcela da arte contemporânea — através de várias estratégias de brandura, redução, desindividualização, alogicidade.

Finalmente, tende à pureza essa poesia que constitui outro mundo, à parte, independente, completo, autônomo. Ser outra forma de vida não pressupõe que a poesia exija, para que compartilhemos de seu mundo, uma ruptura total e irreversível com o mundo real, embora exija um tipo diferente de experiência, uma imaginação contemplativa que produz em nós um resultado diferente dos que encontramos no dia-a-dia.

Monday, March 05, 2007

HERESIAS DA LETRA SEM CORPO E DO ESPÍRITO ERRANTE
Uma leitura do romance As iniciais, de Bernardo Carvalho

Cid Ottoni Bylaardt
(Doutor em Literatura Comparada pela UFMG.
Professor Adjunto do Departamento de Literatura da UFC)


Resumo
Este texto pretende desenvolver a idéia de perturbação democrática da letra órfã, postulada por Jacques Rancière, passando pelas concepções de escrita de Homero, Platão e Aristóteles. A errância da letra sem pai que a proteja conduz à idéia de supressão das belas-letras, com a instauração da literatura, que proclama sua autonomia em detrimento do edifício mimético. Essas concepções nortearão a averiguação que se conduzirá sobre a narrativa As iniciais, de Bernardo Carvalho, cuja dispersão encena textos desvinculados do mito, da alegoria e da história.

Palavras-chave: errância, heresia, letra sem pai, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Abstract
This text intends to develop the idea of democratic disturbance of the orphan letter, postulated by Jacques Rancière, going by the conceptions of writing of Homer, Plato and Aristotle. The letter that wanders without a father to protect it leads to the idea of suppression of the belles lettres, establishing the notion of literature, which proclaims its autonomy towards mimesis. Those conceptions will orientate this investigation of Bernardo Carvalho’s text, As iniciais, whose dispersion exhibits reports disentailed of myth, allegory and history.

Key-words: wandering, heresy, fatherless letter, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Os fundamentos destas considerações encontram-se nas formulações de Jacques Rancière sobre o conceito de literatura, em oposição ao de belas-letras, e suas implicações para o mundo da escrita e para o que ele denomina mundo das condições. Daí a necessidade de se definirem alguns conceitos trabalhados por Rancière, tais como literatura, belas-letras, sistemas de legitimação, democracia, orfandade e errância das palavras, que conduz ao que ele chama “heresias da letra sem corpo e do espírito errante”. Uma vez estabelecidos, esses princípios nortearão a investigação que se conduzirá sobre o romance As iniciais, de Bernardo Carvalho.
A proposta de Rancière se baseia em sua recusa de investigar a escrita sob o ponto de vista das formas estereotipadas do pensamento de hoje.
Recusa, para começar, de instalar-se no fim da filosofia e na infelicidade dos tempos. (...) Recusa, por outro lado, de seguir a onda do social, de ceder ao peso dominante do pensamento estatizado, este pensamento segundo o qual nada existe senão estados de coisas, combinações de propriedades, e que julga as práticas e os discursos na medida em que eles reflitam, desmintam ou desconheçam estas propriedades. (ALLIEZ, 1996, p. 100)

A questão do “próprio” da literatura, ou “o ser da coisa literária” em oposição ao saber dos letrados, as belas-letras, parte dessa recusa. Na escrita, as “combinações de propriedades” estruturam o edifício mimético, que fornece os elementos de investigação aos filósofos da escrita, os quais evitam a desordem literária, encerrando as letras nas categorias estabelecidas para a poesia e para a ficção.
Toda essa formulação da representação, que Rancière tenciona subverter, passa por três cânones notáveis: Homero, Platão e Aristóteles.
O ponto inicial de inquietação é Platão, que desmascara a dupla mentira de Homero e seus pares: seus deuses movidos por querelas e adultérios desmentem sua própria divindade; sua palavra escondida na palavra de seus personagens desmente sua paternidade do discurso. No Fedro, os poetas são considerados almas de sexta categoria, por serem meros produtores de imitação, e não investigadores da verdade.
A própria palavra escrita deve ser vista com reservas, por seus possíveis efeitos perniciosos, adverte Platão, ao relatar o mito egípcio da invenção da escrita. Conforme o relato socrático, o deus Theuth foi ter com o deus Thamus e mostrou-lhe suas invenções, que iam sendo criticadas pelo outro, com boas ou más palavras. Após tantas artes, apresentou-se-lhe a escrita, que, segundo o inventor, tornaria os egípcios mais sábios e lhes fortaleceria a memória e lhes consolidaria a sabedoria. Dando seu parecer, Thamus elogiou o outro por sua arte, mas discordou dos benefícios da invenção:
(...) this discovery of yours will create forgetfulness in the learners’ souls, because they will not use their memories; they will trust to the external written characters and will not remember of themselves. The specific which you have discovered is an aid not to memory, but to reminiscense, and you give your disciples not truth, but only the semblance of truth; they will be the hearers of many things and will not have learned nothing; they will appear to be omniscient and will generally know nothing; they will be tiresome company, having the show of wisdom without the reality. (PLATO, 1991, p.138)

A idéia da perturbação da letra órfã, que Rancière vai relacionar ao advento da democracia, aparece em Platão como uma ameaça à verdade, ou à adequação entre o enunciador, o discurso e o receptor:
And when they [the speeches] have been written down, they are tumbled about anywhere among those who may or may not understand them, and know not to whom they should reply, to whom not: and, if they are maltreated or abused, they have no parent to protect them; and they cannot protect or defend themselves. (PLATO, 1991, p.139)

Além do mito da invenção da escrita, há no diálogo platônico o mito das cigarras (enunciados que têm voz identificável e privilegiada: as cigarras receberam das musas o honroso privilégio de não necessitarem de alimentação em toda sua vida, sendo capazes de cantar, do nascimento até a morte, sem comer nem beber), que separa os trabalhadores dos dialéticos, e o mito da parelha de cavalos alados, que reforça essa divisão e identifica os “donos das vozes”. Uns alcançam as verdades celestes, outros não; estes não têm o poder da palavra, aqueles trocam palavras a qualquer hora do dia. É essa relação ordenada do fazer, do ver e do dizer, em que os papéis são estabelecidos segundo uma hierarquia de legitimação, que a escrita vem desfazer.
Há em Platão, portanto, a preocupação com a verdade, a que os poetas épicos fogem, com a identificação dos corpos que engendram palavras, de acordo com seu nível, o mais elevado dos quais é o dos filósofos que buscam a verdade divina. Há também uma inquietação quanto ao destino errante da palavra órfã na escrita sem pai, que não é capaz de defender-se nem de proteger-se por si.
As preocupações de Platão acabam por legitimar o enganador como poeta, que é reabilitado pela Poética de Aristóteles. A mentira, denunciada por Platão, regulamentada por Aristóteles, acaba por se instituir como saber através da convenção que o edifício mimético estabelece entre o autor, o discurso e o receptor. A mentira não é então mentira, é ficção, é a “regra séria do não-sério”, na expressão de Rancière.
Na idade moderna, a fábula platônica foi representada pelos “filhos do povo”, que descobriram escritos desconhecidos e/ou misteriosos e deles se apropriaram. A viuvez da postura platônica faz-se sentir entre aqueles que lamentam as devastações da letra muda/falante , da letra órfã, como os filósofos da monarquia, a vociferarem contra os joões-ninguém, incitadores de sedição que se apropriam da escrita que não lhes é destinada para realizar seus desígnios.
A literatura, ao se opor às belas-letras, representa o desvio da concepção ordenada da prosa em direção às aventuras do sentido, inaugurando uma nova partilha entre a ordem do discurso e a das condições. Rancière propõe que literatura não é apenas o que sucede as belas-letras, mas aquilo que as faz desaparecer, como evento singular da escrita, não mais subordinado à concepção clássica da inventio (assunto), da dispositio (organização das partes) e da elocutio (tons e complementos convenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto). É a ruptura da literatura, que contém em si a ilusão da continuidade, mas que leva a sua absolutização. Não mais as relações estáveis entre as palavras e as coisas e as idéias. Não mais a ordenação das posições do falante e do discurso, do pai enunciador e da letra filhote. Não mais o elemento ordenador da mimese. Não mais a convenção entre o enunciador e o destinatário que regula as maneiras de recepção da obra de arte, ruptura representada pelos golpes de espada de Dom Quixote nas marionetes de mestre Pedro. Não mais a correspondência entre a letra e seu pai, mas a falha entre o corpo e a letra. No caso de Dom Quixote, sua loucura reside em sua falha, que é o paradoxo de ser ele ao mesmo tempo o homem do atraso cavaleiresco e o herói da modernidade literária. Herói porque não reconhece mais a relação convencional entre ficção e não-ficção, desautorizando as belas-letras, que organizam a ficção dentro da realidade, a “regra séria do não-sério”, estabelecendo um jogo entre os modos de discurso e os modos de recepção, em que enunciador e receptor obedecem às premissas convencionadas.
A quebra das convenções estabelece a “doença” da escrita: sua orfandade faz com que a contingência determine seu referencial, ou seja, a escrita não possui a priori um referencial ou um enunciador pré-determinado. A teoria da representação lingüística (cada palavra a uma coisa representada) ou a idéia de que a palavra é signo sucumbem aí. O remédio para a doença da escrita é sempre outra escrita, um texto que corrige as falhas do outro.
A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como a sociedade das deslegitimações que tende a derrubar a divisão entre os superiores e inferiores em vários níveis, num regime que remete ou que converge para a desigualdade e para a desordem democrática. Essa perturbação é um efeito da disseminação dos discursos, que confirma a deslegitimação própria da democracia, dispersão e desvio da letra, que erra sem voz que lhe confira legitimidade.
É a pulverização do corpo glorioso de uma sociedade, outrora representado pela epopéia de um povo, em que o criador escreve como quem fabrica armas e utensílios necessários à perpetuação da tribo, num imitativo elevado que exprime o ethos da coletividade. A ordenação tem de ser respeitada, o modo de ser da literatura corresponde aos modos de fazer da comunidade.
A literatura não mais belas-letras, em oposição à escrita convencional, é capaz de dar a qualquer corpo obscuro a capacidade do brilho, porque a escrita deixa de se enquadrar em esquemas de representação para promover a errância da letra sem pai, a heresia da conspurcação das belas letras, o espírito errante que desafia a coerência entre a ordem das palavras e a das coisas. O compartilhamento da letra por todos é uma contingência igualitária que propicia um novo tipo de desigualdade decorrente da deslegitimação, que se opõe à desigualdade existente no sistema de legitimação.
Nessa condição, a literatura tende a aproximar-se de sua absolutização, tornando-se um evento tanto mais singular, único, quanto mais se afastar de seu locutor, enunciador ou produtor, com “la disparition élecutoire du poète”, nas palavras de Mallarmé. Para Blanchot, a ausência do sujeito é uma das características primeiras da obra de arte:
L’œuvre d’art ne renvoie pas immédiatement à quelq’un que l’aurait faite. Quand nous ignorons tout des circonstances qui l’ont preparée, de l’histoire de sa création et jusq’au nom de celui qui l’a rendu possible, c’est allors quélle se raproche le plus d’elle-même. C’est là sa direction véritable. (Blanchot, 1999, p. 293)

Essa concepção se opõe a uma visão pragmática da literatura, que, segundo Rancière, desconsidera o que ele estabelece como o cerne da questão, ou seja, a ruptura da escrita com as belas-letras, inaugurando a literatura nesse sentido específico. Conforme Rancière, a transição de belas-letras para literatura ocorre entre os séculos XVIII e XIX; entretanto, a fábula do “louco da letra”, o Dom Quixote, fundador da literatura, situa-se no início do século XVII, inaugurando a errância da letra sem pai. O cavaleiro da triste figura subverte a relação convencional entre ficção e não ficção, que não lhe diz respeito, substituindo-a pela dicotomia falso-verdadeiro, que aparecem indistintamente na ficção e na não-ficção, as quais perdem a importância. Ficção e não-ficção são pactos da representação, que organizam as relações entre os modos de discursos e os modos de recepção, estabelecendo a arquitetura mimética que sustentava o modelo das belas-letras. Dom Quixote quebra as normas de representação, fazendo prevalecer a lei interior sobre a exterior, que se esfacelava. A boa relação entre a ordem do discurso literário e a ordem das condições, sustentada pela brincadeira séria do não-sério, é desfeita pela crença na verdade dos livros, que deixam de ser diversão para se tornar a sua infelicidade, e sua loucura da crença na ficção contamina Sancho Pança, representante do “bom senso” popular, disseminando a loucura da letra para além dos limites idealizados pelo cavaleiro nostálgico dos feitos heróicos.
É consistente afirmar que Dom Quixote inaugura uma nova relação entre o produtor, a obra e a recepção, mas é importante sublinhar que o texto de Cervantes não foi concebido como tal, tendo adquirido essa condição pelos desdobramentos das concepções de romance desde então. A literatura “não é aquilo que sucede as belas-letras, porém aquilo que as suprime” . Pode-se pensar em termos de supressão ideal, um basta progressivo que tenta passar um rolo compressor no edifício mimético, mas que tem nele ainda, nos séculos vindouros, um vigoroso adversário, que, não obstante a altura, tem uma queda lenta, embora inexorável, ainda que a filosofia tente evitar a desordem literária, sustentando os mecanismos de atribuição de vozes próprias aos diversos corpos.
No dizer de Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos rompem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada.
O rompimento das regras, a quebra das convenções acarreta novas oposições que marcam o texto literário: a oposição ao suporte mítico e histórico, bem como a dispensa do símbolo como referência, como a idéia de um sentido que se coloca atrás da intriga.
Uma vez ruído o prédio mimético, o que sustentará a edificação literária? Na falta da regra externa, deverá substituí-la a regra interior. Rancière aventa três possibilidades de afirmação da potência da obra de arte, que permanecem como “gracejos de comediantes e prefaciadores”: potência da individualidade de seu produtor, potência de sua totalidade fechada sobre si mesma e trazendo ela própria sua regra de unidade, ou a potência pura da linguagem, desviada de seus usos representativos e comunicativos e voltada para seu ser próprio.
É necessário considerar um novo fundamento agregado a essas possibilidades. Ao proclamar sua autonomia em relação ao edifício mimético, a literatura passa a se sustentar em uma heteronomia de outro gênero, “sua identificação com uma potência própria do pensamento, com um modo específico de presença do pensamento na matéria que é também heteronomia do pensamento”. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)
A physis que a tekhnè imitava e completava teve de ser substituída por uma metafísica de natureza diferente, que fosse para o estilo o que a physys era como modelo mimético, levando à absolutização da literatura. Rancière lembra, com Flaubert, que “o estilo é uma maneira absoluta de ver as coisas” (RANCIÈRE, 1996, p. 3), e absoluto pressupõe desvinculação. Desvinculação de quê?
Das formas de apresentação dos fenômenos e de ligação dos fenômenos que definem o mundo da representação. Para que a literatura afirme sua potência própria, não basta que ela abandone as formas e as hierarquias da mimesis. É preciso que abandone a metafísica da representação. É preciso que abandone a “natureza” que a funda: seus modos de apresentação dos indivíduos e as ligações entre os indivíduos; seus modos de causalidade e inferência; em suma, todo o seu regime de significação. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)

Considerando o sujeito escritor como o pai do discurso, e o personagem como seu refém, ou seja, aquele que não deveria ler nem participar da vida do escrito, mas que, para além de sua função ficcional, ainda seduz o filho do povo, Sancho, não estaria o próprio escritor se identificando com o personagem, transformando-se também no louco que cria o “próprio” da literatura, a transgressão, eliminando a paternidade reguladora das convenções? Não seria esta a forma de investigar “a subjetivação que liga a posição do escritor e do narrador à de seu refém” em As iniciais, de Bernardo Carvalho? Não é essa a maneira como “a” literatura se determina, “no jogo das transformações e das reviravoltas da fábula” (RANCIÈRE, 1995, p. 77)? O “próprio” da literatura seria, então, a reescrita do que já foi escrito. “É o puro desdobrar-se ao infinito das combinações que ela autoriza” (RANCIÈRE, 1995, p. 80). É o efeito suspensivo da literatura: a natureza literária de um texto está relacionada a uma historicidade que lhe confere a dramaturgia “das aventuras e dos imperativos da escrita” (RANCIÈRE, 1995, p. 97). A escrita tem sempre um tipo de déficit que está suspenso ao mito de outro escrito.
Numa posição clássica, o escritor onipotente cria seres submissos, o pai gera filhos, fazendo-se mestre de vida ou mestre de jogo; essa posição é exemplificada nas relações internas do romance As iniciais nas tentativas do personagem M., como escritor, de se tornar o senhor dos fatos e dos personagens. Nesse caso, o personagem é instrumento de reflexão sobre a busca da verdade, e a literatura se faz filosofia, postura com a qual o texto de Carvalho rompe.
Para Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos suprimem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada. A literatura não é então apenas a purificação da linguagem em seu interior, muito menos o engajamento impuro.
Em As iniciais, o narrador não se isola na solidão própria da linguagem, nem pretende atribuir aos corpos que ali se movimentam uma linguagem de questionamento ou de alegoria social. Pode-se atribuir a ele as palavras de Rancière a respeito de Flaubert:
Ele faz a aposta insensata de fazer falar a vida muda na língua de uma arte inteiramente transparente. Produz, em suma, aquele estado “neutro” da linguagem de que fala Blanchot, enfiando-se, não no interior da língua, porém na relação enigmática que a pureza do ideal literário mantém com as vidas mudas, ou seja, de fato, com a entrada democrática da escrita na vida de qualquer um e de qualquer vida na vida da escrita. (RANCIÈRE, 1995, p. 101)

A neutralidade reivindicada por Blanchot advém da relação de busca que o escritor mantém com o livro. O livro nunca está pronto; não é ele propriamente que exerce atração sobre aquele que escreve, mas a busca dele. O livro só importa na medida em que ele representa a busca do livro, independentemente dos gêneros e espécies. E é ela que conduz o escritor a neutralizar a escrita literária, em reduzi-la ao ponto neutro e impessoal da linguagem, o próprio da literatura:
(...) plutôt comme ce qui ne se découvre, ne se verifie ni ne se justifie jamais directement dont on ne s’approche qu’en s’en détournant, qu’on ne saisit que là où l’on va au-delà, par une recherche qui ne doit nullement se préoccuper de la littérature, de ce quélle est “essentiellement”, mais qui se préoccupe au contraire de la réduire, de la neutraliser ou, plus exactement, de descendre, par un mouvement qui finalement lui échappe et la néglige, jusqu’`a un point où ne semble parler que la neutralité impersonnelle. (BLANCHOT, 1959, p. 272)

Em As iniciais, as leis que regem o texto são as leis do que Rancière chama “esse mundo de baixo, esse mundo molecular, in-determinado, in-individualizado, anterior à representação, anterior ao princípio de razão” (RANCIÈRE, 1996, p. 4). Aqui, a narração clássica é esvaziada, transformada em blocos de textos que se superpõem e se entremeiam, é a literatura escondendo seu trabalho ao mesmo tempo em que o realiza.
Coloca-se em primeiro lugar a questão da estrutura do texto em si e sua relação com o que o autor chamou romance. Que lugar ocupa o romance na literatura, afinal? Conforme Walter Benjamin, o surgimento do romance decreta a morte da narrativa, porque o romance é livro, é página impressa, seu leitor é solitário, “ele nem procede da tradição oral nem a alimenta” (BENJAMIN, 1994, p. 201). O romance é, portanto, um gênero disperso, transgressor, que não contém verdades, que não edifica, nem forma, não havendo exceção nem para o Bindungsroman, o romance de formação:
A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1994, p. 201)

Rancière considera o romance, por motivos parecidos com os de Benjamin, a escrita fundadora da democracia, a partir do momento em que a letra desincorporada inicia sua trajetória errante, tornando-se a escrita de todos e de qualquer um. À errância da letra em Rancière corresponde a dispersão de Blanchot, mas com uma diferença: o romance, como gênero, em si, é manso, uma espécie de cordeiro em pele de lobo:
Le roman est souvent dit monstrueux, mais, à quelques exceptions prés, c’est un monstre bien éduqué et trés domestiqué. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

A expressão “monstro bem educado e domesticado” refere-se aos romances em geral, que ainda se escondem na “discreta segurança de suas convenções” e na “riqueza de seu conteúdo humanista”.
Não é a existência do gênero, com todas as suas liberdades e audácias aparentes, mas que mantém convenções internas que lhe garantem a sobrevida, que irá aproximá-lo do próprio da literatura, e sim a atitude de busca atormentada daqueles que produzem a escrita e que os conduz ao espaço “fechado, separado e sagrado, que é o espaço literário”:
Ce n’est pas la diversité, la fantasie et l’anarchie des essais qui font de la littérature un monde dispersé. Il faut s’exprimer autrement et dire: l’éxperience de la littérature est l’épreuve même de la dispersion, elle est l’approche de ce qui échappe à l’unité, expérience de ce qui est sans entente, sans accord, sans droit — l’erreur et le dehors, l’insaisissable et l’irrégulier. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

Vamos examinar os componentes de errância e dispersão em As iniciais. De início, percebe-se que não há aqui uma prevalência de qualquer um dos elementos tradicionais da narrativa que o enquadre em alguma tipologia clássica do romance: ação, personagem (indivíduo ou grupo social), espaço, tempo. Nem nas categorias que compõem a evolução do gênero: romance fechado ou aberto, Bindungsroman, romance polifônico, nouveau roman.
Observam-se aqui características citadas por Antoine Compagnon (COMPAGNON, 1999, p. 214) como sendo próprias do que seria o romance pós-moderno: o sentido é indeterminado, a narrativa se questiona a si mesma, autor/narrador/personagens são indefinidos e não mostram o rosto, os bastidores da narração aparecem em forma de um “laboratório” em que um escritor (M.) se exercita, o leitor participa de um jogo que não parece conduzir a nenhum lugar, bem como as demais vozes e corpos presentes. E é a presença dessas características que culminam no que Walter Benjamin considera a crise do romance, num sentido pejorativo, no qual o texto é interioridade pura, não dialoga com o mundo exterior, tornando-se uma atitude épica a contrariu sensu. Mas é nesse “defeito” puramente escritural que a posição de Benjamin se aproxima à de Rancière e Blanchot, com a diferença que a odiosa transgressão, para o primeiro, é a própria condição de existência de literatura para Rancière, e constitui para Blanchot a perda de unidade necessária para que a literatura exista em seu “ponto zero”.
É oportuno lembrar que Michel Foucault, comentando o pensamento de Maurice Blanchot em The thought from outside, afirma que a interioridade pura, deepest interiority, é uma categoria do pensamento, da filosofia, e não do discurso literário. Este leva ao exterior, com a supressão do sujeito falante:
In fact, the event that gave rise to what we call “literature” in the strict sense is only superficially an interiorization; it is far more a question of a passage to the “outside”: language escapes the mode of being of discourse — in other words the dinasty of representation — and literary speech develops from itself, forming a network in which each point is distinct, distant from even its closest neighbors, and has a position in relation to every other point in a space that simultaneously holds and separates them all. (FOUCAULT, 1987, p. 12)

O que Benjamin chama, portanto, interioridade pura, no sentido de perda de ligação com o mundo exterior, será tratado aqui como exterioridade, no sentido dado por Blanchot, do discurso que se desenvolve a partir de si mesmo, rumo ao espaço neutro, que tira da literatura qualquer caráter de mitologia ou retórica.
O texto não se organiza como uma experiência vivida num sistema global de significações, mas caminha para a fragmentação e a dispersão. O próprio título do romance, e a utilização de iniciais para designar pessoas e lugares enfatizam a indeterminação das referências dos enunciados, assim como a identidade do enunciador não se determina jamais, cada texto tem sua existência suspensa aos demais, formando um mosaico textual e humano absolutamente irregular, um patchwork, uma rede de textos que compõem a escrita.
O que vamos chamar texto primeiro mostra um narrador em primeira pessoa, um jornalista de folga por falta de acontecimentos. Eis aí uma referência inicial ao “mundo exterior”, feita de maneira absolutamente imprecisa. Não existe nenhuma verdade que mereça a isenção documental do jornalista. O último acontecimento havia sido a decisão do presidente (de onde?), declarada em entrevista coletiva, de achar que seu país ia entrar em guerra. A voz narrativa considera essa notícia “a última coisa importante de que eu tivera notícia”. É evidente, entretanto, que essa notícia de uma possível participação em uma guerra no outro lado do mundo não tinha importância nenhuma, tudo é um grande vazio.
Esse texto principal pretende ser autobiográfico, mas, segundo a voz narrativa, é um texto desordenado, que seria taxado de obsceno por C., que o uso de iniciais é imitação (cômica? servil? contra-imitação?) de M. (um modelo?), “que isto não passa de um pastiche, de uma paródia das páginas e mais páginas do diário que ele escrevia incessantemente na sacristia”. A voz narrativa renuncia a sua vida e a seu passado para eternizar a conversação, e isso significa separar-se de C., seu antigo amante, e retomar a escrita de M., o que seria considerado por C. uma traição, se ele conhecesse o texto. Traição tanto a C. quanto a M.: a este, pela revelação de aspectos segredados em confiança; àquele, porque a escrita o substituiu no mundo do narrador.
A partir do momento em que o narrador e seus demais personagens pisam no mosteiro em que M. mora, e em cuja sacristia ele escreve, a sua existência fica inteiramente condicionada ao seu diário. É fundamental transcrever aqui o trecho em que se problematizam as relações entre vida, morte e escrita, e as relações entre o texto primeiro e o diário de M.:
Mas há uma coincidência além dessa simbiose com C. que explica em parte, e por um outro ângulo, esse sentimento e essa confusão: é que M. e G. morreram ao mesmo tempo que minha vida acabou também. Pelo menos a vida como eu a tinha imaginado. Sem nunca terem sido próximos, parecem ter me deixado sozinho ao morrerem. Outra coisa é que somente após a morte de M. publiquei o meu primeiro livro, só depois da morte ter interrompido meu diário interminável é que passei a escrever de forma sistemática; e às vezes, quando estou menos seguro de mim mesmo, é como se algum tipo de elo sobrenatural nos unisse, um pacto sinistro, como se os meus livros fossem a herança que ele tivesse me deixado, ao preço de perder a minha própria vida também. A publicação do primeiro, por exemplo, coincidiu com meu reencontro com H. em P., bem depois da morte de G., quando ela me revelou tudo sobre C.: que minha vida já tinha acabado e eu era o último a saber. Foi ela quem, um belo dia, quando eu já não morava mais em P. e estava de passagem, tomou a iniciativa de marcar um encontro comigo, na casa dela, alegando que sentira que eu estava com sede de “informações”, para me dizer que C. não só vivia com outro havia anos (...), mas estava apaixonado, cego, a ponto de escrever um livro com as histórias que o outro lhe narrava oralmente e publicá-lo como se tivesse sido escrito de fato pelo namorado, alcançando um certo sucesso de crítica e público. (CARVALHO, 1999, pp. 17;18)

Os limites dos discursos — o texto primeiro e o diário — que se entrelaçam e se superpõem, não são conhecidos, são de impossível mapeamento, mas podem ser perseguidos no sentido de se investigarem suas existências opostas e complementares. Há, evidentemente, outras escritas que serão examinadas adiante.
C. é um ex-amante do dono da voz narrativa, com o qual estava fundido e confundido, a mesma voz, a simbiose. A morte de M. e G. (marido de H.) determinam o término da vida da voz narrativa, sua solidão. O diário interminável de M. não terminou com sua morte porque foi retomado pelo jornalista, que sacrifica sua vida pela herança da escritura. H., a viúva de G., acabou sendo a porta-voz da morte do jornalista, de sua ruptura com seu duplo, C., que desenvolveu sua própria escrita dissociada da dele. A voz narrativa vê este texto como vingança, como revolta contra a herança de M., de ser obrigado a dar-lhe continuidade, uma maneira de ironizar sua sina, revelando-a, mostrando que tem consciência dela. Existe aqui uma relação entre escrita e insanidade, entre escrita e morte, entre escrita e desastre, que conduzem à parole neutre de que fala Blanchot. É o escritor que se sacrifica por sua obra, que se torna outro, que se torna ninguém para ir até o fim.
Onde está o fim? Onde está essa morte que é a esperança da linguagem? Mas a linguagem é a vida que carrega a morte e nela se mantém. (BLANCHOT, 1997, p.323)

A linguagem do narrador de As iniciais só é possível com a morte de M., e com a “morte” do próprio narrador, ou a morte da vida que ele imaginava ser possível ou cara. Ele está condenado ao que Blanchot se refere como a “maldição dos renascimentos”: o dono da voz narrativa de As iniciais vive mal e morre mal, e está condenado a reviver, tantas quantas forem as vezes necessárias para transformá-lo num bem-aventurado, um homem realmente morto. Parece-nos, entretanto, que a busca dele não vai ter um final, e o ciclo da maldição vai-se repetir indefinidamente.
A própria paixão por C., que tem aqui um termo mortal, nasceu da condição dele, C., de personagem (no mundo criado por M.), narrador e autor (confundidos num livro escrito pelo próprio C.). Sendo assim, M. deu C. de presente ao jornalista, e depois lho tirou ao morrer. C. conheceu o da voz narrativa logo após a morte de um amigo filósofo, assim como conheceu o novo namorado após a morte de M., e, conseqüentemente, do jornalista também. A herança mortal, insana, é também uma regra diabólica concebida pelos poderes divinos de M. Diante disso, este pastiche representa uma “reação, uma espécie de provocação” (p. 19), não mais uma continuidade apenas. O texto que nega o texto.
Para investigarmos a extensão dessa reação, examinemos primeiramente as características da escrita de M. Vamos partir do pressuposto de que o diário de M. estabelece uma relação ordenada entre a ordem do discurso e a das condições, construindo um texto representante das belas-letras, na concepção de Rancière, fundado na estética da representação, um texto escrito na sacristia, lugar onde se guardam os paramentos e demais objetos do culto. Vamos chamá-lo de contra-texto, o elemento de contraste com o texto primeiro.
Vejamos a postura do produtor do texto, M. A voz narrativa da escrita primeira atribui a ele poderes divinos; ele exerce sobre seus amigos e sobre o mundo à sua volta um fascínio irresistível, recriando e redefinindo o mundo, dando-lhe “uma importância quase mitológica” (p. 26). O escritor é, então, senhor do mito e senhor da mística, profeta e pai de seu mundo de letras. Ele organiza as coisas e pessoas, em sua “mistificação do mundo”, que em suas mãos ganhavam uma “aura mítica” (p. 34).
Episódio significativo dessa postura onipotente do escritor é o efeito que nele produziu a frase do administrador de grandes fortunas:
A religião no melhor e no pior dos casos é apenas um louvor de si mesmo, já que não passa de uma adoração do criador pela criatura. (p. 33)

M. ficou ressentidíssimo com o discurso do administrador, porque viu nele uma alegoria óbvia: a religião é a literatura, o Criador é o escritor, e o escritor é ele, M. O administrador é visto então pelo escritor como um personagem rebelde, que se libertou das rédeas estabelecidas. Ele deve ser, então, punido com o silêncio: o escritor não lhe dirige mais a palavra durante o jantar, e corta o personagem de seu diário:
Como se não existisse, como se o administrador não tivesse nem nascido, seu nome não aparece nem uma única vez em todas as páginas do diário em que M. descreve aquele jantar. (p. 35)

Além de introduzir no espetáculo o perigo da rebelião dos personagens, evidenciando sua independência de opinião e quebrando a hierarquia dos representados, a observação do administrador “reduzia a obra de M., desmontando-a, ao projeto convencional de criação de uma religião” (p. 33), em que ele “tentava usurpar de um Criador exterior e superior o poder da criação” (p. 34).
Poder de criação é poder de conquista, é apoderar-se da realidade e transformá-la, negando-a, e atribuindo-lhe um sentido valendo-se das convenções de representação. Vimos com Blanchot que a presença excessiva do pai afasta a obra de sua absolutização. E essa ânsia de ocupar o espaço deixado vazio pela ausência dos deuses é enganadora:
Ambition étrangement trompeuse. Illusion qui lui fait croire qu’il sera devenu divin, s’il se charge de la fonction la moins divine du Dieu, celle qui n’est pas sacrée, qui fait de Dieu le travailleur des six jours, le démiurge, le “bon à tout faire”. Illusion qui, de plus, voile le vide sur lequel l’art doit se refermer, qu’il doit d’une certaine manière préserver, comme si cette absence était sa vérité profonde, la forme sous laquelle il lui appatient de se rendre présent lui-même dans son essence propre. (BLANCHOT, 1999, pp. 290-291)

Rancière relaciona esse escritor onipotente ao mestre de representação ou mestre de jogo, que dispõe as marionetes no palco, ou as peças no tablado, que faz de seu personagem seu refém, o fraco de espírito:
M., por incrível que pareça, também se manteve calado de início, apenas observando, como se já tivesse distribuído os papéis e agora soltasse as rédeas dos personagens para ver até onde eles eram capazes de ir, mas pronto para retomá-las ao menor sinal de que as coisas estivessem saindo do seu controle.(p. 32)

O espetáculo da escrita, promovido por M., é reforçado pelas relações do escritor com o cenário que ele mesmo monta, encenando, além de outros, o espetáculo das velas e o dos fogos de artifício. No último caso, verificamos mais uma rebelião de personagem, o ex-campeão de tênis, irmão de A., que grita antes da hora, assumindo clandestinamente o comando do evento, ameaçando terrivelmente a hegemonia do escritor e, naturalmente estragando o efeito pré-estabelecido, desorganizando o que estava organizado, “fechando a cena com a sua assinatura aparentemente desastrada” (p. 54).
Os rojões foram disparados, mas de maneira desordenada, e não houve registro do espetáculo, porque a câmara de vídeo e a máquina fotográfica não estavam prontas. Estava arruinada a representação, o grito fora da hora convencionada equivale ao ataque de D. Quixote às marionetes de mestre Pedro, que faz ruir o edifício mimético, na última cena da noite.
Sai de cena o espetáculo de M., entra outro texto convencional, o “roman à clef” da herdeira dos laticínios, que pretendia expor a banda podre da alta sociedade e levar a seus leitores uma lição moral, “num nível mais elevado, espiritual”. O efeito produzido pela referência ao romance, que imitava o estilo de M., foi desastroso, “a herdeira era uma idiota e seu romance a sua mais perfeita expressão” (p. 61). M. jamais poderia permitir que qualquer texto fosse exaltado em sua presença, além do seu próprio. O texto da herdeira dos laticínios não tem longa duração na cena do romance, e é retirado por inconsistência própria e pela ação de M., o todo-poderoso que acaba sem poder.
Além desses textos, o texto primeiro reúne uma longa seqüência de outras escritas: o livro de C., do qual ele nunca escreveu uma linha, a revista editada por T., a receita de bolo, os apontamentos para a aula de matemática, a narrativa minúscula do próprio narrador sobre a traição involuntária, as sinopses dos futuros romances do autor, a carta de amor que o narrador escreve a C. sem conhecê-lo, o conto em que A. é um monstro, a entrevista com o mágico e com o pintor suíço, a história do milionário escocês que salvou o dançarino japonês de butô, o romance de R.M., inventor da “fabulação minguante” etc. O narrador cria sua heresia a partir do texto de M., e depois ele tem a infelicidade de ser invadido por esse e outros textos. A literatura se afirma através dessa fábula privilegiada que constitui a demolição do edifício da representação.
O texto primeiro se contrapõe à escrita de M., embora seja uma herança dele e de todos os demais textos que permeiam a escrita. Nas relações entre eles, e na recepção do narrador, esses textos compõem um mosaico desprovido das características miméticas dos textos originais. E o que confere ao texto como um todo esse afastamento da dinastia da representação? Vamos lembrar então, com Blanchot, a questão da passagem para o “exterior”, o desaparecimento do sujeito, o desdobramento do discurso a partir de si mesmo, a linguagem “getting as far away from itself as possible” (FOUCAULT, 1987, p. 12).
O narrador afirma que este texto é cópia, pastiche, paródia do texto de M., mas ao mesmo tempo ele trai a confiança do escritor, ele apresenta personagens que foram riscados do romance de M., registra diálogos que não aparecem no texto antecessor, o próprio narrador e C. sequer tinham sido mencionados no diário, nos apontamentos daquele dia. O próprio narrador admite que ele nunca iria fazer “nada nem ao menos parecido com o que escrevia M.”. A própria inicial do narrador só aparece duas vezes em milhares de páginas no diário de M. Há, sim, um desdobramento de textos que configuram a metamorfose dos textos em escrita órfã. A estranha relação do narrador com C. é exemplo desse desdobramento. Ele conheceu C. graças ao mundo que M. criou nos romances, em que o amigo C. vira personagem. Essa fantasia construída na leitura de M. ensejou a escrita da “carta de amor, desvairada” (p. 19), ao ler um livro de sua autoria, e sua paixão por C. ao ler um livro que ele havia escrito, confundindo autor com narrador. A literatura aproximou-o de C., e posteriormente o tirou dele.
Coloca-se aqui a questão da errância do narrador em primeira pessoa, que se apresenta como aquele que faz asserções, que relata algo que se supõe tenha sido vivenciado por ele. Nas relações ordenadas entre os modos de discurso e os modos de recepção o enunciador elege um pai, o eu da narração, que se anuncia como diferente do autor, apresenta as personagens do relato como fictícias, apresenta seu mundo e conduz a ação. Essa a posição ideal do narrador, que aqui se desfaz. Existe um deslocamento entre o narrador tradicional do edifício mimético e o narrador do texto primeiro de As iniciais. Este não se coloca como todo-poderoso, como organizador do espetáculo, como condutor dos personagens e da ação, e chega a afirmar que “por mais que tentasse imitá-lo nunca teria autoridade suficiente para converter aquelas pessoas em meus personagens" (p. 27). Ao contrário, ele é sempre claudicante, indeciso, sua fala é pontilhada por expressões como “parece que só eu não entendi”, “só eu continuei a acreditar”, “não é implausível”, “óbvia, menos para mim” etc. Ele é o crédulo, o que não vê o óbvio, o que não tem malícia, o que duvida de si o tempo todo, o ingênuo. O narrador se desautoriza a si mesmo, e não realiza sua função.
Ele lida com o imponderável e com a morte, sofrendo uma desincorporação ou desnaturação que o transforma em escritor pela morte, pela perda, pelo terrível fascínio do livro que é sua pena de morte. Enfrentamento da morte no nascimento da escrita, como queria Blanchot: o escritor só vale por seu poder de ausência da obra. A morte de M. acaba sendo o fim da vida do narrador para que ele dê continuidade à literatura, perdendo quem mais amava.
Além dos textos que se intrometem e fogem de sua vida, o herói se depara com a mensagem misteriosa das iniciais VMDS na caixinha de madeira entregue a ele pelo Zulu, e que acaba conduzindo-o a essa busca insolúvel. Ele é inseguro até na segurança:
Não ver que havia ali uma mensagem era querer tapar o sol com a peneira, eu pensei de início, e essa suposição, embora um tanto incerta, serviu apenas de base para outras bem mais. (p. 62)

Não querer tapar o sol com a peneira sugere certeza, que imediatamente se transforma em suposição e em seguida em incerteza. É a errância do significado, do referente, não apenas do pai da letra; é a orfandade do significado. É o texto que chega ao herói, misterioso, a letra errante, sem pai, que circula sem destino. Tanto o remetente quanto o destinatário podiam ser várias pessoas, mas afinal o narrador assume ser o destinatário, assume uma certa mensagem e decide que deve ir à casa de A. É a mensagem entalhada a canivete, inscrita na madeira, que o conduz a um novo espetáculo que nada esclarece, a cena da loucura da herdeira dos laticínios, entre gritos e murmúrios. A cena dos gritos da herdeira admitia várias possibilidades sobre o remetente da mensagem, sobre o destinatário, sobre a mensagem em si, sobre a verdade do que acontecia, ou de sua teatralidade, da qual o narrador seria o único espectador.
Muitos anos depois, o narrador se lembra daquela noite como “uma das noites mais perturbadoras de minha vida” (p. 82), um jantar à luz das estrelas, como outro qualquer, porém inesquecível, uma situação confusa em que ele não consegue determinar nem o remetente nem o destinatário da mensagem. Um discurso sem conclusão, sem solução, a entrada democrática da escrita na vida do narrador, com seus mistérios e indagações, sua busca de sentido na ausência deste, a perturbação da espera de resposta ao mistério das iniciais. É a fábula privilegiada daquele que teve a infelicidade de achar um escrito misterioso, que não conduz a nenhuma resolução, inscrevendo-o num círculo sem fim de busca da escrita.
A segunda parte do romance é o que poderíamos chamar de segundo ciclo de peregrinação do narrador em sua busca. O cenário é uma mansão em cujos jardins desenrola-se uma festa. A primeira grande surpresa e perturbação do narrador é a presença de D. (assim como, na primeira parte, A. o havia impressionado). A presença de D., e a crise econômica, supõe-se, foram as causas do desmaio do narrador.
E as histórias se sucedem. A moça sobrinha da anfitriã conta ao narrador sua versão da história de D., a qual lhe havia sido contada por L., aos sussurros, roçando a orelha, uma história muito diferente do que dizem por aí. L., o sedutor que gosta de meninas, diz à sobrinha da anfitriã que D. é o assassino de um milionário que usa nome falso, e que tem o costume de falsificar documentos históricos de fatos que nunca aconteceram. Pela história oficial, D. é o maior pintor de paisagens do final do século XX, que fazia sua originalidade pelo anacronismo. Sua busca da mais bela paisagem do mundo o havia levado à loucura, até que, de tanto reproduzir a natureza, acabou pintando o real representado.
Num determinado momento de seu depoimento, a sobrinha da anfitriã acusa o narrador de desmemoriado, aquele que não tem condição de reconstituir o passado; ele não pode, portanto, ser narrador, pois não tem nem o poder de transformação e nem de construção.
Pela história de L., passada ao narrador pela sobrinha da anfitriã, D. era amigo de um advogado que administrava a fortuna de um milionário que sumiu sem deixar vestígio. Quando o milionário voltou para cobrar sua fortuna, o advogado não teve como devolvê-la intacta, daí o possível pacto com D. para eliminar o milionário.
Outra versão sobre D. era a de que ele tinha vindo ali por causa de uma mulher condenada por uma doença incurável e rara. Por medo da morte, D. a abandona, e milagrosamente ela se restabelece e arranja outro homem.
Entremeiam-se outras histórias e textos, como o poeminha de L., pura filosofia de botequim, vaticinando a morte de todos os viventes e a história contada por um rapaz a uma moça que fazia uh-uh, envolvendo D. também. A moça, a quem o contador da história pretendia seduzir, afastou-se dele ao ouvir o final, que era a única parte verdadeira da história. Há ainda a história da antropóloga, presa e torturada por engano, sobre os índios da tribo I.
Ao final da tarde, todos se afastam, e abandonam os textos ao vento, o papel do poema de L., o esquema de amor do rapaz à moça que fazia uh-uh, o papel amassado em que a antropóloga fizera uma confusão de iniciais para explicar o caso dos índios I. Tudo é sugestão, invenção, detalhes não são lembrados, o narrador nunca obtinha respostas quando perguntava coisas específicas como datas, nomes ou lugares.
O segundo ciclo da busca tem semelhanças com o primeiro: D. poderia ser A., o administrador de grandes fortunas poderia ser o advogado, a moça com a doença incurável poderia ser a herdeira de laticínios, o ator brasileiro reaparece com sua voz “estridente e desgraçada”, falando sobre o fim do capitalismo em meio a tiradas literárias e científicas.
Após o discurso sobre o fim do capitalismo, o câncer e o universo, o ator resolve encenar com a anfitriã um texto de sua autoria, um diálogo entre Santa F. e Deus sobre o suicídio.
O encontro do narrador com o ator brasileiro se dá quando ele abandona o jardim onde o vento varria textos e demais objetos. Andando pelo corredor largo e branco, ele passa pelo ator de voz estridente e segue sua busca, atraído pelos textos, até que divisa alguém, que, pela voz, ele julgava ser D., falando para um grupo de pessoas. Parecia ser a metamorfose de A. em D., o único que poderia ter a chave do enigma das iniciais. D. contava a história de um aborígene australiano que tomava remédios para sobreviver.
Na primeira parte, o contra-texto que confirma o texto; na segunda, os textos (de sedução e de indeterminação) que não funcionam e acabam sendo varridos pelo vento. O final é o eterno insolúvel, é feita a pergunta que devia ser feita, a única pergunta pertinente no meio de tanta tolice. E a história recomeça, “Em agosto de 19..”, a mesma história que vaga errante, a letra sem pai, os loucos da letra.
A pergunta, afinal, foi feita. Mas e a resposta? Terá o narrador salvado sua Eurídice resistindo a olhar seu rosto, ou teria posto tudo a perder captando a visão maravilhosa de sua imagem?
Eis aí as heresias da letra sem corpo, sua manifestação em corpos deslocados, metamorfoseados, tornados neutros e imprecisos, discursos sem afirmação, sem solução e sem conclusão, independentes de qualquer solo nativo, espíritos errantes no próprio espaço literário, que se desvincula de mitos, símbolos e referências, que se absolutiza.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLIEZ, Éric. Da impossibilidade da fenomenologia. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 100. O trecho citado por Alliez é uma intervenção de J. Rancière num encontro organizado pelo Colégio Internacional de Filosofia por ocasião da edição de L’Être et l’événement, publicada em Le Cahier du Collège International de Philosophie, n° 8, Éditions Osiris, 1989, p.211.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 323.
BLANCHOT, Maurice. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959, p. 272.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1999, p. 293.
CARVALHO, Bernardo. As iniciais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 114..
FOUCAULT, Michel, and BLANCHOT, Maurice. Maurice Blanchot: the thought from outside / Michel Foucault as I imagine him. N. York: Zone Books, 1987, p. 12.
PLATO. Phaedrus. Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 1991. Translated by Benjamin Jowett, p. 125.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
RANCIÈRE, Jacques. “Deleuze e a literatura”, p. 3. Texto apresentado nos “Encontros Internacionais Gilles Deleuze, no Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, na UERJ, nos dias 10, 11 e 12 de junho de 1996. Tradução de Ana Lúcia Oliveira.