CONVERSANDO AOS INFINITOS UM RETRATO DE CAVALO
Cid Ottoni Bylaardt
Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará
A instigante indeterminação da escritura anuncia-se já na epígrafe:
O que um dia vou saber,
não sabendo eu já sabia.
Da Espereza
(ROSA, 2001, p. 188)
O pequeno texto de abertura lembra o saber da escritura de Rosa, a escritura da terceira margem, a escritura da outra margem de Roland Barthes, o saber da escritura segundo o semiólogo francês. Esse é um saber que não se fixa, que não se sabe, o que um dia será conhecido paradoxalmente já se sabia. É o saber de quem escreve, e também o de quem lê. Essa é a escritura rosiana, sua linguagem poética, cifrada, ambígua. Esse é o saber anunciado no dístico, o saber da "espereza": espera desejante do que já se sabe e nunca se soube, da verdade literária que, revelando-se a todo o tempo, não se revela.
A epígrafe envia a outra possibilidade: a perplexidade de Bio, o agouro. O terrível retrato provoca sentimentos contraditórios: ódio, fascínio, desconfiança, um incômodo indescritível. O presságio de Bio lhe dizia que algo de bom não adviria daquele retrato.
Temos, portanto, um retrato: escrita, representação. Temos também uma narrativa, escrita do retrato, representação da representação.
Para Bio, aquele retrato era de uma tristeza incalculável: “setenta-e-sete vezes milmente” (p. 188), com todos os sortilégios que o sete e seus múltiplos podem proporcionar. Retratar o cavalo foi ato autoritário, arrogante, como roubar ao dono da faca a bainha. O cavalo era propriedade de Bio, seu legítimo possuidor; o mesmo não se podia dizer do retrato, “o trem alheio, difugido” (p. 188), imagem que se arrancava do ser e passava a existir como duplo inconveniente do querido retratado. Sem dúvida, a foto extrai do objeto aquele momento único, que se flagra e imediatamente morre. Para completar a inadequação, a representação de uma moça, a que namorava o patrão, abraçada ao pescoço do seu cavalo, moça urbana a posar de fazendeira.
Pior do que ser a duplicação inexata e incômoda, a figura certo tinha roubado ao objeto representado algo de sua virtude, de sua integridade, e esse furto, parente da mentira, parecia trazer a contraparte do azar, algo de estranho pairava sobre a reprodução figurada. “Ele não podia impedir que aquilo já tivesse acontecido” (p. 188). A possibilidade de reverter, rever, revisar inexiste, aquele é o momento único, sem precedente nem sucessor, que a fotografia reproduz ao infinito. Eis o incômodo. Nas palavras de Barthes, em suas reflexões sobre a fotografia, a constatação:
Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a foto), em suma a Tique, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável. (BARTHES, 1984, p. 13)
Além da irreversibilidade do momento, incômodo adicional é a semelhança com o referente. Bio sabe que a foto não é o cavalo, por mais que se afigure seu duplo tautológico, sua similitude desconcertante. Por mais que a redundância intransigente do retrato lhe dê a condição de cachimbo reconhecido, há uma voz sábia que diz a Bio: Isso não é um cavalo. O referente está ali, “alvo no meio dos verdes que pastando” (p. 188), em sua real beleza, mesmo quando essa realeza é maculada por algum defeito que o torna algo “declinado entortado” (p. 189). Defeituoso mas vivo, cavalo verdadeiro, sem mentira. O animal e sua reprodução se comparam nas dúvidas: “Vistoso mais que no retrato, ou menos, ou tanto? Era muito um cavalo”. O que os distingue, portanto, não é da ordem da beleza, Bio não sabe dizer quem é mais bonito, o cavalo ou a foto, embora sua relação com aquele seja de amor e com esta de desconfiança, para não intensificar o sentimento por ora. A diferença maior está na posse: o cavalo é seu, propriedade inquestionável, o retrato não.
A desconfiança do vaqueiro, convenhamos, não exclui uma espécie de atração irresistível. Bio precisa ir à sala de Iô Williãozinho ver seu bicho reproduzido. O retrato era “moderno, aumentado, nas veras cores, mandado rematar no estrangeiro por alto preço, guarnecido de moldura” (p. 189). As condições de fabricação e acabamento da foto sugerem refinamento, luxo, dispêndio, tudo feito com método.
Essa “regrada representação”, o realce das luzes, a alvura do figurado, sua pose de prepotência a desafiar o mundo com o olhar soberbo, davam-lhe uma aura de arte clássica, em seu equilíbrio, harmonia, idealização do belo que se embeleza e lhe dá um aspecto gigantesco: “cavalo de terrível alma” (p. 189).
A representação lingüística da representação figurada contribui para desfigurar mais o objeto sortílego, pondo em seu lugar o ser de maior grandeza, hodierno, com ar de coisa nova ainda não completamente assimilada, mas que de alguma forma obscurece o referente, fora de nosso tempo, assim como fora de nosso espaço, por devidamente emoldurado no exterior, não com moldura qualquer, mas rico caixilho que enquadra e dá fim e acabamento a uma obra de valor. Está lá, rica e em paz. O que chega a incomodar é que a imagem se apresenta em “veras cores”, não certamente as cores que imitam o real, mas as que se podem ver como mais verdadeiras, mais vivas do que o próprio real, de tão impressionantes e definitivas, o que se confirma adiante nas brincadeiras de mau gosto do fazendeiro, para quem o retrato tem muito mais brilho do que o cavalo real. As imagens, do cavalo e da moça, eternizar-se-ão, sobrevivendo aos seres em remissão, desfeitos segundo sua imagem. Evoca-se novamente a alma terrível do que não tem alma, mas que a impõe ao espectador, considerando-se a obviedade de que o ponto de vista da narrativa, embora de terceira, é o de Bio, são seus os sentimentos despertados pelo confronto das situações, sentimentos seus que se amalgamam aos do leitor, todos espectadores do quadro e da escrita.
Bela, a reprodução? Sim, sem dúvida, mas não era ela “uma outra sombra, em falsas claridades?” (p. 189). Aí a dúvida do vaqueiro, de admirar a beleza da foto, mas não reconhecer nela a autenticidade de seu animal, uma verdade falsa que se exibe naquele belo parado e acabado, imagem estabelecida pelas regras do bem figurar e do bem arrematar na rica moldura. Quietude que inquieta Bio. Sobre a imagem um vidro que espelha as claridades, a bela descrição, todas as coisas em seu lugar, nada sobra e nada falta, tudo encaixadinho, “sem perder espaço” (p. 189), a bela figura do cavalo no centro. E na pose, olhando para a câmara e vendo “alguma autoridade maior de respeito” (p. 189) que preside toda a cena e torna seu cavalo um monumento universal — ele, Bio, excluído de tal grandeza.
Possivelmente excluído, mas certamente fascinado. Podia ser aquela figura a sombra falsa, a imitação desigual engrandecedora, mas havia nela a atração irresistível, só não suplicava explicitamente a posse do retrato por guardar a hierarquia. Iô Wi era o patrão. “Bio olhava-o com instância, num sussurro soletrante” (p. 189). O locutor resume no abstrato “instância” os sentimentos contraditórios de Bio em relação ao quadro. A palavra sugere fidelidade em sua solicitação insistente e involuntária, impossibilidade de se separar da imagem que em si é separação, aquilo que o aparta do ser que pasta em segurança, mas que é da mesma forma indefinível reencontro. Sugere ainda o empolgante contato que se impõe ao expectador, imagem que lhe captura o olhar na iminência do acontecimento notável. Outra prova do fascínio é o “sussurro soletrante”, que atesta a impossibilidade de atribuir sentido àquilo e, conseqüentemente, testemunhá-lo analiticamente, restando o balbucio do que não se revela. Bio não consegue ver ali seu cavalo, mas um ser que exerce sobre ele um fascínio poderoso, tornando a possibilidade de ver o seu objeto querido em impossibilidade de definir o acontecimento. Conforme diz Blanchot em suas reflexões sobre a imagem e a literatura,
Le regard trouve ainsi dans ce qui le rend possible la puissance qui le neutralise, qui ne le suspend ni ne l’arrête, mais au contraire l’empêche d’en jamais finir, le coupe de tout commencement, fait de lui un lueur neutre égarée qui ne s’éteint pas, qui n’éclaire pas, le cercle, refermé sur soi, du regard. (BLANCHOT, 1999, p. 29)
O olhar de Bio, na perspectiva blanchotiana, é “le regard de l’incessant et de l’interminable” (BLANCHOT, 1999, p. 29) . Assim, ele não pode ver ali o seu cavalo, o objeto real, verdadeiro, mas uma coisa confusa em sua bela definição. Confusa porque, não sendo seu animal, não pode ser tão querida quanto ele; portanto, pela lei da fidelidade do sentimento não poderia ser tão bela quanto ele; no entanto, provoca-o, insulta-o, deixa-o sem palavras, sem explicações. Aquele ali não é o seu cavalo, mas a semelhança é tão próxima em sua diferença que essa imagem só pode provocar aquela sensação incômoda e indescritível de descrença e arrebatamento. A sensação não é boa nem é ruim, não dá a conhecer nem elimina o conhecimento, não edifica nem arruína; não obstante, resta o fascínio, que não se define por contrários ou sua ausência.
Não custa ver no retrato do cavalo e no “Retrato de cavalo” a imagem da própria escritura, o fascínio do desconforto, do que não se dá a entender, não se explica nesse “eu” de nenhum ou de muitos rostos. Não há permanência, o agora é um tempo da ausência de tempo, o aqui é o aí sem lugar nem repouso. A escrita suspende-se e aponta para a dispersão.
No ensaio “Les deux versions de l’imaginaire” (1999, p. 341), Maurice Blanchot faz considerações sobre a imagem e o imaginário que podem ajudar-nos a pensar no dilema de Bio e na escritura de Rosa. Há um movimento da imagem que leva à felicidade, ao apaziguamento; essa é a humanização do imaginário, própria à arte clássica, onde encontramos “l’eternité transparente de l’irréel” (1999, p. 342) . No fundo da imagem, porém, reside o “lourde sommeil du trépas” (1999, p. 342) , que nos traz os sonhos, e com eles a indeterminação da escritura, da figura, que não propicia mais um chão firme para se pisar, uma luz que traria ao pensamento a lógica do mundo. Nesse sentido, o retrato do cavalo faz lembrar o que Blanchot denomina “la ressemblance cadavérique” (199, p. 346) , em que o defunto se torna mais grandioso do que seu referente vivo, a grande imagem clássica daquele que em si não é tão grande assim. O que era vivo e agora é morto perde sua utilidade, fazendo com que o objeto apareça: ao perder a função que o ser vivo tinha e que o fazia desaparecer como objeto, o morto faz aparecer o que se entregou à imagem descartando-se do útil. Da mesma forma, a imagem de um objeto não conduz ao seu sentido, à sua compreensão, se se considerar a verdade do mundo, como o não-cachimbo de Magritte.
Esses dois movimentos fundamentais da imagem embaralham a mente de Bio. De um lado, a difícil transposição da figura para a verdade do mundo; de outro, a incômoda eternidade do signo que não tolera começo nem fim. De um lado, a possibilidade de compreensão, de recuperar ainda que de forma imperfeita o original, “sa négation vivifiante” (1999, p. 353) ; de outro, o horror da impossibilidade, a neutralidade que não autoriza um sentido. Não autoriza porque, da apresentação à retenção, paira sobre o retrato um fantasma desprovido de futuro, portanto sem passado nem presente, a imobilidade viva e indecomponível.
A inconciliação desses níveis do imaginário faz aflorar a questão da ambiguidade. No mundo, ela é o que possibilita a compreensão, a partir do esforço dos seres humanos de se fazerem entender. Em outra dimensão, e essa é o domínio da escritura, ela vacila entre o que remete ao mundo e tenta adequar-se a suas verdades, e o que é pura fascinação e escapa à compreensão; entre o que nos permite ter acesso às coisas e o que nos atormenta com o inacessível. Essa ambigüidade da escritura é o que faz com que aquilo que é sem entendimento pareça ter sentido.
Tanto a semelhança quanto a ausência são profundamente angustiantes para Bio, que se debate entre ter e não ter o retrato, querer tê-lo ou não, e ter a única certeza de que Iô Williãozinho não se dispõe a desfazer-se dele, mesmo porque, agarrado ao pescoço do animal representado, está a figura de sua amada, cara limpa e sonsa, amor inseparável, assim como inseparável dela está o belo animal figurado. Como cindir a cena sem romper a harmonia do clássico? O patrão desdenhava brincando do referente: o retrato era mais reluzente, mais portentoso do que o animal vivo ali no pasto. Essa fala adoecia mais o proprietário do corcel, fazia mal a suas dúvidas, o nefando discurso só podia ser atribuído ao desejo de machucar seu amor pelo bicho.
É preciso tornar o cavalo um objeto de uso, para experimentá-lo no reino das possibilidades. Este é o momento em que o cavaleiro pela primeira vez monta seu animal; até então, ele era todo cuidados em relação ao cavalo, nos carinhos e nos tratos. O seu ódio às palavras do patrão exigiam que montasse, que se apoderasse da montaria. Esse cavalgar não era nem por esporte nem por prazer, era um ato, um ato absoluto de posse, que a propriedade do retrato jamais permitiria.
Cumpre examinar as palavras com que o narrador se refere ao acontecimento: montar o animal é obedecer ao “comum preceito, uso” (p. 190). Assim como a imagem cadavérica distancia-se do ser vivo pelo desuso, seu cavalo até então tinha algo de cadáver, ser de adorno “xerimbabado” (p. 191), por cumprir beleza apenas, como se retrato fosse. Se em beleza não era possível seu querido bicho competir com a imagem produzida no luxo, apossar-se dele no uso faria dele o ser que o retrato não poderia ser. O uso, o preceito, o normal enquadra os seres no mundo das coisas compreensíveis, e assim Bio começa a entender o que aquele animal significa, para que serve um cavalo, e atina com a necessidade de que a cópia seja destruída: “Era um demais de cavalo” (p. 191). O que sobrava era o do retrato. O único que poderia conversar com ele sobre o animal seria o falecido Nhô da Moura, que tinha poderes meio mágicos sobre o corcel, e tinha também a compreensão do significado dele. Mas conversar com Nhô da Moura equivaleria a tê-lo vivo, e se vivo estivesse seria ele e não Bio o dono. O falecido ajudá-lo-ia a ter a compreensão da existência do bicho, o significado do animal, mas nesse caso o sentido roubar-lhe-ia o bem.
Montar o cavalo, ter sua posse era uma maneira simbólica de destruir o outro, o demais. Mas o símbolo não bastava. Bio se enche de coragem e enfrenta o desafio de eliminar a odiosa cópia que se fazia bela para diminuir seu vivente, como um Dorian Gray rural às avessas.
Daí o desencanto para atrapalhar o que parecia determinado no vaqueiro: a moça rompe o noivado com Sêo Williãozinho, renuncia ao uso que dela se faria no casar e cumprir destino de gente à luz do dia, do que se compreende. O “viso” da bela arte, entretanto, guardava certamente uma porção da alma dela, não apenas sua aparência, a moça anterior ao retrato haveria de padecer remorso, é o máximo que Bio poderia sentir em relação à inesperada abdicação.
Nem assim Iô Wi se desfaz da imagem, é possível que agora é que ele não se desfaça mesmo dela, o quadro ia ficar no lugar do coração a “conferir saudades” (p. 191). Bio desiste de destruir o retrato, bem como abdica de sua posse, que posse mesmo ele teve foi no lombo do macho.
Em “Palhaço da boca verde”, Ruysconcellos parte em dois o retrato em que a amada Ona Pomona aparece ao lado da amiga Mema Verguedo. Inadvertidamente, joga fora a metade que figurava sua Ona; o destino, também inadvertidamente, o conduz aos braços de Mema e à morte. Ele, que não queria mais ser palhaço, que alimentava a esperança e o desejo de rever Ona Pomona, ao constatar o erro do retrato, percebe o absurdo do espelho “em que a imagem da gente se destrói” (p. 172). Ao arruinar a imagem da mulher que ama no retrato, deforma a si mesmo na imagem do espelho: “deu-lhe o pó da palidez, esverdeando-se por volta dos lábios” (p. 172).
Em “Retrato de cavalo”, o aniquilamento do retrato também está relacionado com a morte e a transfiguração do ser. Em meio ao sonho em que destruía o retrato, o mentiroso figurado permaneceu soberano enquanto o verdadeiro cavalo morria. Havia caído, tinha rolado de “um barranco à-toa” (p. 192). É curiosa a ambigüidade que o cavalo carrega: belo, lavado, mimado, infenso ao uso, o que o mata é o uso, de cair de um barranco comum, sobrepujável por qualquer outro animal, principalmente por um cavalo. No entanto, era “Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira” (p. 192). A hesitação entre a beleza e o uso provoca a morte.
O cavalo não tinha mais jeito, morto estava; que o patrão se acautelasse, porque a moça ainda estava viva, na negação vivificante do retrato. A Bio é oferecido o retrato, ele não o aceita mais, a impessoalidade fria do belo artefato não pode consolar seu coração, bem como não pode refletir a agonia de seu cavalo, a dor que o sofrimento do outro lhe causou. O sofrimento não se esquece, a memória obstina-se, “conseqüência da vida” (p. 192).
Consideremos então que o retrato não é conseqüência da vida, é apenas artefato de beleza, que tem vida própria e, no momento, indesejada. Uma verdade mentirosa que remexe o sofrimento. A única sala que podia receber o suntuoso retrato era a de seu Drães, “vivenda em apalaço” (p. 189), única que superava a riqueza de Iô Wi; assim se decidiu: o retrato da dor enfeitaria o luxo do vizinho abastado, para viver sua glória impessoal, para cumprir sua sina de obra de arte sem uso, deixando de ser retrato para se tornar imagem, conforme a concepção de Walter Benjamin, em “Pequena história da fotografia” . As ambigüidades recrudescem.
Na epígrafe final, a escritura da instabilidade do signo, a outra verdade indizível e indesejável, a verdade da morte, da separação, da perda, a que provoca sofrimento. Essa é a verdade que faz sofrer; uma vez que provoca dano, é mentira:
Era verdade de-noite,
Era verdade de dia.
Mentira, porque eu sofria.
Recapítulo
(p. 193)
O cavalo e seu retrato fazem refletir sobre a literatura, sobre seu excesso de verdade que compõe sua mentira. Ao escrever o cavalo e seu retrato, o enunciador não consegue fixar nenhuma verdade, apenas imagens fugidias que compõem sempre um recapítulo: há sempre um escrito a se sobrepor a outro, sem determinar onde está o verdadeiro, onde está o que o nega. No citado conto “Palhaço da boca verde”, o enunciador, ao referir a morte de Ruysconcellos e Mema, assinala: “Mas todos morrem audazmente — e é então que começa a não-história” (p. 173). A não-história é composta a partir das verdades que começam a ser estabelecidas sobre o fato, sendo, portanto, um acúmulo de mentiras tecidas a partir e a respeito da morte.
Voltando ao “Retrato de cavalo”, temos então que a imagem não é a verdade que o animal desfruta no mundo, sua imagem não é seu sentido, não é o que permite compreender o que ele é. O sem-sentido da imagem é também o horror da morte: antes da morte podia-se ver o retrato como o congelamento de algo que morreu, algo inquietante e inexplicável. Após sua morte, Bio percebeu que a fotografia era a certeza da morte, que se consumou no sonho da destruição da imagem, "O que um dia vou saber, / não sabendo eu já sabia" (epígrafe). A situação é similar à narrativa de Roland Barthes sobre uma certa foto:
Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de Estado americano, W. H. Seward. Alexander Gardner fotografou-o em sua cela; ele espera seu enforcamento. A foto é bela, o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta dessa equivalência. (Barthes, 1984, p. 142)
A fotografia é o horror de um desastre que já ocorreu e que mantém incólume a imagem da idealização. Quando Bio diz que o retrato roubou algo do cavalo, o agouro da morte já rondava seu olhar, algo pior que mau-olhado, e que não poderia ser desfeito jamais. Daí o horror do vaqueiro, de estar diante de um futuro que se antecipa entremostrando a morte. Eis o punctum do retrato no “viso” de Bio, seu fascínio do terrível, que entrega seu querido cavalo à soberania do vazio, do nada, sem correspondência.
As possibilidades do imaginário, assim, estão relacionadas ao duplo sentido da morte, segundo Blanchot: “tantôt le travail de la vérité dans le monde, tantôt la perpétuité de ce qui ne supporte ni commencement ni fin” (BLANCHOT, 1999, p. 351) . No primeiro caso, a compreensão e o conhecimento conduzem à morte boa, necessária, dando ao ser a ilusão de que a finitude fecha seu ciclo; não obstante, ele não pode determinar nem o fim e nem seus desdobramentos, como nas não-histórias geradas pela morte dos amantes em “Palhaço da boca verde”.
Daí a ambigüidade fundamental que é a escolha entre a morte, de um lado, como possibilidade de compreensão, cuja verdade estéril acarreta a penúria; e, de outro, como horror da impossibilidade, a prolixidade do não-verdadeiro.
O que é viver um evento em imagem? É deixar que a imagem nos entregue profundamente a nós mesmos: “en dehors de nous, dans le recul du monde qu’elle provoque, traîne, égarée et brillante, la profondeur de nos passions” (BLANCHOT, 1999, p. 352) .
Em sua extrema ambigüidade, as duas versões do imaginário podem possibilitar ou a recuperação ideal do objeto, cuja imagem é a “negação vivificante”, ou a remissão não mais ao referente ausente mas a um neutro que não carrega mais a pertença ao mundo. Há aí um duplo sentido que compreende diferentes níveis de ambigüidade: no mundo, ela serve ao entendimento, à compreensão (ajuda-o ou atrapalha-o); nas duas versões do imaginário tem-se, de um lado, uma imagem que ainda fala do mundo, que propicia o sentido e a apropriação das coisas em sua ausência; de outro, a que remete o olhar ao reino indeterminado da fascinação, onde a imagem não tem valor nem significação, é pura paixão da indiferença.
Esse jogo de ambigüidades, de que a literatura é plena, conduz, segundo Blanchot, a um terceiro nível de ambigüidade, em que haveria um outro de todos os sentidos, que é o sentido do nada, do vazio, que propicia possibilidades aparentemente infinitas de sentido. Elas são vazias porque não podem ser delimitadas, apreendidas, capturadas, não se formam.
No conto “O espelho”, de Primeiras estórias, o enunciador tece considerações sobre o mistério que há além da representação, e que lembra a distinção entre retrato e imagem de Walter Benjamin, que por sua vez assemelha-se às noções de studium e punctum de Barthes. Esse jogo de espelhos, que é a escritura de Rosa, nos remete infinitamente à impossibilidade da pergunta: “quem está do outro lado?”.
O narrador de “O espelho” especula: “Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (Rosa, 1974, p. 89)
O que ele vê no espelho?
Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá? (ROSA, 1974, p. 97)
É o espelho de Rosa, anterior ao saber, próximo à origem, em seu duplo sentido fundamental, em sua potência negativa que faz do sentido não mais uma aparência, mas um infinito de sentido que não conclui. Assim separam-se Iô Williãozinho e Bio, meio envergonhados, olhos marejados: “Mais foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da noite” (p. 192). Sublinhemos a expressão mero conversando assim aos infinitos e tomemo-la como figuração do texto literário rosiano. Afinal, narrativa sobre retrato de cavalo não é retrato de cavalo, assim como retrato de cavalo não é cavalo.
RESUMO
Em “Retrato de cavalo”, de Tutaméia, a instigante indeterminação da escritura de Guimarães Rosa estabelece um paralelo entre um cavalo e seu retrato, a partir dos sentimentos contraditórios de seu dono. Temos aí um retrato: escrita, representação. Temos também uma narrativa, escrita do retrato, representação da representação. Esta comunicação pretende mostrar como Guimarães Rosa manipula as ambigüidades da linguagem literária, levando-a além dos limites da representação, explorando seu fascínio, seu saber que não é da ordem da compreensão. O cavalo e seu retrato fazem refletir sobre a literatura, sobre seu excesso de verdade que compõe sua mentira. Ao escrever o cavalo e seu retrato, o texto não consegue fixar nenhuma verdade, apenas imagens fugidias que compõem recapítulos: há sempre um escrito a se sobrepor a outro, sem determinar onde está o verdadeiro, onde está o que o nega, a remeter o olhar ao reino da fascinação, onde a imagem perde o valor de significação para se tornar pura paixão da indeterminação, da indiferença. Sublinhemos do texto a expressão mero conversando assim aos infinitos e tomemo-la como figuração do texto literário rosiano. Afinal, narrativa sobre retrato de cavalo não é retrato de cavalo, assim como retrato de cavalo não é cavalo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasileiense, 1994.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1999.
ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. São Paulo: Coed. José Olympio, Civilização Brasileira e Ed. Três, 1974.
ROSA, Guimarães. Tutaméia. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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1 comment:
Parabéns pela brilhante análise! Tutaméia acaba exigindo e extraindo o melhor de nós quando resolvemos o enfrentar. Abraço. Samantha
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