Tuesday, February 12, 2008

LITERATURA BRASILEIRA III – POEMAS
Prof. Cid Ottoni Bylaardt



O MARTÍRIO DO ARTISTA (Augusto dos Anjos)

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busac exteriorizar o pensamento
Que em suas frontais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a temer, rasga o papel, violent,
Como o soldado que rasgou a farad
No desespero do ultimo momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz, e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a lingua,
E não lhe vem à boca uma palavra!



VENCEDOR (Augusto dos Anjos)

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A espada de aço, o gládio de aço, e doma:
Meu coração ─ estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem
E não pode domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!



EUROPA, FRANÇA E BAHIA (C.D.A.)

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um
[caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes
[nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias
[longínquas formam um tapete para
[sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos
[arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a
[cabeça dos outros dentro de alguns anos.
A Itália explora conscienciosamente vulcões
[apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suíça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

Não há mais Turquia.
O impossível dos serralhos esfacela erotismos
[prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam
[o filme bolchevista e no túmulo
[de Lenin em Moscou parece que um
[coração enorme está batendo, batendo
mas não bate igual ao da gente...

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a ‘‘Canção do Exílio’’.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!



ODE AO BURGUÊS (M.A.)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
─ Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
─ Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte a infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...



POESIA (C.D.A)

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.



CORTE TRANSVERSAL DO POEMA (M.M.)

A música do espaço pára, a noite se divide
[em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava
[na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada
[pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa
[ dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na India,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força
[do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá,
não me lembro mais quem sou.







POÉTICA (M.B.)

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo
[e manifestações de apreço ao Sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
[exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras
[de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

─ Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.




CANTIGA DE VIÚVO (C.D.A.)

A noite caiu na minh’alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada.



VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA (M.B.)

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.



NO MEIO DO CAMINHO (C.D.A.)

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.







CANTIGAS (Jorge de Lima)

As cantigas lavam a roupa das lavadeiras.
As cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras
ficam tão tristes, tão pensativas!

As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! 
Os bois são morosos, a carga é tão grande!
O caminho é tão comprido que não tem fim.
As cantigas são leves...
E as cantigas levam os bois, batem a roupa
das lavadeiras.

As almas negras pesam tanto, são
tão sujas como a roupa, tão pesadas
como os bois...
As cantigas são tão boas...
Lavam as almas dos pecadores!
Levam as almas dos pecadores!

E aquelas mãozinhas
dormiam unidinhas
qual João mais Maria.

“Dedo-mindinho,
Sêo vizinho,
o Pai-de-todos,
Sêo Fura-bolos,
Cata-piolhos,
quede o toicinho?
 o gato comeu.”

Nas noites de lua
cheinhas de estrelas,
Sêo Fura-bolos
contava as estrelas...
O Pai-de-todos
cuidava dos outros:
nasciam berrugas
no Cata-piolhos.

E aquelas mãozinhas
viviam sujinhas
qual João mais Maria...

Um dia (que dia!)
o Dedo-mindinho
feriu-se num espinho...
E à boca da noite
o Cata-piolhos deixou de rezar;

e João mais Maria, juntinhos
ligados,
pararam em cruz
cobertos de fitas
que nem dois bonecos
sem molas, quebrados...

Quem compra um boneco da loja de Deus?




ESSA NEGRA FULÔ (Jorge de Lima)

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
 Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
para vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô!
Vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!

Vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”

Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o sabiá beliscou.”

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?

 Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.

O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas,
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! Foi você que roubou.
Ah! Foi você que roubou.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

1 comment:

Ivo Xavier said...

Oi. Poderia emprestar amanhã o livro da Hilda Hilst para tirarmos uma cópia? Da morte: odes mínimas. Grato. Alunos da Literatura brasileira IV.