Wednesday, December 21, 2011

CRÍTICA: A ARTE DE ESPANTAR A ARTE E SEGURAR SUA SOMBRA


Cid Ottoni Bylaardt - Doutor em Literatura Comparada
Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará
e-mail: cidobyl@ig.com.br - Telefone: (85) 3242 2794




Resumo: Este texto tem como objetivo refletir sobre a fragilidade e a inconsistência dos instrumentos de aferição do gosto estético, com sua roupagem de racionalismo e cientificismo. A reflexão parte de um texto crítico sobre a poesia de Henriqueta Lisboa que circula na internet, tomado aqui como expressão de uma crítica que se apoia em verdades pretensamente eruditas, em um saber aparentemente universal e imutável, como os tristes argumentos de Lobato diante do homem amarelo malfattiano. A crítica literária legítima tem que ser fruto de uma reflexão profunda, de uma vivência intensa com o texto. Juízos de valor, se são incontornáveis, que sejam feitos com cautela, a partir de uma leitura atenta, e não de suposições fáceis e conclusões apressadas e vagas. Sobretudo, a crítica e por extensão a recepção contemporânea devem lançar um novo olhar à obra literária, além dos velhos instrumentos da crítica e da teoria. Talvez esse novo olhar não signifique propriamente desfazermo-nos desses velhos instrumentos, mas eles devem ser necessariamente reposicionados, relativizados ao ponto de não serem mais os determinantes absolutos de uma maneira condicionada de ver.
Palavras-chave: crítica, poesia, fundamentos do gosto, novo olhar

Abstract: This paper intends to ponder over the fragility and inconsistency of the aesthetic judgement, in spite of its appearance of rationalism and scientificism. This reflection starts from a critical text about Henriqueta Lisboa's poetry put into circulation in the web, taken here as the expression of a critical attitude that rests on pretentious truths, on an apparently universal and unchangeable knowledge, like the poor arguments of Monteiro Lobato against Anita Malfatti's yellow man. The legitimate literary criticism must be the result of a deep reflection, of an intense experience with the literary work. Aesthetic judgement, however inevitable, must be done carefully, by means of a close reading, and not through easy suppositions or quick and dubious conclusions. Above all, contemporary critic and reception must give a new look at the literary work, beyond the old critical and theoretical instruments. Maybe this new look doesn't mean to give up the old instruments, but they must necessarily be newly relocated in order that they might not be anymore the means of an absolute way of knowing the work of art.
Key words: critical taste, poetry, foundations of taste, new look.
Em meio a pesquisas na internet sobre a obra da poeta mineira Henriqueta Lisboa, deparo-me com um ensaio chamado “As sombras da delicadeza”, assinado por Felipe Fortuna. Folheando eletronicamente o texto, deparo-me com uma oração que inevitavelmente chama a atenção de quem lê poesia: “...sendo mesmo forçoso classificar de menor a poesia de Henriqueta Lisboa... ”. Imediatamente pensei nas declarações saudosistas de alguns críticos, de que não se faz mais crítica como antigamente, isto é, a crítica acadêmica ou jornalística atual estaria mais preocupada em estudar ou promover comercialmente as obras literárias do que propriamente atribuir-lhes um valor, como ocorria nas épocas de ouro da crítica que criticava, entendendo-se criticar principalmente como falar mal.
Retornando ao final do século XIX, encontramos o respeitadíssimo Sílvio Romero depreciando a escritura machadiana devido à gaguez do escritor: “Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem” (ROMERO, 1980, p. 1506). Não obstante, Romero teve o cuidado de não classificar a escritura de Machado como “menor”, por menos que a apreciasse. Algumas décadas depois encontramos Massaud Moisés a afirmar que no conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, a cena em que os personagens bebem cerveja numa confeitaria constitui falha no plano de ação, já que ao leitor não interessa o que bebem ou deixam de beber os personagens. O Guarani, de José de Alencar, também não escapa da erudição do crítico: o final da narrativa é tido como romanticamente inconsistente, incorreto mesmo.
Antonio Candido também incorre em julgamentos de credibilidade duvidosa, quando confunde sua persistente dicotomia dialética do local e do universal e se desdiz afirmando em certo momento que Sagarana “nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura” (CANDIDO, 2002, p. 186), enquanto em outro momento afirma exatamente o contrário, que as obras anteriores a Grande sertão, o que inclui Sagarana, careciam de transcendência do regional (CANDIDO, 2002, p. 190). O crítico ainda se deixa levar por critérios de valor igualmente duvidosos ao questionar a qualidade da poesia brasileira dos anos 40 do século XX, afirmando que “impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer” (CANDIDO, 2006, p.135).
As discussões sobre o mau gosto e o bom gosto em literatura fazem lembrar a polêmica de baixo nível entre Júlio Ribeiro e o Padre Sena Freitas a propósito do romance A carne, do primeiro, bem como a de melhor nível entre José de Alencar e o imperador D. Pedro II sobre o poema de Gonçalves de Magalhães, A confederação dos Tamoios. Essa última ainda teve a virtude de proporcionar uma rica discussão sobre a narrativa do século XIX.
Vale lembrar ainda que uma banca de notáveis avaliadores do bom gosto literário “reprovou” Sagarana em favor de Maria Perigosa, de Luís Jardim, no julgamento do Prêmio Humberto de Campos em 1938. Graciliano Ramos, um dos notáveis de 1938, reconheceu em 1946: “Afinal, os julgamentos são precários ― e naquele tínhamos vacilado” (RAMOS, 1971, s/ p.).
Em seu ensaio “Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie” (1999, pp 40-51), Agamben cita os Cursos de estética de Hegel, em que o filósofo alemão lamenta que em sua época (século XVIII) os homens não mais tinham acesso à vitalidade profunda da obra de arte, uma vez que as reflexões e a crítica sobre ela se resumiam em transformá-la em uma representação intelectual conforme o modelo crítico utilizado. A arte era, assim, uma oportunidade para os homens exercitarem sua habilidade crítica. Para Heiddeger, a arte pouco tem a ver com saberes que se acumulam sobre ela. Blanchot vai mais além e afirma que quando a reflexão imponente se aproxima da obra de arte, esta se retira.
No artigo citado, Agamben faz uma interessante associação entre a atitude do crítico diante da obra de arte e o estudante de medicina que aprende anatomia em cadáveres. Quando se vê diante do corpo vivo do paciente, ele só pode lembrar-se de seu modelo anatômico morto para orientá-lo em sua abordagem do ser vivo. Nessa linha de pensamento, vale lembrar o pequeno texto de Mario Quintana que encena a atitude de racionalismo depauperante de quem só consegue ver um saber estéril onde se manifesta a beleza:

A BORBOLETA
Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: “Olha uma borboleta!” O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: — Ah! sim, um lepidóptero... (2003, p. 19)


Agamben segue lembrando que os critérios utilizados para o julgamento da obra de arte formam um esqueleto de elementos mortos ao invés de um corpo vivo e pulsante. No caso do artigo de Felipe Fortuna sobre a obra de Henriqueta Lisboa, o crítico enumera alguns pressupostos que determinam sua condição de poesia menor, a saber: tradicionalismo das formas, fidelidade a um só ideário (não-evolução), mau gosto, isolamento, provincianismo, arcaísmo. Temos então alguns critérios de julgamento estético que podem dar uma certa consistência à crítica pretendida. Se forem bem utilizados, ainda que limitados e sem vida, teremos no máximo uma pequena visão do que poderia ser a obra de arte; se forem simplesmente arbitrários e não configurarem uma relação coerente com o objeto de conhecimento, teremos mais um dos inúmeros desastres críticos a que assistimos frequentemente, disfarçados de reflexão erudita. Em ambos os casos, a apreciação da arte paga-se com o esquecimento dela. Este ensaio não tem a intenção de defender a poesia de Henriqueta Lisboa nem de apontar suas virtudes em contraposição aos argumentos depreciativos do crítico; isso seria utilizar o procedimento aqui condenado, dentro do mesmo sistema binário que permitiu a crítica. A ideia é mostrar como os instrumentos de aferição do gosto são frágeis, imprecisos, inconsistentes, quando tentam se mostrar racionais, científicos e determinados, sobretudo quando não vêm acompanhados de argumentos firmes e bem fundamentados, se se admitir que uma vez que há literatura, há crítica de juízo. Ao final, a prática da crítica negativa pode até afastar algum estudante de letras ou leitor de poesia da obra poética, que, não obstante, continua lá, intocada, inteira, a produzir sua verdade, indiferente às razões iluministas ― que se revelam obscurantistas ― da crítica tradicional.
Vale lembrar as palavras de Agamben sobre a atividade da crítica:

Onde quer que o crítico encontre a arte, ele a traz para seu oposto, dissolvendo-a em não-arte; onde quer que ele exercite sua reflexão, ele traz consigo não-ser e sombra, como se ele não tivesse outros meios de adorar a arte que não fosse a celebração de uma espécie de missa negra em honra do deus inversus, a divindade invertida da não-arte. (1999, p. 46)


O pensador italiano segue refletindo sobre o que parece ser uma crise desse tipo de instrumento de nossa apreensão estética da arte, e como essa crise pode levar a um eclipse da crítica (que possivelmente já esteja ocorrendo neste início de século XXI). Segundo ele, há ainda uma questão mais extravagante a rondar essa atividade crítica. Se o ser humano não tem necessidade de medir a beleza dos fenômenos naturais comparando-os com sua sombra, por que insistimos em fazer isso com relação aos fenômenos artísticos? Admitamos, entretanto, que quem fala sobre a arte, quem fala sobre a literatura, não pode furtar-se a emitir algum juízo crítico de valor. Se temos, forçosamente, que nos mover em torno dos fundamentos do julgamento crítico, não seria mais desafiador buscarmos parâmetros mais originais, iniciais, desprovidos dessa sobrecarga de saber que constrói uma sombra da arte julgando que fala dela?
Alguns desses elementos de não-arte, de sombra de poesia, serão aqui examinados em sua validade como fundamentos do julgamento estético, conforme aparecem no mencionado artigo sobre a poesia de Henriqueta Lisboa.
De início, a pecha de poesia menor atribuída à obra poética de Henriqueta parece ter causas bem fundamentadas e inquestionáveis: “Pois, sendo mesmo forçoso classificar de menor a poesia de Henriqueta Lisboa, tal se deve à sua monocórdica fidelidade a um só ideário, que sintomaticamente jamais evoluiu”. Como afirmei antes, não se trata aqui de refutar a relação dos fundamentos com o objeto investigado, desvelando a injustiça da análise. Nossa preocupação é de questionar os fundamentos em si, e refutá-los, sim, em sua própria formulação. O critério de julgamento artístico aqui é então a noção de evolução. Aplica-se ― o verbo “aplicar” é tão oportuno quanto estranho ― à arte algo que pertence ao saber racionalista, como se fosse possível atribuir à poesia alguma determinação teleológica ligada à ideia de evolução. O articulador “tal se deve” é taxativo: a poesia é menor porque não evolui. Essa afirmação pode ter sido inquestionável algum dia, mas é no mínimo uma atitude anacrônica atrelar-se ao julgamento de arte o critério evolutivo. O que parece ser uma afirmação insofismável que possa conduzir o estudante de letras ou o leitor a um terreno sólido em suas apreciações poéticas se esfumaça diante da impossibilidade de se definir com segurança como esse critério de julgamento pode ser “aplicado” à poesia em questão. Essa atitude da poeta configura, na visão diacrônica do crítico, uma deficiência: “Longe de confirmar uma coerência, trata-se de um sinal de implacável conformidade.” Dentro dos padrões binários de julgamento crítico, “coerência” parece ser uma atribuição positiva, num sistema lógico-racional, enquanto “conformidade” tem uma conotação menor, de subserviência, mesmo que seja sujeição da poeta a ela mesma. Entretanto, coerência e conformidade têm valores semelhantes fora do sistema binário, opondo-se, no caso, apenas pelo desejo do crítico de estabelecer sinais confrontantes ― positivo e negativo ― no intuito de depreciar o objeto de análise, sem que ele possa apontar indícios consistentes dessa oposição.
A acusação seguinte é de anacronismo, vulgaridade e infantilidade. Aqui o trecho demanda sua citação em frase íntegra para que se tente perseguir a lógica do crítico:

Arcaizante, sua poesia apresenta momentos constrangedores, seja em imagens surradíssimas,
os dedos do luar partiram-se os fios do (pensamento ("Prisioneira da Noite")
seja em concepções lamentavelmente infantis:
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se despreende
para vir pousar no meu ombro como sinal de esperança?
("Prisioneira da Noite")


Quanto às “imagens surradíssimas”, ficamos a nos indagar como é possível emitir um juízo tão taxativo a partir de um único verso de um poema que tem dezenas deles, desprezando-se o próprio clima geral do texto, em que elementos noturnos como “estrelas”, “ventos marinhos” e “caminhos da madrugada” estabelecem uma ressonância de indeterminações com os execrados “dedos do luar”. Para agravar o pouco rigor crítico ― o rigor tão reivindicado pela crítica racionalista ― do acusador, o verso aparece adulterado, parecendo mais estranho do que propriamente surrado. No poema de Henriqueta, o verso está escrito da seguinte maneira: “os dedos do luar partiram-me os fios do pensamento” (LISBOA, 1958, p. 37), e de certa forma antecipa, articulado à atmosfera de indecisão do poema, elementos de uma atitude poética que floresceu na década de quarenta, em que a linguagem literária começa a questionar sua própria insuficiência para acessar o real, para veicular uma compreensão incontestável de verdades, que começam a ser abaladas, configurando o que chamamos estética da falta, da fratura, da impossibilidade. Tal atitude ressoa em poemas inesquecíveis como “Jardim”, “Dissolução” e “Remissão”, de Drummond, e “Acidente” e “Esta é a graça”, da própria Henriqueta. Na sequência, o crítico fala em “concepções lamentavelmente infantis”, e mais uma vez demonstra descaso e descuido com a transcrição dos exemplos poéticos, grafando como um incrível “despreende” a forma verbal “desprende” utilizada pela poeta. Voltando às criticadas concepções infantis, o que é que se tem realmente a lamentar quanto à presença das crianças na poesia, ou mesmo de atitudes próprias dos pequenos? Que diriam dessa atitude, por exemplo, Mario Quintana, Cecília Meireles e Manoel de Barros, só para citar três artistas que não abrem mão da força poética emanada das crianças?
Para reforçar seu ponto de vista de que a poesia de Henriqueta Lisboa é “menor”, Fortuna investe na questão altamente controversa do bom gosto:

A grafia em desuso da palavra cousa e a simpatia pela idéia de musa,
a minha musa ama precisamente o que não existe neste lugar ("Singular")
são afetações que atentam frontalmente contra o gosto poético.


Mais uma vez, o bom gosto revela-se pelo seu oposto da relação binária. Mau gosto poético é aqui simpatizar com a “ideia de musa” e usar grafias em desuso. A questão do desuso, como indício de não-bom-gosto conduz a uma pergunta singela: a própria noção de desuso, despida de suas contaminações depreciativas, não é um traço normalmente valorizado na linguagem poética, precisamente por se afastar da linguagem usual? E a ideia de musa precisa ainda ser execrada mais de um século após o auge do Parnasianismo? A simples presença da palavra basta para definir a poesia como de mau gosto? Drummond, cuide de repensar sua “Musa de outubro” e sua “Musa domingueira”. O mau gosto em questão abate-se sobre uma poesia que recusa a mesmice, que busca novas formas de expressão sem saber como encontrá-las, mas que continua em sua busca.
Sobre o poema criticado, anterior à década de 40, vale dizer que seu título, "Singular", equivale a um adjetivo posteriormente utilizado com frequência para designar a escritura que não tem par, a literatura que não se enquadra em convenções, o texto que surge diante de um novo olhar que se debruça sobre ele. Sintomaticamente, o pequeno e belo poema de Henriqueta Lisboa antecipa a inquietação dos anos quarenta e do próprio pós-modernismo, numa atitude poética bastante ousada para a época.
Outro aspecto dessa crítica negativa que nos faz refletir a respeito dos procedimentos de juízo é a metacrítica que faz o autor do artigo daqueles ou daquelas ― isso inclui Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade ― que viam e veem na poesia de Henriqueta delicadeza, singeleza e musicalidade, e condena comparações ― segundo ele forçadas ― da poeta mineira com Cecília Meireles e Gabriela Mistral, e sobretudo com Rainer Maria Rilke, para ele um “desastroso paralelo”. Segundo Fortuna, todas essas apreciações constituem “grotescas interpretações” da poesia de Henriqueta. Quando se espera que o crítico vá justificar sua feroz contestação dos traços de singeleza, delicadeza e musicalidade da poesia de Henriqueta, depara-se com um ponto final e o texto dá início a uma nova acusação, e nada se explica. Quando se imagina que o escritor do artigo vá estabelecer os fundamentos de suas descomparações dos símiles mal feitos, permanecem ressoando no ar as acusações, sem fundamentação ou justificativa. Simplesmente, os traços apontados com sensibilidade por vários críticos e apreciadores são pulverizados com sofismas pretensamente inquestionáveis, e procede-se assim à decretação da não-singeleza, da não-delicadeza, da não-musicalidade, da não-semelhança com poetas canônicos.
Mais adiante lê-se uma nova tentativa de conceituação de poesia menor, atribuindo-lhe o traço de “renitente tradicionalismo”, e justifica simplesmente seu juízo de valor transcrevendo versos que segundo o crítico são bastante tradicionalistas:

Na sua faina de artista o sol
com pincéis de espiga
é o próprio dom do amarelo.
("Poeminha do Amarelo")


Tentamos avidamente examinar o tradicionalismo renitente que esses versos exalam com tanta força. Estaria nos heptassílabos, tão ao gosto da literatura popular, que carrega nos ombros séculos de tradição? Ou na rima toante, a favorita de João Cabral, de “artista” com “espiga”? Ou na própria insistência no amarelo, como um Van Gogh anacrônico, cuja beleza a tradição transformou em tradicionalismo? Ou na prosopopeia do sol transformado em artista impressionista espalhando o amarelo em pinceladas aparentemente descuidadas? Enfim, o leitor fica sem poder conferir ou aferir no exemplo dado o traço atribuído. Para arrematar o argumento de que a poesia de Lisboa é teimosamente tradicionalista, o crítico acusa o poema “Beija-Flor” de nomear o animalzinho que lhe dá título de “dramazinho melífluo”. Isso é propriamente uma atitude tradicionalista? Onde? Em quê? Parece-nos inclusive que há alguma impropriedade na leitura do crítico, uma vez que dramazinho melífluo não é uma nomeação do beija-flor, mas uma sucinta descrição de uma cena que se desenrola. Transcrevemos aqui a estrofe para que se possa contextualizar a expressão condenada:

Dramazinho melífluo:
coração em conflito
de premência e cautela
Beija-flor investe a custo
e sem perder o galeio
gira oscila dança paira
não desiste mal se atreve
em galanteios e escusas
antes de colher o inseto
que entre pétalas se oculta.
(LISBOA, 1982, pp. 61-62)


É evidente que por um processo de ampliação da imagem, do deslindamento de suas possibilidades, o epíteto de dramazinho melífluo pode, sim, ser atribuído ao beija-flor, embora a atribuição passe necessariamente pelo desdobramento da cena de tensão em que o bichinho hesita entre necessidade e desejo, de um lado, e cuidado e receio, de outro, tudo isso sem perder a pose, sem prescindir da graça e da delicada elegância. Ele encena o drama, ele atua no drama, ele é o drama.
O autor se permite tecer alguns elogios ― tão pouco convincentes quanto as recriminações anteriores ― aos livros Flor da morte e Reverberações, considerados “bem acabados”, novamente uma expressão vazia que designa algo vago e impreciso. Flor da morte, particularmente, é louvado como obra de “unidade absoluta” por sua “meditação soturna sobre a morte”. Unidade e bom acabamento são, portanto, qualidades de uma boa poesia, embora não salvem o conjunto da obra da poeta da pecha de “menor”. Quando se reflete a respeito de um olhar contemporâneo sobre a arte, fica-se a pensar se esses dois traços são realmente positivos, se eles podem salvar uma obra da mediocridade. Unidade e acabamento são, contemporaneamente, valores confiáveis para um julgamento estético? Na época em que Lobato desancou a arte de Malfatti, quando esses traços foram convocados por ele para fortalecer seus argumentos, eles já eram fortemente questionados pelas vanguardas. Isso foi há quase cem anos. Inconsistência da censura, fragilidade do elogio.
Não escapa a quem lê essa crítica descuidada a sensação de que o crítico busca seus exemplos a esmo, sem a atenção devida ao que foi escrito pela poeta, sem a preocupação de pelo menos demonstrar consideração à poesia criticada, adulterando pela terceira vez, agora de forma ainda mais grosseira, seus versos. Ao tentar fazer uma aproximação entre Henriqueta Lisboa e Hilda Hilst, possivelmente relacionando o livro Flor da morte a Da morte. Odes mínimas, o crítico estabelece a associação referindo-se à “vocação meditativa sobre o tema” herdada por Hilst, e para ilustrar seu argumento cita um verso de “Esta é a graça” (verso que por sinal não está no poema), talvez o único poema do livro que não trate da temática da morte:

em busca do intangente inefável. ("Esta é a Graça")


Henriqueta Lisboa não escreveu isso. Se não cabe aqui a transcrição completa do poema, o que seria mais recomendado, transcrevemos ao menos a estrofe em que aparece o verso citado de maneira descontextualizada e adulterada pelo autor do artigo:

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.
(LISBOA, 2004, p. 43)


Uma leitura mais atenta da estrofe e do poema como um todo revela uma concepção de poesia, em que elementos da natureza, como os pássaros, os cães, as plantas e até a própria madrugada aparecem como metáforas da criação artística desinteressada. Por menos que queiramos restringir as possibilidades da linguagem poética, parece ser algo forçado ler nesse poema uma reflexão meditativa sobre a morte, como afirma o crítico em sua infeliz referência.
Para finalizar, o autor do artigo retoma as atribuições ― segundo ele grotescas ― de suavidade e delicadeza à poesia de Lisboa, e chega a admitir que elas podem estar presentes em seus textos, mas que realmente servem para “caracterizar uma poesia que, posicionando-se com um compromisso ultrapassado, acabou presa no círculo do seu próprio silêncio”. A afirmação é tão inconsistente que fica difícil detraí-la. Que relação haveria entre suavidade e delicadeza, de um lado, e compromisso ultrapassado, de outro? Aqueles seriam componentes determinantes deste? E ao comporem essa profissão de fé anacrônica, teriam forçado essa poesia a se prender no círculo de seu próprio silêncio? Supondo-se que seja, estar presa ao círculo do próprio silêncio, em si, seria algo depreciativo dessa poesia? Quando se pensa em poetas contemporâneos como Paulo Leminski, Waly Salomão, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes, ou o português Herberto Helder, para citar alguns, constata-se que a ideia do silêncio na linguagem poética surge com tanta força como marca dessa inquietação estética própria do final do século XX e início do século XXI, com uma robustez tão tensa quanto intensa, não obstante difusa, a provocar o sentimento de beleza na contemplação da poesia pós-moderna, que fica difícil imaginar a prisão no círculo do próprio silêncio como um traço pejorativo, típico de uma poética menor. Essa tensão poética, essa intensidade de beleza emana da comovente estrofe final do poema “Esta é a graça”, citado inadequadamente pelo crítico como exemplo de meditação sobre a morte, e que na verdade nos conduz a uma reflexão sobre a inquietação da poesia que dos anos quarenta se alastrou à contemporaneidade. Nisso, Lisboa foi mais vanguarda do que retaguarda. Os versos são os seguintes:

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas.
(LISBOA, 2004, p. 43)


O poema do qual foi retirado o quarteto acima reflete a incerteza, a inquietude, a necessidade angustiada de fazer uma poesia mais intransitiva, mais absoluta, talvez, própria dessa época, que se pode possivelmente desdobrar em um sentimento típico de nossa contemporaneidade: a ideia de que a palavra é insuficiente para propiciar o acesso ao real, de que o sentido não é mais algo apreensível sem contestação, de que a poesia não consegue mais estabelecer as verdades que o ser humano julgava bastantes para satisfazer seus anseios e seus desejos, de que a linguagem poética não mais se sustenta pela codificação de licenças.
O poeta Lêdo Ivo, no editorial da Revista Orfeu, de 1947, declarava:

O modernismo e o pós-modernismo, que fixam o maior período de densidade, pesquisa e criação já atingidos no Brasil, comprovam hoje a existência de um movimento cultural, ainda incerto em sua significação e em seus objetivos. [...] Essa incerteza somos nós. O tempo não nos construiu ainda, ignoramos o que seremos ― é a vertigem de vir a ser que nos tenta e nos congrega. [...] Enquanto formos novos, seremos inacabados. (pp. 376-377).


Pode-se relacionar a afirmação de Lêdo Ivo ao que escreveu, muitas décadas mais tarde, Leyla Perrone-Moisés: “Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós” (1990, p. 104).
Essa estética da falta, da carência, da fratura, da impossibilidade tem muito a ver com a literatura nossa contemporânea. A poesia então deseja algo que nem ela mesma sabe o que é, fazendo-se a própria busca; ao libertar-se da velha lei da licença codificada, o texto poético parece subordinar-se a essa nova e estranha potência, que não se dá a conhecer, mas que move os poetas em seu fazer incessante.
Tal inquietação assaltou Henriqueta Lisboa, e toda sua obra poética de maneira geral a reflete, particularmente em poemas como “Esta é a graça” e “Acidente”, ambos de Flor da morte. Esse é o verdadeiro silêncio em que se prende a obra da poeta, um silêncio altissonante, hesitante, claudicante, e de muita beleza, uma profunda beleza.
Embora a publicação do ensaio aqui comentado seja datada de 1986, e o crítico possa ter mudado de ideia em suas concepções de poesia ― ou não ―, o fato é que o artigo está lá, podendo ser então tomado como expressão de uma crítica contemporânea que lamentavelmente se apoia em verdades pretensamente eruditas, em um saber aparentemente universal e imutável, como os tristes argumentos de Lobato diante do homem amarelo malfatiano. A crítica literária, para se legitimar, tem que ser fruto de uma reflexão profunda, de uma vivência intensa com o texto, principalmente se se tratar de texto poético. Juízos de valor, se são incontornáveis, que sejam feitos com cautela, a partir de uma leitura atenta, e não de suposições fáceis e conclusões apressadas e vagas. Sobretudo, a crítica e por extensão a recepção contemporânea deve lançar um novo olhar à obra literária, além dos velhos instrumentos críticos e teóricos. Talvez esse novo olhar não signifique propriamente desfazermo-nos desses velhos instrumentos, mas eles devem ser necessariamente reposicionados, relativizados ao ponto de não serem mais os determinantes absolutos de uma maneira condicionada de ver.

Referências bibliográficasAGAMBEN, Giorgio. The man without content. Stanford: Stanford University Press, 1999.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção (Seleção, apresentações e notas de Vinícius Dantas). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002.
FORTUNA, Felipe. As sombras da delicadeza. Disponível em http://www.felipefortuna.com/sombrasdelicadeza.html. Acesso em: 30 jan. 2011.
LIMA, Luiz Costa. “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade". In: Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
LISBOA, Henriqueta. Lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
LISBOA, Henriqueta. Pousada do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Globo, 2003.
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. vol. 5. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1980.
RAMOS, Graciliano. Conversa de bastidores. In: ROSA, Guimarães. Sagarana. 9. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1971.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

Wednesday, March 23, 2011


Pistas que despistam. Quem critica Tutameia?


Cid Ottoni Bylaardt


Universidade Federal do Ceará






RESUMO: Por que se escreve crítica literária? É possível fazer essa pergunta e responder a ela, fora de um pensamento racionalista-iluminista? Que saber é esse que alguns chamam ciência e que parece ter a pretensão de explicar a literatura e atribuir-lhe um valor? Tutameia, na obra de Rosa, sempre representou um desafio para os críticos: há os que se afastaram deliberadamente dela, há os que a tacharam de involução e regressão, e há os jovens pesquisadores universitários que na última década têm dirigido a ela seu olhar, numa perspectiva inovadora. Alheia aos olhares do saber, a obra parece construir-se sobre pistas que despistam os críticos, os quais tentam enquadrar esses pequenos textos em categorias canônicas, às quais eles resistem. Esta comunicação pretende discutir algumas dessas questões postas acima, utilizando elementos da própria escritura de Guimarães Rosa para refletir sobre o que torna Tutameia um texto de difícil aproximação por parte da crítica.




Palavras-chave: Tutameia, crítica, desafio




Por que se escreve crítica literária? É possível fazer essa pergunta, e responder a ela, fora de um pensamento racionalista-iluminista? Que saber é esse que alguns chamam ciência e que tem a pretensão não apenas de explicar a literatura, como também de atribuir-lhe um valor que oscila entre os polos do ótimo e do péssimo?


Com que autoridade um Romero deprecia a escritura do gago Machado transferindo a ela o determinismo da disfemia do autor? Que saber torna lícito a Massaud dizer que num conto sobre o javanês beber cerveja é falha no plano de ação, ou lhe garante o direito de denunciar o final de O Guarani como romanticamente inconsistente, incorreto mesmo? Que sistema crítico permite a Candido dizer que universal é sempre melhor do que local quando ele mesmo em determinado momento confunde sua dicotomia dialética e se desdiz afirmando que Sagarana "nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura" (DANTAS, 2002, p. 186), quando num momento anterior havia afirmado exatamente o contrário, que as obras anteriores a Grande
sertão, o que inclui Sagarana, careciam de transcendência do regional? Teria o olhar do crítico propiciado à obra elevar-se de posto?


O orgulho do crítico literário parece ser atribuir a sua atividade o estatuto de ciência, o que se poderia compreender se o atributo pudesse ser associado com alguma humildade a uma atitude fatigante, porém grosseira, falível, frágil. Não obstante, em nossa perspectiva iluminista, ser ciência é ser inquestionável e definitiva, é receber um sinal positivo dentro do sistema binário, o qual justifica placas imodestas em departamentos: "Ciência da Literatura", com todo seu aparato de organização e métodos.


A asserção é definitiva, sólida, irreparável: "Isso é científico". Críticos dificilmente em alguma circunstância praticam palinódia ou palimpsesto? Em crítica literária, páginas não são rasgadas, e nessa estrada real continuaremos a ser ― até quando? ― um galho menor de um certo arbusto de tal jardim das musas logocêntrico. Negro jardim onde verdades soam e o mal da vida em ecos não se dispersa.


Quem faz essas considerações inquietas é alguém que já publicou mais de uma centena de textos sobre literatura, em parte por exigência de um sistema todo-poderoso que quantifica o saber do professor universitário, embora pouco o qualifique. Todas essas publicações, entretanto, não redundam em segurança quanto à abordagem do texto literário, e confiança quanto ao papel do crítico.


Seria o crítico realmente um leitor privilegiado? Se refletirmos sobre a palavra privilégio, procuraremos saber em que circunstância ela pode ser utilizada para relacionar o crítico ao chamado leitor comum. Não se pode atribuir ao crítico uma sensibilidade à arte maior do que qualquer outra pessoa, nem capacidade especial de se emocionar diante da utilização artística da linguagem, nem mesmo de buscar no exterior do texto literário uma explicação, visto que o sociólogo, o psicanalista, o historiador, o antropólogo, o militante marxista, e até mesmo o biólogo e o químico podem fazê-lo com mais competência do que o crítico ou teórico da literatura, conforme o tema objeto da explicação. Resta então, possivelmente, um saber duvidoso que tem que ser magnificado para justificar a atribuição de um título de doutor a quem lida com o inútil, e evidentemente os títulos é que movem as vaidades e as verbas nos meios universitários.


Que saber é esse, afinal?


Para Heidegger, a obra de arte dispensa o saber. Sua verdade reside na profundeza intranquilizante que se transforma em negócio de arte quando se aproximam o perito e o habitual: "A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a própria existência no abismo de intranquilidade da verdade que acontece na obra." (HEIDEGGER, 2008, p. 54).


Numa das mais belas reflexões sobre a arte que o pensamento ocidental resistente à barreira metafísica produziu no século XX, Heidegger, em A origem da obra de arte, afirma que o saber da arte, "enquanto querer, não arranca a obra de seu estar-em-si, não a arrasta para o âmbito da mera vivência e não a rebaixa ao papel de um estimulante de vivências" (HEIDEGGER, 2008, p. 54)... "Em absoluto, o saber no modo da salvaguarda nada tem a ver com aquele conhecimento do erudito que saboreia o aspecto formal da obra, as suas qualidades e encantos" (HEIDEGGER, 2008, p. 55).


Ainda segundo o pensador, "uma obra só é real como obra na medida em que nos livramos de nosso próprio sistema de hábitos e entramos no que é aberto pela obra, para assim trazermos a nossa essência a persistir na verdade do ente". A existência da verdade na obra é um "instaurar como oferecer, instaurar como fundar e instaurar como começar". "A verdade, que se abre na obra, nunca é atestável nem deduzível a partir do que até então havia" (HEIDEGGER, 2008, p. 60). Heidegger, portanto, desvincula a arte dos saberes organizados e preexistentes à obra. Do ponto de vista de linguagem, arte é arte; ciência é ciência.


A lupa redutora da crítica afasta a arte. Como agir no infinito? Consoante Maurice Blanchot, só compreendemos a literatura depreciando-a, uma vez que a abordagem crítica é em geral ordenadora e demonstrativa:


"Se a reflexão imponente se aproxima da literatura, esta se torna uma força cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão se poderia impor. Se a reflexão se afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca" (BLANCHOT, 1997, pp. 292-293).




Segundo Roland Barthes, "todas as ciências estão presentes no monumento literário" (BARTHES, 2002, p. 18). Entretanto, os saberes não se fixam no texto de arte; estão sempre a girar, o que torna boa parte das vezes inútil o trabalho de demonstração e fixação empreendido pelos críticos. Ao final de sua "Leçon", Barthes sugere uma atitude de aproximação ao discurso literário, seja pelo ensino da literatura ou, por extensão , pela crítica, que ele denomina Sapientia: "nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível" (BARTHES, 2002, p. 47).


Foucault parece ter uma impressão favorável da crítica mais recente, que tenderia, segundo ele, a produzir uma espécie de texto híbrido de uma atitude demonstrável e explícita sobre o texto literário e ao mesmo tempo tornar-se um ato de escrita literária, um segundo texto que se aproximaria da linguagem primeira, ou seja, uma linguagem também artística. Talvez essa seja uma saída para o excesso de ciência que parece ter tomado conta da crítica desde sempre, plena de demonstrações, explicações e determinações. Quanto à crítica demonstrativa, Foucault não vê nela uma metalinguagem, uma vez que a literatura é a suspensão do código linguístico, enquanto a linguagem que se diz científica é conformidade ao código. Nesse caso, não teríamos um código falando do mesmo código.


E Tutameia? Como podemos situar os olhares sobre essa escrita singular nesse contexto? Em afirmação verbal supostamente presenciada por um só e escrita e reescrita como se a própria pessoa física do autor a tivesse feito, supondo que tivesse autoridade para isso, lê-se: " ― Senão eles achavam tudo fácil" (ROSA, 2001, p. 16). Ante a perplexidade deles, ergue-se esse texto que nos assombra, que já foi tachado de involução e regressão, que durante décadas afastou os olhares dos que veem na obra literária rosiana um sistema em que transitam o poder, a política, as determinações sociais, ao lado do amor e da magia, seu regionalismo e universalismo intrincados, e não raro uma linguagem "instrumentalista", "experimentalista", nomes horríveis para designar precariamente a magia e o fascínio de um código sempre classificado, desmontado, hierarquizado.


Tutameia, entretanto, parece ter-se esquivado da "grande" crítica, quiçá excessivamente grande para ocupar-se de coisas tão miúdas em sua infinitude.


Percebemos, pelas pesquisas feitas no oráculo do século XXI, a internet, que na última década Tutameia tem sido alvo das reflexões de jovens críticos universitários, muito mais em dissertações de mestrado do que em teses de doutorado, segundo o dedo oracular, a apontar para direções incertas. Deve-se isso ao fato de que esses jovens têm menos medo de errar, por estarem menos contaminados de um saber crítico engessador? Ou seria simplesmente o que lhes restou da obra de Rosa, salva misteriosamente da sanha explicativa que assolou Sagarana e Grande Sertão? Essa é a punição que sofrem as grandes obras, por serem grandes: montanhas, pilhas de críticas, desmontes, explicações, verdades sobre verdades. Faz lembrar o Quintana: o que é preciso ler para conhecer Shakespeare?


Tutameia é escritura, tematicamente, organicamente. Como ler esse texto sem penetrar nos meandros da tessitura escritural, no incômodo das provocações aos olhares presumidamente pacificadores sobre esses pequenos textos mais do que singulares? Essas terceiras estórias que não tiveram segundas parecem construir-se sobre pistas que despistam os críticos, os quais tentam desesperadamente ajustar os nasóculos para examinar o lepidóptero, que afinal escapa esvoaçante pelas frestas da janela do enquadramento.


Num texto em que toda ordem se desordena, a começar pela ordem alfabética dos títulos, buscamos alguns fragmentos de pistas que despistam, que advertem, que desafiam a capacidade enquadradora dos críticos, que desorientam sua pretensão explicadora.


Já nos prefácios (que prefaciam esses prefácios?), que se repetem numa diversidade impressionante, as considerações sobre a singularidade do ato de escrever constituem a tônica dominante. No primeiro, o enunciador já avisa: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, quer ser contra a História" (ROSA, 2001, p. 29). A curiosa gradação dos "gêneros" (estória-história-História) parece denunciar a recusa do sistema binário, e preservar sua excentricidade. E ao falar do humor na literatura, o prefaciador, na contramão do pensamento corrente de que o riso é algo menor, afirma que ele "escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento" (ROSA, 2001, p. 30). E conclui sem fechar, antes em movimento de abertura, em pista preciosa: "O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber" (ROSA, 2001, p. 40). No prefácio seguinte, "Hipotrélico", um aviso aos puristas de plantão: as palavras que não existem passam a existir quando se apresentam na escritura. E daí em diante não adianta reclamar de sua não-existência. Em "Nós, os temulentos", o pronome de primeira pessoa deixa pouca margem a dúvidas sobre a ebriedade do escritor e sua escritura, levando-nos a evocar o narrador machadiano, aquele que acusa seu livro e seu estilo de serem bêbados, de não acertarem o rumo do caminho e de soçobrarem por descontrolados. Lembra ainda "O homem que sabia javanês", de Lima Barreto, cuja narrativa delirante, sua leitura do livro ilegível, seu livro de areia, na língua estrangeira que só ele entende sem entender nada, só é possível se se considerar a ebriedade da escritura, execrada pelo crítico na condenação à cerveja. Lembra também o próprio Rosa em texto anterior a Tutameia: na linhagem dos grandes borrachos, a cachaça ingerida pelo personagem de "Meu tio o Iauaretê" desajusta e desautoriza o discurso, contribuindo para sua transfiguração no balbucio inumano, instaurando-se aí tal instabilidade que impossibilita o desenlace. Tal cena se reduplica no guia de cego de "Antiperipleia", o que só conduz bêbado. Por conseguinte, como poderão os críticos enquadrarem a escritura embriagada?


Há que se mencionar ainda o último prefácio, bastante estranho, "Sobre a escova e a dúvida", a sugerir que nem a escovação de dentes nem a escritura têm lógica; sempre permanecerá a incerteza. Nos sete fragmentos desse insólito prefácio, transparecem preciosos deslindes sobre o ato de escrever, que não revelam certezas; ao contrário, amontoam dúvidas. Coisas do tipo "Você evita o espirrar e mexer da realidade, então foge-não-foge..." (ROSA, 2001, p. 211); ou então "Meu duvidar é da realidade sensível aparente ― talvez só um escamoteio das percepções" (ROSA, 2001, p. 212); ou ainda "Tudo é então só para se narrar em letra de forma?" E, após demonstrar espanto com o próprio ato de escrever, dele, Guimarães Rosa, com as maneiras inusitadas como a escritura veio a ele, e depois de falar do romance que ia escrever e nunca escreveu, declara: "Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente" (ROSA, 2001, p. 226).


O próprio prefaciador da oitava edição da Nova Fronteira defende "outra tentativa de abordagem" (ROSA, 2001, p. 20) dos textos singulares de Tutameia. Paulo Rónai reconhece ter sido ludibriado pelo texto, admite ter cometido equívocos em sua leitura, atitude admirável e raríssima em um crítico literário. Contudo, chega a falar em "interpretações erradas", como se a escritura de Rosa pudesse submeter-se às cândidas oposições binárias de certo-errado conforme a dialética. E parece piorar tudo ao terminar suas considerações com uma assertiva insustentável, ao supor que o autor pudesse carregar consigo a chave de seu enigma: "Só poderia dizê-lo quem não mais o pode dizer; mas será que o diria?". Esse querer-dizer presumido não é rosiano; não pode ser encontrado em Tutameia. Não há uma verdade escondida por trás das palavras do livro, não há chave a descortiná-las. Há uma escritura a se tecer em sua própria verdade escritural, uma verdade, digamos, heideggeriana, que se constrói em sua interação com o olhar perplexo do leitor.


Quanto às estórias, foi impossível escapar ao inevitável recorte para levantar algumas pistas do despistamento.


Ao final de "Retrato de cavalo", após uma narrativa de luta entre a vida e a representação, Bio e Iô Wi tentam se consolar: "Mais foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da noite" (ROSA, 2001, p. 192). Como reflete Blanchot, o problema do escritor é que ele possui apenas o infinito, e aí não se pode agir, o que não tem fim não se desmonta, os fragmentos em rotação irregular não logram produzir um acordo sobre a obra de arte. Assim, a noite alta da escritura segue mero discursando seu discurso infinito.


Em "Antiperipleia", o guia do cego, aquele que devia conduzir tanto o cego quanto a narrativa, é um ébrio contumaz, e não hesita em afirmar: "O pior cego é o que quer ver..." (ROSA, 2001, p. 44). Ver é compreender, o crítico não só quer compreender bem a obra, mas igualmente explicá-la aos leitores, dar-lhe um fim. Na singularidade de Tutameia, quem vê Deus morre.


Em outra narrativa, há um touro. O touro é o "Hiato", a falha, a lacuna da escritura, o indecidível, o que não se afirma. De início, o texto se faz um espaço pacificado e tranquilo, dentro da manhã "indiscutível", o significante feliz com sua capacidade de representação, sua segurança do dizer, a detenção e a veiculação do saber pela escritura. Contudo, há algo na escrita literária que desestabiliza as asserções quando a tessitura adentra uma mata em clausura e adverte: "O ar estava não estava. Ou nem há-de detalhar-se o imprevisível" (ROSA, 2001, p. 103). A presença do touro inaugura a "total desforma" (ROSA, 2001, p. 103), o mal-estar, o abalo do demoníaco e do impossível. O simbólico torna-se diabólico.


Muitos outros textos encenam o desassossego da escritura que não é da ordem da compreensão: "João Porém, o criador de perus", cuja história de amor é escrita pelo falar alheio, ele que se vê embarcado nela: "Sabia ter conta e juízo, no furtivar-se; e, o que não quer ver, é o melhor lince" (p. 120); "Desenredo", em que Jó Joaquim muda, transmuda a realidade pela força da narrativa: "Jó Joaquim, genial, operava o passado ― plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?" (ROSA, 2001, p. 74); "Palhaço da boca verde", em que Ruysconcellos comete o terrível engano de jogar fora a parte errada do retrato rasgado ao meio, a representação equivocada do amor: "Era o homem ― o ser ridente e ridículo ― sendo o absurdo o espelho em que a imagem da gente se destrói" (ROSA, 2001, p. 172); "Esses Lopes", em que Flausina reescreve sua própria história, diferente do que se espera de uma mocinha tímida, etc, etc e etc.


Por desordem metódica, contudo, convidamos a fechar essas considerações aquele continho meio esquecido lá nas Primeiras estórias, o "Substância", em que o amor de Sionésio por Maria Exita só é possível devido ao clarão da brancura sem igual do polvilho ao sol, que provocou no amante o necessário esquecimento de todo o saber que circulava em torno da amada. Assim em semelhança nos invade a ideia de que a ciência dos homens obscurece a paixão e reduz a arte; só o clarão ofuscante no avesso da metafísica iluminista propicia o desocultar da obra, que não reside em nenhum saber crítico.


Tutameia, chorumela, rexinflório, tuta e meia. Desde a primeira leitura do livro, há três décadas, uma certa malícia sempre me fez associar o significante do título a uma expressão comezinha que rola em nosso falar de intimidades: puta merda. Seria ilícito pensar que Tutameia quisesse responder ao engenho da crítica com a forma mais sonora dessa expressão? Tudo são conjecturas...













Referências bibliográficas




BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés.10 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.


BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo.


CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção (Seleção, apresentações e notas de Vinícius Dantas). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002 (col. Espírito Crítico), 392 pp.


FOUCAULT, Michel. "Linguagem e literatura". In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Trad. de Jean-Robert Weisshaupt e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.


HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. de Maria da Conceição Costa, Lisboa: Edições 70, 2008.

Sunday, September 26, 2010

O mestre e o refém:

a tolice do mundo

em Esaú e Jacó

Por Cid Ottoni Bylaardt


No processo de metamorfose da aventura romanesca, Jacques Rancière, em Políticas da escrita, distingue dois tipos de movimentos: numa primeira forma, a onipotência do escritor, do pai do discurso, cria narradores e personagens que devem dar consistência ao relato, que fingem fazer asserções, estabelecendo as convenções do cerimonial literário, as quais constituem a regra séria do não-sério, fazendo da literatura filosofia; na segunda, procede-se a uma inversão das posições do mestre do relato e de seu refém, o personagem. Com relação ao primeiro caso, Rancière distingue ainda duas manifestações: a do mestre de vida, que define o espírito da letra com intenção de veicular uma experiência e um aprendizado, como ocorre em Iracema, de José de Alencar, em que os antagonismos deságuam em um desfecho ideológico; e a do mestre de jogo, que joga com a letra desdobrando-a ao infinito, com intenção lúdica, na posição do marionetista, do deus-ausente, do Grande Bibliotecário, "el Hombre del Libro" de Borges, multiplicando-se na reflexão sem limite do espelho.

O segundo movimento, objeto desta investigação, conduz à ideia de intransitividade, de autonomização, ou de absolutização. Num certo ponto-de-vista, esse tipo de fabulação é percebido como um desvio da função comunicativa da linguagem, como um desdobramento do discurso sobre si mesmo. Numa visão sartriana, esse tipo de escrita é derivado de uma postura niilista, ressentida, reflexo da "Revolta do artista contra o Pai e a Burguesia".

Rancière propõe então, numa terceira maneira de ver, que essa "absolutização" do estilo seja compreendida como uma arte nova que não dispensa a transparência da prosa banal, de sua transitividade, ao mesmo tempo que mantém sua autonomia, sem se esconder na solidão da linguagem. Trata-se de escrever bem o que é vulgar, o que é medíocre, o que já perdeu o sentido de tanto ser dito e escrito, numa "mimese integral", numa "mimese superior, tão louca quanto a de D. Quixote imitando sem razão a loucura de Orlando", ou seja, o descabido, o desproposital, o sem-sentido.

Esse movimento, entretanto, só pode realizar-se se o artista assumir a paixão do personagem, ocupando sua posição, tornando-se o louco da letra, o refém de seu refém, definindo assim sua vida escrita. Inverte-se aí o processo de construção da obra, que consistia num acúmulo de material e de seu consequente aperfeiçoamento, conformação, harmonização. Na obra invertida, sobressai o seu inacabamento, sua incompletude, "inteiramente entregue àquilo contra o que ela se construía: a tolice do mundo, o todo-dito, sempre já dito".

Essa assunção do autor, que passa a ocupar a posição de refém do texto e da fabulação romanesca, possibilita a ele fazer falar o não-sentido das coisas, de dar voz à mudez do medíocre, transformando "o grande corpo opaco da prosa do mundo e o grande corpo opaco da erudição" em enunciação transparente de uma ideia dentro de seu discurso.

Em Esaú e Jacó, Machado de Assis realiza essa prosa absolutizada que consegue preservar a transparência do signo mantendo a autonomia da escrita, que se sustém sem as convenções do cerimonial literário. Possivelmente, essa ausência de verdades e descrença em erudições, insistentemente enunciadas, essa incorporação da posição do refém é que originou as críticas de Sílvio Romero à escrita do criador do conselheiro Aires:


O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rútilo, nem grandioso, nem eloquente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem.

Machado de Assis repisa, repete, torce e retorce tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão de um tal ou qual tartamudear. Esse vezo, esse sestro, tomado por uma cousa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humour, era o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra.


O que Romero chama de "índole psicológica indecisa" penetra o romance de Pedro e Paulo, em que se faz sentir a presença do autor em seu "tal ou qual tartamudear". Essa gaguez, que Gilles Deleuze relaciona a uma "sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática do desequilíbrio", denuncia a presença perplexa do autor no palco do mundo, onde impera a asneira. Trata-se de "trabalhar sob as histórias, de fender as opiniões e de chegar às regiões sem memória". Ao tratar desse "não-estilo", Deleuze cita Andrei Biely (membro da trindade russa "três vezes gaga e três vezes crucificada"), cuja observação se aplica à escrita de Machado:


O leitor verá desfilar apenas os meios inadequados: fragmentos, alusões, esforços, investigações, não procureis encontrar aí uma frase bem polida ou uma imagem perfeitamente coerente, o que se imprimirá nas páginas será uma fala embrulhada, uma gaguez...


A tolice dos personagens e do mundo é apontada por Aires no verso "truncado" de Dante Alighieri que ele escreve em seu diário e que a voz textual, exercitando seu tartamudear, hesita em adotar como epígrafe do livro depois de efetivamente tê-lo feito, como se até então não houvesse epígrafe nenhuma. Tal paspalhice não significa que o escritor seja mais um tolo na história, mas a ficção dos insípidos inverte a tradicional coerência da obra literária, forçando-a a retornar ao meio de onde ela retirava seus materiais, alguns dos quais, eleitos pelo decoro, seriam depurados e polidos como cristais.

Machado não pule seus achados; ele os conserva no estado bruto a que a "civilidade" do mundo os condena: a insipidez, o narcisismo, a hipocrisia. Afinal, essa matéria serve para escrever livros, como afirma o locutor no capítulo XXXVI, a respeito da discórdia, que propiciou a criação dos "grandes livros épicos e trágicos". Num acesso de falsa desambição, o locutor cuida de excluir seu livro dos que foram escritos para dar vida à discórdia, em nome de uma certa "Modéstia, que mal suporta a letra capital que lhe ponho".

O autor então se submete a toda essa mentira, a toda essa loucura, que parece organizar-se dentro de uma certa lógica literária, mas que espelha exatamente a desordem do mundo, a relação ambígua com o leitor, os múltiplos textos cuja verdade não pode ser verificada no espaço da sociedade. Trata-se de escrever bem o medíocre, escrever bem a respeito de nada, como afirma o locutor do livro no capítulo XLVI: "a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa". A impossibilidade da verdade pelo excesso do dito é afirmada explicitamente no capítulo XXI: "as orelhas da gente andam já tão entupidas que só à força de muita retórica se pode meter por elas um sopro de verdade".

As inversões de que fala Rancière podem ser percebidas em Esaú e Jacó, primeiramente, a partir da "Advertência", que embaralha a identificação das vozes e dos corpos e que determina a submissão do escritor à fábula em que encerra seus personagens. A voz que fala na "Advertência" é passiva, de corpo indeterminado, que não define o pai do achado. A narrativa dos gêmeos é o sétimo caderno, que tem o nome de "Último", da escrita deixada por Aires após sua morte. Quem faz a advertência não a assina, o que dá motivos a especulações: ele pode ser Machado de Assis, ou um narrador sem corpo, ou o editor anônimo dos cadernos de Aires, ou o próprio Aires. Não se identifica quem recolheu o manuscrito, quem sugeriu os vários títulos para a narrativa, como o presunçoso Ab ovo, quem decidiu pela denominação Esaú e Jacó. O prefácio, antes de esclarecer, termina por confundir o jogo de vozes, criando o enigma da enunciação.

É curioso observar que na "Advertência" a Memorial de Aires, livro posterior a Esaú e Jacó, o locutor refere-se à narrativa dos gêmeos, mostrando-se em primeira pessoa, e subscrevendo suas iniciais: M. de A. Essa assunção tardia da paternidade do texto já então em circulação contribui para aumentar a confusão entre as vozes e os corpos.

Quanto à voz condutora da ação, supõe-se, de início, que o conselheiro seja o narrador da história, e é com essa impressão que o leitor inicia o romance. Entretanto, o suposto narrador é introduzido como personagem a partir do capítulo XII, e permanece na narrativa como tal até o último capítulo. Aqui um narrador, em terceira pessoa, que aliás não parece ser um só, refere-se a um personagem que se julgava ser ele mesmo, chegando inclusive a confrontar-se com ele:


Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo.


Na sequência, um reles burro empacado determina o desembaraço da narrativa.

É possível supor a existência de um narrador central, que conta os fatos do relato (nível do enunciado) e faz ao mesmo tempo as críticas e comentários (nível da enunciação). Aires seria, então, uma espécie de co-narrador, que enriquece os fatos e reflexões com sua visão de mundo, que pretende ser a mais imparcial possível.

Outra leitura possível é a de que existe um autor real (o próprio Machado), e um pseudo-autor (Aires), mencionado na Advertência por uma voz também ficcional (um editor qualquer?). O autor real seria, assim, um narrador implícito, aquele que tece comentários e faz reflexões que serpenteiam pelo enunciado da ação, narrada por uma voz que não pode ser identificada. Esse "eu" sem corpo mostra-se no capítulo XLVIII, em que ele nega sua presença no livro, sua participação na narrativa:


Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo.


Há também a possibilidade de que Aires seja um duplo de narrador e de personagem. A partir da "descoberta" dos cadernos de Aires, um certo editor, que seria o autor da Advertência, teria publicado a narrativa tal qual constava do caderno chamado Último. Nesse caso, Aires relatou os fatos distanciando-se inclusive de si mesmo, que, como personagem, transitava no nível da ação, e como narrador ajustava seu foco nas ações e nas reflexões, como uma luneta que se aproxima e se distancia, inclusive citando entre aspas
seus próprios escritos do Memorial sobre os acontecimentos das vidas dos gêmeos e seus desdobramentos.

Assim, não é delírio supor que exista um ghost-Aires na narrativa que nos chegou às mãos, para manter o caráter instigante e desafiador do texto.

Sabe-se que Machado tem pavor à onisciência, daí a multiplicidade de vozes. Sabe-se também que ele tem mais pavor ainda à obviedade, daí as múltiplas leituras possíveis. Em tudo isso, é importante que se identifique, além das vozes das personagens, pelo menos duas locuções que transitam no romance: há uma voz que narra a história, os acontecimentos que envolvem os personagens; há também uma outra voz, entremeada e às vezes amalgamada à anterior, que tece comentários e críticas, realiza reflexões, chama a atenção do leitor para determinados fatos, cita a História do Brasil, a mitologia clássica e cristã, trechos de obras da literatura universal e, o mais importante, constrói a escrita diante do leitor. Essa locução tem, além disso, a função de espalhar pela cena as sobras, os recortes, os fragmentos. Um belo exemplo desses sobejos é a história das barbas (capítulo XXIII), cuja função diegética é desprezada pelo próprio locutor:


Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não a entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo.


Esses tropeços, essa gaguez do escritor vão deixando pela obra acúmulos e cortes de elementos, escritas que se sobrepõem a outras escritas, saltos no tempo ("tecido invisível em que se pode bordar tudo"), contradições inexplicáveis, intromissão de leitora que provoca o atraso do relato e a fúria do escritor, as ruínas pintadas por Flora, o armário de relíquias de Aires, os pedidos de desculpas pelos objetos espalhados por todo lado na narrativa.

É importante perceber também, na obra, as diferenças, o estranhamento, as dualidades que não se resolvem. Machado tanto recusa a obviedade como rejeita o previsível. A começar pelo nome do romance: quando procuramos saber quem foram Esaú e Jacó, encontramos dois gêmeos da Bíblia que brigaram no ventre da mãe e que nasceram e viveram boa parte de suas vidas sob o signo da rivalidade. A semelhança é óbvia, portanto? Não, quando se verifica que a principal característica dos gêmeos do romance é sua teimosa determinação em não se reconciliarem verdadeiramente, embora houvessem jurado que mudariam aos pés das duas defuntas mais queridas de suas vidas, Flora e Natividade. Os gêmeos bíblicos, entretanto, reconciliam-se realmente e vivem em harmonia pelo resto de suas vidas. Outra grande diferença: Esaú e Jacó tiveram uma vida atribulada, tendo sido agentes de seu próprio destino e líderes de nações; Pedro e Paulo, ao contrário, levaram uma vida medíocre e passiva, à sombra do prestígio e do dinheiro do pai.

O suporte bíblico, portanto, evidencia mais diferenças do que semelhanças, revelando a impossibilidade de se verificar no mundo real a verdade dos livros. O mesmo se pode dizer de comparações entre Pedro e Paulo e outras duplas famosas, como São Pedro e São Paulo e Castor e Pólux. Por mais que Santos o quisesse, seus filhos não tinham nada de santos. Castor e Pólux, por sua vez, são gêmeos da mitologia grega, muito valentes, companheiros inseparáveis, unidos por profunda afeição. A mesma Flora, cujo nome foi tomado da deusa grega da eterna juventude, morre bem jovem, contrariando a previsão implícita feita em sua pia batismal. Mais uma vez, o livro não se verifica no mundo.

O que ocorre com as fontes mitológicas acontece também com o suporte histórico e com o literário.

A história do Brasil, insistentemente citada pelos locutores, parece fornecer uma referência central para os acontecimentos, e para as atitudes de Pedro e Paulo. Vejamos, entretanto, as relações entre os gêmeos e a dualidade histórica mais importante da narrativa: monarquia x república. Inicialmente, Pedro é a favor da monarquia e Paulo defende a república. Mais tarde, quando já estão na política, Pedro torna-se republicano e defensor intransigente do governo, enquanto Paulo se torna insatisfeito com a república, que não corresponde aos seus ideais, e faz oposição ao governo. Percebemos, então, que não temos uma narrativa a serviço da História, ou do mito, mas uma série de referências, inclusive literárias, que particularizam a narrativa, com um evidente descentramento do apoio histórico ou mitológico, a serviço da diferença, da oposição, da dualidade.

Exemplo talvez mais marcante da inutilidade das crenças e das verdades é a história do Batista, pai de Flora, o qual, por insistência da esposa, passou-se com ligeireza dos conservadores para os liberais. Sua relutância inicial subordina-se mais à parvoíce do personagem do que propriamente a sua idoneidade ou firmeza de convicções.

A atitude de Batista encontra ressonância na imagem que o locutor realiza no capítulo LIII: ao folhear dois Relatórios de uma presidência do Batista, ricamente encadernados, que continham suas prestações de contas, Aires comenta que "a encadernação corresponde à matéria". A metáfora sugere que o conteúdo é tão superficial quanto o luxo da encadernação e, por extensão, que o personagem é tão profundo quanto a roupagem que usa.

Na relação infinita de tolices, Santos, o pai dos gêmeos, que representa a glória do self made man burguês, supera os demais. Sua vida é toda devotada à aquisição de emblemas de felicidade burguesa: carros caros, título de nobreza, casa luxuosa, enfim, todo tipo de ostentação, que lhe confere, aos seus próprios olhos, a admiração e a inveja de toda gente. A pompa vazia do burguês é ilustrada no caso do discurso "incendiário" de Paulo, que a mãe extremosa temia pudesse estragar sua carreira. O irmão Pedro, para amenizar os efeitos do discurso, declarou que ele "não diferia muito do que os liberais diziam em 1848". O pai pegou o mote e repetiu-o à própria princesa Isabel, como uma forma de valorizar o discurso do filho e de abrandar seu furor, fazendo-o passar por monarquista liberal. Ante o relato do pai, Pedro se surpreendeu:


¾ Papai disse isso? perguntou Pedro.

¾ Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.


Note-se que Santos tenta "convencer o filho" de algo que ele se apropriara do próprio filho. E assim termina o capítulo, sem mais explicações, e o leitor é que trate de ruminar a contradição com o máximo de estômagos no cérebro, se possível quatro.

A erudição literária também aparece como o discurso do excesso e do inútil. No capítulo XIII, ironicamente intitulado "Musa, canta...", o conselheiro presenteia aos dois gêmeos duas citações de Homero, uma da Ilíada e outra da Odisseia, respectivamente sobre Aquiles e Odisseu. A epopeia é o corpo glorioso de um povo, contém a verdade de uma raça; as virtudes dos heróis épicos transpostas para os irmãos acabam por reduzi-las a "velhaco" para Pedro e "furioso" para Paulo, fazendo desmoronar os princípios homéricos.

Como se não bastassem as verdades surradas da erudição, Aires elabora as suas próprias, elevando-as às alturas dos grandes escritores, como a frase "Toda alma livre é imperatriz.", proferida à guisa de galanteio a Flora. Vale reproduzir o comentário de Machado:


A frase era boa, sonora, parecia conter a maior soma de verdade que há na terra e nos planetas. Valia por uma página de Plutarco. Se algum político a ouvisse poderia guardá-la para os seus dias de oposição ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que ele mesmo escreveu no Memorial. Com esta nota: "A meiga criatura agradeceu-me estas cinco palavras".


Verifica-se que o locutor compartilha com Aires o comentário, assumindo o desconchavo da erudição digna de um político, disfarçando em verdade o que há de mais opaco e sem sentido no mundo.

A mesma opacidade se verifica com a frase tomada do padre Manuel Bernardes, escritor português do século XVII: "Alonguei-me fugindo e morei na soedade". O dito foi tomado por Aires como sua "divisa" em determinada época da vida, a que depois renunciou. O narrador faz então referência a uma possível utilização da frase pelo pai dos gêmeos: "Santos, se lha dessem, fá-la-ia esculpir, à entrada do salão, para regalo dos seus numerosos amigos". O personagem, em seu medíocre deslumbramento, veneraria o poder ostentatório do significante da frase, que nada tinha a ver com sua vida. A frase teria o mesmo brilho da estátua de Narciso que o personagem cravou em seu jardim.

Ao discurso do excesso e do inútil soma-se a falha da letra sem corpo. Machado de Assis tem consciência da errância da letra sem pai no mundo que aponta para a deslegitimação, a perturbação democrática, a mobilidade do discurso a par da mobilidade social:


Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias. As próprias ideias sem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas.


Essa consciência da orfandade das palavras, Machado a revela ao assumir a inversão da posição de mestre com seus reféns, seus personagens, ao compartilhar com eles o palavrório do mundo. A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como ocorre na desordem democrática, que busca lançar por terra a separação entre superiores e inferiores em níveis diversos. O escritor abandona então a posição clássica do ser onipotente que gera filhos submissos, a qual faz dele mestre de vida ou mestre de jogo. Nessa inversão, são rompidas as regras que distinguem as formas da linguagem comum e as da palavra artisticamente trabalhada.

Na posição de participante da fábula, o conselheiro Aires é testemunha da estupidez da sociedade, e de certa forma participa dela e com ela é conivente, sustentando-se da parvoíce da tribo. Ele age como copista da vida, que registra sem contribuir para que nada mude, fugindo sempre do debate, mantendo sua cômoda posição. É evidente sua predileção pelas mulheres, que sempre exercem fascínio sobre ele, e às vezes enchem-no de uma recôndita esperança de ser amado, como em relação a Natividade e Flora, em que pese a diferença de idade entre ele e a jovem filha do casal Batista. É sua a frase: "¾ Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, agrava". Sua amizade às mulheres não o impede, entretanto, de trair a promessa feita a Flora de tentar persuadir o pai de não aceitar um cargo que tirasse a família do Rio de Janeiro (capítulo LIII), e ele não demonstra pesar por isso: "não se arrependia do que dissera e muito menos do que não dissera". Ele é o conselheiro que não consegue dar conselhos, embora seja admirado por sua seriedade e por sua habilidade com as palavras, que frequentemente não querem dizer muita coisa, mas parecem impressionar os homens e as mulheres. O personagem tem, entretanto, consciência de que os humanos são seres acabados, imutáveis, conforme seu veredito pessoal, que ele não propaga para evitar dissenções:


Aires sabia que não era a herança, mas não quis repetir que eles eram os mesmos, desde o útero. Preferiu aceitar a hipótese, para evitar debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.


Essas são as palavras finais do romance, que confirmam a mesmice do ser humano, sua vaidade eterna, sua incapacidade de crescer e se desenvolver, mudando aqui e ali uma aparência ou colhendo uma frase para viver melhor e aproveitar as situações.

Esse é o jogo fascinante e perturbado que o romance Esaú e Jacó apresenta entre o autor, o narrador e os personagens, e que leva o escritor a abandonar sua posição de prepotência para assumir a desordem do relato. Encontra-se aqui o velho tema do escrito achado, que confere à narrativa um caráter de "verdade", de "relato verdadeiro", que se opõe às "ficções" e "lendas" do poema homérico, as quais estabelecem as convenções da representação. Despindo-se das concepções clássicas de inventio (assunto), dispositio (organização das partes) e da elocutio (tons e complementos coinvenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto), com seus parâmetros reguladores, o escritor permite-se romper com as regras da mimese e termina por assumir as paixões e erros de seus personagens. Assim, ele preserva a autonomia de seu texto, numa obra gaguejante que escreve bem a tolice do todo dito e a banalidade da prosa comum.



BIBLIOGRAFIA


ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Século XXI, 2000.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.

ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 7.ed. V.5. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1980.

Friday, June 04, 2010

Intenção e recepção em
Iracema, de José de Alencar
Cid Ottoni Bylaardt *


Resumo
O sentido de um texto supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e os leitores que virão terão uma carga de acumulação histórica adicional em relação a ele. Isso não significa que os intérpretes tenham uma compreensão melhor, em que pese sua superioridade histórica em relação ao autor, mas uma compreensão diferente. Este texto pretende mostrar como, em Iracema, apesar de tantos cuidados e explicações, José de Alencar não conseguiu evitar que o tempo trouxesse a sua obra novas visões e interpretações.
Palavras-chave: Intenção; Recepção; Iracema; História “efeitual”; Reciclagem.
Intenção e recepção em
Iracema, de José de Alencar
Cid Ottoni Bylaardt *
* Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará.


A questão da produção e da recepção em literatura, envolvendo intenção e interpretação, ainda provoca controvérsias. Esse é um dos vários assuntos levantados de maneira instigante por Antoine Compagnon (1999b), em O demônio da teoria. Em La notion de genre, Compagnon (1999a, p. 10) justifica o título de seu livro O demônio da teoria, atribuindo aos estudiosos
de literatura o caráter de gênios da tentação: “Je voudrais faire de vous des protestants de la théorie, des démons de la théorie [...]”. A teoria não pode, na opinião do autor, ser um vade-mécum comportado, cujo papel é o mais das vezes representado pelo senso comum, que inclui idéias preconcebidas, velhas concepções, linguagem corrente, noções populares. Sua ação tem de ser desafiadora e instigadora, deve provocar e propiciar “les conflits du sens commun et de la théorie, la résistence du sens commun, les excès de la théorie” (COMPAGNON, 1999a, p. 10). Fazendo da perplexidade a única moral literária, Compagnon pretende empreender um “combate feroz e vivificante” (COMPAGNON, 1999a, p. 10, tradução nossa) entre a teoria e o
senso comum, “toujours d’un point de vue sceptique, ironique, désabusé, non dupe” (COMPAGNON, 1999a, p. 10).

Os capítulos do livro de Compagnon (1999b) que tratam da problemática da concepção e da recepção são principalmente “O autor” (cap. II) e “O leitor” (cap. IV), embora toda a obra esteja perpassada por essas e por outras preocupações concernentes à teoria literária. Ao abrir a discussão sobre intencionalidade e não-intencionalidade, o autor invoca três “textos-guias” para iniciar o “delicado debate” sobre a pertinência ou não de buscar a intenção do autor para a melhor compreensão de um texto. Os textos são o prólogo de A vida inestimável de Gargântua, pai de Pantagruel (1534), de François Rabelais, Contre Sainte-Beuve (provavelmente 1905), de Marcel Proust, e o conto “Pierre Menard, autor del Quijote” (1941), de Jorge Luis Borges.

Compagnon (1999b) cita esses três textos como instigadores de uma busca. Procurar “o que o autor quis dizer” em um texto é acomodar-se a velhas noções; por outro lado, eliminar sumariamente o autor corresponde a ignorar a existência de um ser humano por trás do ato de criação. Que fazer então? Tentar conciliar os opostos? Partiremos das enunciações dos autores citados (e de mais alguns outros, especialmente Hans-Georg Gadamer) sobre o assunto, para em seguida empreender uma investigação da resistência histórica relacionada ao binômio concepção/recepção de um cânone da literatura brasileira: Iracema, de José de Alencar, obra publicada no ano de 1865.

No prólogo a La vie trés horrificque du grand Gargantua père de Pantagruel, Rabelais ([19—], p. XIX) adverte os leitores de que o livro dele não é recheado apenas de gracejos, zombarias e mentiras: “C’est pouruoy fault ouvrir le livre et soigneusement peser ce quy est deduict”. O autor segue afirmando que, embora os títulos dos capítulos possam parecer idiotices, o leitor deve esforçar-se por interpretá-los “à plus haute sens”. Comparando a leitura de seu livro ao trabalho de um cão ao quebrar um osso e comer o tutano, o leitor deve procurar o sentido alegórico de suas palavras, segundo os preceitos da antiga hermenêutica; assim fazendo, ele terá sua recompensa: “car en icelle bien aultre goust trouverez et doctrine plus absconce, laquelle vous revelera de très haultz sacremens et mysteres horrificques, tant en ce que concerne nostre religion que aussi léstat politicq et vie oeconomicque” (RABELAIS, [19—], p. XIX). Rabelais diz não acreditar que Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisséia, tivesse em mente as “allegories lesquelles de luy ont calfreté Plutarche, Heraclides Poticq, Eustatie, Phornute”; da mesma forma, as aventuras de Gargântua não têm quaisquer alegorias intencionadas por seu autor, mas o leitor pode interpretá-las ou criá-las à vontade, responsabilizandose por elas: “Pour tant, interpretez tous mes faictz et mes dictz en la perfectissime partie; ayez en reference le cerveau caseiforme qui vous paist de ces belles billes vezées, et, à vostre povoir, tenez moy tousjours joyeux” (RABELAIS, [19—], p. XIX). A intenção do autor, no caso de Gargantua, não é revelada, e o leitor tem o direito de construir a significação da obra. Na narrativa de Borges (2000), o escritor Pierre Menard escreve o Dom Quixote de Cervantes. Sua proposta não era copiar o Dom Quixote mas “producir unas páginas que coincidieran – palabra por palabra y línea por línea – com las de Miguel de Cervantes” (BORGES, 2000, p. 47). O narrador recusa considerar o texto
do personagem transcrição ou cópia do Dom Quixote do século dezessete, porque são duas obras diferentes, separadas por três séculos. O texto de Menard é, para o narrador, “casi infinitamente más rico” (BORGES, 2000, p. 52). Há ainda um contraste de estilos: Cervantes maneja o espanhol corrente de sua época, enquanto o estilo arcaizante de Menard sofre de alguma afetação. Enfim, o fato de os dois textos terem sido escritos por autores diferentes em épocas diferentes provoca interpretações diferentes. Nesse caso, o texto em si não é responsável único
pelas interpretações que se fazem dele: as circunstâncias de sua concepção são em grande parte responsáveis por sua compreensão. Assim, Pierre Menard enriqueceu o ato de ler com uma técnica inovadora, “la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas” (BORGES, 2000, p. 55).

O terceiro texto citado por Compagnon consiste numa reflexão crítica de Marcel Proust contra a crítica literária autodenominada “científica”, corrente no final do século XIX, que Proust (1988, p. 52) chamava ironicamente “botânica literária”. Essa crítica preocupava-se com a biografia do autor, a história de sua família, seus gostos, seus amores, o que pensava da religião e da natureza, sua condição de rico ou de pobre, seus vícios etc. Segundo Proust (1988, p. 52), esse método

[...] desprezava aquilo que uma convivência um tanto profunda com nós mesmos pode ensinar: que um livro é produto de um outro eu e não daquele que manifestamos nos costumes, na sociedade, nos vícios. Aquele eu, se desejamos tentar compreendê-lo, está no fundo de nós mesmos; tentando recriá-lo em nós é que podemos atingi-lo.

Proust não nega a existência de uma intenção; ele nega é o fato de que
essa intenção resida no homem comum, no escritor biográfico, quando na realidade
ela parte de um “outro eu”, que não pode ser revelado pela história de
sua vida.

Os três textos-guias citados por Compagnon (1999b), portanto, levantam
questões concernentes à existência de uma relação entre o contexto e o texto:
Rabelais pressupõe uma intenção, mas não a revela, deixando ao leitor o encargo
de construir os significados; Proust admite a intenção, mas não a deposita no
autor de carne e osso; Borges declara a importância dos contextos e das intenções
para a compreensão dos textos.

O contexto e a intenção podem ter sua importância, sim, mas o “querer-dizer”
do autor não pode ser o guia principal para a compreensão do texto,
como postulava a hermenêutica romântica, que pensava a compreensão como
uma reprodução das idéias originais do autor, propondo-se a compreender um
autor “melhor” do que ele se compreendia.

Hans-Georg Gadamer faz uma revisão dessa postura da hermenêutica romântica
em sua obra Verdade e método. Segundo ele, há uma tensão que “se
desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós,
entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma
tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica”
(GADAMER, 1999, p. 442 – grifo nosso). A distância histórica interpõe entre o
autor e o intérprete uma diferença intransponível, que impede o leitor de
reproduzir uma obra em seu contexto original. Para Gadamer (1999, p. 443),

Cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar,
pois o texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um
interesse pautado na coisa e onde também ela procura compreender-se a si
mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu
intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o
autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse
sentido será sempre determinado pela situação histórica do intérprete e, por
consequência, por todo o processo objetivo histórico.


O sentido de um texto supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e os leitores que virão terão uma carga de acumulação histórica adicional em relação a ele. Isso não significa que os intérpretes têm uma compreensão melhor, em que pese sua posterioridade histórica em relação ao autor, mas uma compreensão diferente, produto de uma reciclagem do texto. Esse é o conceito de compreensão que rompe com os postulados da hermenêutica romântica.

A constatação de que compreender diferente não significa trair o texto faz com que a distância de tempo não seja, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. “Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender” (GADAMER, 1999, p. 445). Gadamer vai além, afirmando que “a distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa” (1999, p. 446). Isso não significa que esse “verdadeiro sentido” seja atingido em determinado momento, porque o processo é infinito, a distância de tempo não tem uma dimensão acabada, donde se conclui que o verdadeiro sentido são muitos, dado o caráter de contínua renovação da “verdade”. O autor atribui ao ato de compreender um processo de “história efeitual” (GADAMER, 1999, p. 449), isto é, há sempre um efeito de acumulação histórica (e acúmulo de compreensão histórica) na própria compreensão da história das obras transmitidas.

É sob esse ponto de vista que se investigarão aqui as relações entre o texto de Iracema, de José de Alencar, as intenções de seu autor, e a recepção da obra no decorrer do tempo e, principalmente, na era contemporânea. Alencar teve para com seu texto cuidados especiais, tentando não permitir que ele errasse pelo mundo ao sabor de variadas interpretações. O que pretendemos demonstrar é que, apesar de tantos cuidados e explicações, o autor não conseguiu evitar que o tempo trouxesse novas visões e interpretações à obra.

O que chamamos “cuidados especiais” são os textos adicionais que normalmente acompanham o romance. São eles: o “Prólogo da primeira edição”, o “Argumento histórico”, a “Carta ao Dr. Jaguaribe”, publicada como posfácio à primeira edição, o “Pós-escrito à segunda edição” e as 116 notas distribuídas ao longo dos capítulos, num montante de textos que seguramente equivale ao tamanho do próprio romance, quase como se cada palavra da narrativa tivesse um correspondente metalingüístico a explicar-lhe a existência.

As preocupações do autor são muitas. No “Prólogo”, ele já se pergunta “qual sorte será a do livro?”, ao qual se refere como “o filho de minha alma” (ALENCAR, 1965, p. 46). O romance foi escrito e publicado no Rio de Janeiro, e a grande expectativa do autor era a recepção da obra em sua terra natal, o Ceará.

No “Argumento histórico”, Alencar (1965, p. 145) procura dar ao romance o suporte mundano e para tanto, embora tenha sempre o zelo de ser fiel à “verdade histórica” e confiar nas crônicas e escritos do século XVII, elege a tradição oral como “uma fonte importante da história, e às vezes a mais pura e verdadeira”.

Outra preocupação do autor, expressa na “Carta ao Dr. Jaguaribe”, é a de que a linguagem de seus índios não seja uma linguagem clássica, portuguesa, ou seja, que “a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara, e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem” (ALENCAR, 1965, p. 141). Nesse ponto, José de Alencar demonstra ter vivido um impasse. Dar à língua uma feição mais primitiva exigiria a incorporação de termos indígenas que não tinham correspondentes portugueses à altura da exigência poética. Essa tentativa seria, entretanto, compreendida pela recepção da obra? Valeria a pena concretizar a inovação correndo o risco de não ser compreendido? “Que fazer? Encher o livro de grifos que o tornariam mais confuso e de notas que ninguém lê? Publicar a obra parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto literário? Dar leitura dela a um círculo escolhido, que emitisse juízo ilustrado?” (ALENCAR, 1965, p. 142). Uma das soluções encontradas por José de Alencar foi escrever em prosa o texto que inicialmente deveria ser um poema épico, para que a flexibilidade desse tipo de escrita propiciasse maior espontaneidade às inovações. Ele não pôde, entretanto, abrir mão das “notas que ninguém lê”, que contam mais de uma centena em trinta e três capítulos.

Ao final da “Carta”, José de Alencar afirma que só a recepção de sua obra determinará a sua perseverança nesse gênero de literatura indianista, ou o seu abandono dele, e conclui prometendo a correção de alguns defeitos para uma próxima edição.

No enorme “Pós-escrito à segunda edição” Alencar tece extensas considerações ortográficas e gramaticais e defende-se da acusação de um crítico português, Pinheiro Chagas, que censura nos brasileiros “a falta de correção na linguagem portuguesa ou, antes, a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português por meio de neologismos arrojados e injustificáveis e de insubordinações gramaticais” (ALENCAR, 1965, p. 168). Como argumento para tal defesa o autor invoca o direito de “criar uma individualidade nossa, uma individualidade jovem e robusta, muito distinta da velha e gloriosa individualidade portuguesa” (ALENCAR, 1965, p. 171).

No mesmo artigo, argumenta a favor de uma linguagem brasileira e defende a verossimilhança de suas imagens – como a do índio que, do alto de uma palmeira, flecha um peixe na água –, a migração da jandaia e a existência do coqueiro no Brasil no século XVII. De tudo o autor defende sua utilização, citando documentos que comprovam sua existência. José de Alencar termina esse texto declarando: “É preciso pôr aqui termo a esse pós-escrito, para que não fique um livro acostado a outro” (ALENCAR, 1965, p. 181.). A propósito, esse pós-escrito tem vinte e uma páginas.

As notas aos capítulos têm funções variadas, com informações etimológicas e toponímicas, além de considerações sobre os costumes dos índios.

Todo esse aparato metalinguístico visa a proteger o “filho”, o texto, de possíveis outras interpretações. Qual é, então, a intenção que o autor pretende preservar em relação ao seu texto? É evidente que Alencar tem um projeto “brasilianista”, dentro da proposta burguesa do romantismo, especialmente se se considerar a época em que a obra foi escrita, um momento de busca de uma identidade nacional. O índio representou então para uma parcela da intelectualidade brasileira uma maneira de exibir algo que nos fosse próprio, não encontrável na Europa, de onde se trazia tudo (roupas, músicas, instrumentos musicais, moda etc.) para a nossa burguesia. Alencar, particularmente, assume essa busca, quando defende, por exemplo, o abrasileiramento da língua, contra a postura preservacionista do logocentrismo português.

Alencar tem um evidente objetivo de destacar a importância do elemento autóctone como iniciador da raça brasileira, e sua proposta é apresentar aos leitores um mito de origem. Há por certo a intenção do autor de cantar as glórias dos índios, exaltar a exuberância natural da Terra brasilis, bem como a beleza física e moral de Iracema. Reside ainda em sua intenção dar valor ao índio como espírito da civilização nacional, como elemento histórico e poético de nossas origens, de nossa nacionalidade.

Muitas são as intenções do autor, mas a leitura atual não pode e não deve se restringir a elas. Como afirma Compagnon (1999b, p. 63), “para uma hermenêutica pós-hegeliana, pois, não há mais primado da primeira recepção, ou do ‘querer-dizer’ do autor, por mais amplo que seja o termo”. Assim, a “diferença intransponível” que separa o texto produzido na segunda metade do século XIX do leitor do início do século XXI, a “distância histórica” entre produção e recepção tem de provocar uma nova leitura, por mais que o texto original
esteja cercado de advertências e explicações.

O fato é que o sentido da obra não pode ficar paralisado no tempo por efeito de declarações de intenções e outras explicações. Assim como a intenção original pode ser enriquecida, novas significações podem ser agregadas no sentido de questionar a própria intenção do autor ao se confrontá-la com a realização.

Um exemplo de valor agregado é a “descoberta” emocionada do crítico Afrânio Peixoto (1931, p. 163), em Noções de história da literatura brasileira, de que o nome “Iracema” é um anagrama da palavra “América”, “símbolo secreto do romance de Alencar que, repito, é o poema épico definidor de nossas origens, histórica, étnica e sociologicamente”.

Silviano Santiago (1975, p. 11), em suas notas à leitura do romance, lança algumas perguntas sobre o texto e as explicações do autor: “Seria possível uma outra leitura do texto de Alencar sem levar em conta prólogos, posfácios e notas? Isto é, poderá o filho-texto ter uma circulação independente dos cuidados ‘paternos’?”.

Sem pretender apresentar aqui uma argumentação extensa em resposta às perguntas de Santiago, poderíamos dizer que a ausência das notas poderia ter diversos efeitos. Na maioria dos casos, a leitura seria enriquecida, porque os 136 anos que nos separam da publicação da obra certamente teriam produzido – como produziram – interpretações e mais interpretações que teriam preenchido com vantagens as explicações “paternas”.

Os símbolos maiores, entretanto, cremos que seriam preservados. As ideias de maternidade, paternidade e filiação relacionadas à lenda do surgimento de uma nação teriam permanecido como alegorias mais ou menos óbvias; alegorias, aliás, que o autor não explicita claramente em suas considerações metalingüísticas. Não nos parece, portanto, que a ausência de explicações pudesse ter dado ao texto um destino totalmente diferente do que teve até agora, até mesmo pela ação da “história efeitual” de que fala Gadamer (1999).

Em que, na realidade, as sucessivas interpretações de um texto mais que centenário contribuíram para mudar o destino traçado pelo pai? Na questão da realização lingüística, por exemplo, é hoje uma unanimidade o arrojo inovador de José de Alencar, daquele mesmo José de Alencar que se colocava numa posição de receio em relação a sua própria novidade, ameaçando inclusive abandonar o projeto dependendo da recepção da obra.

Há, entretanto, outros elementos que somente a distância histórica pôde detectar e que de certa forma desmistificam algumas das intenções do autor. Trata-se principalmente de sua visão inconscientemente etnocêntrica das relações entre os índios e os brancos. A tentativa do autor é sem dúvida de encenar uma relação harmônica entre aquelas que ele propõe como as duas grandes etnias iniciadoras da “raça brasileira”.

Todavia, uma análise mais detalhada da narrativa desvela um status quo que mesmo um escritor do porte de Alencar não conseguiria trair. Relacionaremos a seguir alguns dos acontecimentos e comentários que revelam uma visão européia dessa relação.

No final do segundo capítulo, o personagem branco Martim demonstra possuir a linguagem dos índios, bem como suas terras: “Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus” (ALENCAR, 1965, p. 52).

Ao final da narrativa, Iracema, seu povo e seu Deus morrem, demonstrando uma fragilidade incompatível com sua presumida grandeza. Poti, o índio que se torna Antônio Felipe Camarão, acultura-se, renunciando a sua religião, atirando-se à cruz erguida no primeiro povoado, sem hesitar. A civilização branca vence; o dominador se estabelece. O elemento indígena cede lugar ao invasor, que consolida sua conquista: “A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá” (ALENCAR, 1965, p. 138).

Considerando, entretanto, que Martim também havia sido “batizado” pelos pitiguaras, tornando-se Coatiabo, não se poderia afirmar que a aliança entre Martim e Poti guarda elementos de reciprocidade, de intercâmbio de valores? Vamos então examinar as duas situações.

No caso do batismo de Martim, ele deveria tornar-se filho de Tupã, mas parece que nunca reconheceu a filiação, já que seu “deus verdadeiro” não o permitiria jamais. Na cerimônia, ele recebe o nome de Coatiabo, que significa guerreiro pintado. E não falta tinta para tanta pintura: vários símbolos indígenas – riscos vermelhos e pretos, flecha, gavião, raiz de coqueiro, asa, abelha, folha – são pintados no corpo de Martim. Em seguida, recebe de Poti o arco e o tacape,
que são as armas nobres do guerreiro, e de Iracema o cocar e a araçóia, ornatos dos chefes ilustres. Após a cerimônia, vem a comemoração: “Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram as danças alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria, ressoavam as canções” (ALENCAR, 1965, p. 114).


E assim vai até o amanhecer. Passada a ressaca da esbórnia, supõe-se que Martim olvida o novo nome, a nova filiação. Nunca mais se ouve falar das pinturas em seu corpo. Como ele era um guerreiro índio apenas pintado, supõe-se que a brancura de sua pele lhe tenha sido devolvida pela água do mar. As armas recebidas de Poti e os ornatos dos chefes ilustres que Iracema havia tecido para o esposo perdem rápido a significação. A alegria e o orgulho de receber tal honraria duram “o tempo que as espigas de milho levam para amarelecer” (ALENCAR, 1965, p. 114), o que não parece muito. Tanta doçura começa a enjoar: “A caça e as excursões pela montanha em companhia do amigo, as carícias da terna esposa que o esperavam na volta, e o doce carbeto no copiar da cabana, já não acordavam nele as emoções de outrora” (ALENCAR, 1965, p. 116). O apelido Coatiabo – guerreiro pintado – não consegue fazer frente ao nome Martim – guerreiro verdadeiro, filho de Marte, divindade guerreira na mitologia dos europeus. O batismo de Martim é apenas uma representação, uma concessão à cultura autóctone.


O batismo de Poti, entretanto, reveste-se de uma significação perene. O evento coincide com a fundação do primeiro povoado do Ceará: “Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem” (ALENCAR, 1965, p. 137).


A cruz, plantada com raízes profundas, alastra-se pela “terra da liberdade” (liberdade de quem?). Poti precipita-se na reverência ao grande lenho, renegando Tupã, porque ele e Martim “deveriam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração” (ALENCAR, 1965, p. 138). Além de um só deus, uma só cultura. Poti transforma-se em Antônio Felipe Camarão (o nome do santo do dia, o nome do rei espanhol que então governa Portugal, e o seu próprio nome traduzido para o português). Assim, o surgimento da nova civilização ocorre à custa do sacrifício da cultura indígena. “Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1965, p. 138), avisa o narrador ao final. As coisas são transitórias, e assim o é a civilização dos índios.


Há outros momentos em que o enunciador, vigiado pelo autor, denuncia sua postura pró-brancos. Um é aquele em que descreve os sentimentos de Martim, quando este começa a enjoar do mel de Iracema e da fidelidade de Poti:


Como o imbu na várzea, era o coração do guerreiro branco na guerra selvagem. A amizade e o amor o acompanharam e fortaleceram durante um tempo, mas agora, longe de sua casa e de seus irmãos, sentia-se no ermo. O amigo e a esposa não bastavam mais à sua existência cheia de grandes desejos e nobres
ambições. (ALENCAR, 1965, p. 122)


Aí está o que supomos ser um ato falho do narrador. Na ânsia de expressar os sentimentos do cristão, deste eleva ao máximo os desejos e as ambições, esquecendo-se de que, assim o fazendo, está automaticamente atribuindo ao elemento índio o oposto, ou seja, pequenos desejos e ignóbeis ambições. O grandioso está do lado do homem branco.


Outro momento é aquele em que, numa das notas ao capítulo 11, o autor desautoriza a magia indígena, a propósito de uma ação do Pajé Araquém:


– Ouve seu trovão e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.
Araquém, proferindo essa palavra terrível, avançou até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão; súbito, abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um medonho gemido que parecia arrancado das entranhas do rochedo. (ALENCAR, 1965, p. 74)


A cena chega até nós como uma bela mágica perpetrada pelo feiticeiro. Em sua nota à passagem, entretanto, o autor arranca toda a beleza de seu encanto:


Todo esse episódio do ruído da terra é uma astúcia, como usavam os pajés e os sacerdotes de toda a nação selvagem para fascinar a imaginação do povo. A cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterrânea que comunicava com a várzea por estreita abertura; Araquém tivera o cuidado
de tapar com grandes pedras as duas aberturas, para ocultar a gruta aos guerreiros. Nessa ocasião, a fenda inferior estava aberta, e o Pajé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com estridor medonho, e de que pode dar uma idéia o sussurro dos caramujos. (ALENCAR, 1965, p. 154)


A explicação do autor é apontada por Silviano Santiago (1975, p. 28) como desnecessária e preconceituosa:


Dentro de uma determinada atitude alencariana de ceticismo quanto aos valores e mecanismos do sagrado entre os indígenas, percebe-se aqui o desejo exagerado de querer, em nota fora do texto, propriamente, desmistificar possíveis ações sobrenaturais que são plenamente verossímeis ao nível da ficção. Intromissão pouco pertinente e sobretudo demonstradora do preconceito etnocêntrico do romancista. O que é manifestação de magia entre os indígenas é compreendido e traduzido pelo escritor “civilizado”, que no mito indígena apenas descobre um fenômeno que pode ser explicado pela física. Assim é que a linguagem da terra, ou fala de Tupã, descoberta e usada pelos pajés para acentuar seu poder religioso entre os companheiros, é vista, na nota, como mera “astúcia”, enquanto o fato sobrenatural (dentro da ótica indígena) é apenas “natural” para Alencar. [...] Talvez esse seja um dos maiores exemplos do conflito entre o texto e a nota, entre o filho-texto e o pai-autor, mostrando como aquele se encontra tolhido em sua “verdade” pela nota esclarecedora do pai que logo o assinala como “falso”.


Apesar da intenção de valorizar a cultura indígena, fica evidente que o autor adota uma postura etnocêntrica em favor do conquistador, e a ótica estruturadora do romance é claramente a do civilizado e do cristão. Eis aí o que chamamos de paradoxo entre a intenção e a realização. O mito da harmonia das raças só funciona na intenção, e o resultado é a dominação econômica e cultural
da terra pelo colonizador branco, tendo o indígena como aliado, após a eliminação dos que resistiram. Essa dominação, emoldurada por um discurso lírico, consuma-se no amor entre Martim e Iracema, símbolo da terra que se recusa ao próprio índio.


Teria sido possível a Alencar perceber lucidamente sua postura em meados do século XIX? Possivelmente não. O próprio Machado de Assis, dotado de extremo espírito crítico, não se permitiu extrair dessa narrativa uma história de dominação, ou a alegoria do nascimento de uma raça. Em crítica datada de 1866, o autor de Dom Casmurro exalta a história do amor entre Martim e Iracema, a nobreza dos sentimentos indígenas, bem como a do elemento branco, cada qual em sua cultura, como no caso da amizade entre Poti e Martim: “a afeição de Poti tem a expressão ingênua, franca, decidida; Martim não sabe ter aquela simplicidade selvagem” (ASSIS, 1961, p. 82). Nem uma palavra sobre dominação, nada sobre aculturação nem sobre extermínio. Mesmo criticando a superabundância de imagens, Machado ainda assim a justifica como elemento próprio à “poesia americana”, a que hoje conhecemos como indianista.


Mais para o final do século XIX, em obra publicada em 1888, o crítico e historiador literário de linha positivista Sílvio Romero demonstra um certo desdém pela literatura indianista, embora elogie em José de Alencar sua capacidade de observação, seu vocabulário rico e seu estilo “sonoro e brilhante”. O crítico reconhece que Gonçalves Dias e José de Alencar, principalmente, conseguiram manter nossa literatura a salvo da imitação do triunvirato romântico português: Garrett, Herculano e Castilho. Se formalmente o indianismo apresentava alguma virtude, o “critério etnográfico”, que para o crítico é a “base principal da compreensão das literaturas”, coloca o elemento indígena como um “vulto mudo a esvair-se no centro de nossa vida, no marulho de nossa civilização” (ROMERO, 1980, p. 919, 921). Na crença do crítico, os índios constituem um povo que “não deu certo” na vida real e portanto devem ser eliminados da literatura:


Não quis ou não pôde sentir as agitações de um outro viver, escutar os ruídos de outras formas de anseios, de liberdade, de crenças, de lutas que a turba, às vezes tirânica, dos conquistadores lhe quis fazer entender. A raça selvagem está morta; nós não temos nada mais a temer ou a esperar dela. (ROMERO, 1980. p. 921)


Em confronto com a concepção de Sílvio Romero, Alencar certamente foi mais benevolente para com os índios, ao exaltar neles algumas qualidades morais e seu heroísmo, que o crítico nega. É lógico, portanto, que Romero não quisesse ver na história alegórica de nossas origens nada mais do que uma justa tomada de posição do conquistador em relação a um povo fraco e fugidio.


A recepção do texto de Alencar 136 anos depois, portanto, tem de apresentar necessariamente uma “verdade” em relação às outras que se realizaram no correr dos anos. Essa recepção escapa das indicações do autor, por mais que ele cercasse seu texto de cuidados.


Rabelais ([19—]) deixou ao encargo dos leitores transformar seu texto em uma obra-prima, sem maiores recomendações; Proust (1988), negando a intenção do escritor biográfico, nega indiretamente as advertências de Alencar; Borges (2000), com seu “Pierre Menard, autor del Quijote”, sugere-nos que há um Iracema em 1865 e outro Iracema em 2001.


O texto, enfim, supera sempre as intenções de seu autor. Quando, entretanto, elas são explicitadas, podem fornecer novas possibilidades que se entrelaçarão à situação histórica do intérprete, cuja leitura sempre irá agregar ao texto novas significações e atualizações, numa reciclagem que pode inclusive traí-la “de maneira fecunda”, como estabelece Antoine Compagnon (1999b, p. 63) e como acontece com uma leitura contemporânea de Iracema.



Abstract
The meaning of a text always surpasses its author’s intentions, as interpreters and readers to come will have an amount of additional historical accumulation towards it. That does not mean interpreters understand it better, despite their historical superiority over the author, but they understand it differently. This paper intends to show how, regardless of all his care and explanations, José de Alencar could not avoid new visions and interpretations of Iracema in the coming years.
Key words: Intention; Reception; Iracema; Effectual history; Recycling.


Referências
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ASSIS, Machado de. Crítica literária. São Paulo: W. M. Jackson, 1961.
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COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Tradução de Cleonice Mourão et al. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999b.GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes,
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PEIXOTO, Afrânio. Noções de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Francisco
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PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve: notas sobre crítica e literatura. Tradução de Haroldo
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RABELAIS, François. La vie trés horrificque du grand Gargantua père de Pantagruel.
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ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. v. 3.
SANTIAGO, Silviano. Romances para estudo: Iracema. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1975.