Wednesday, December 21, 2011

CRÍTICA: A ARTE DE ESPANTAR A ARTE E SEGURAR SUA SOMBRA


Cid Ottoni Bylaardt - Doutor em Literatura Comparada
Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará
e-mail: cidobyl@ig.com.br - Telefone: (85) 3242 2794




Resumo: Este texto tem como objetivo refletir sobre a fragilidade e a inconsistência dos instrumentos de aferição do gosto estético, com sua roupagem de racionalismo e cientificismo. A reflexão parte de um texto crítico sobre a poesia de Henriqueta Lisboa que circula na internet, tomado aqui como expressão de uma crítica que se apoia em verdades pretensamente eruditas, em um saber aparentemente universal e imutável, como os tristes argumentos de Lobato diante do homem amarelo malfattiano. A crítica literária legítima tem que ser fruto de uma reflexão profunda, de uma vivência intensa com o texto. Juízos de valor, se são incontornáveis, que sejam feitos com cautela, a partir de uma leitura atenta, e não de suposições fáceis e conclusões apressadas e vagas. Sobretudo, a crítica e por extensão a recepção contemporânea devem lançar um novo olhar à obra literária, além dos velhos instrumentos da crítica e da teoria. Talvez esse novo olhar não signifique propriamente desfazermo-nos desses velhos instrumentos, mas eles devem ser necessariamente reposicionados, relativizados ao ponto de não serem mais os determinantes absolutos de uma maneira condicionada de ver.
Palavras-chave: crítica, poesia, fundamentos do gosto, novo olhar

Abstract: This paper intends to ponder over the fragility and inconsistency of the aesthetic judgement, in spite of its appearance of rationalism and scientificism. This reflection starts from a critical text about Henriqueta Lisboa's poetry put into circulation in the web, taken here as the expression of a critical attitude that rests on pretentious truths, on an apparently universal and unchangeable knowledge, like the poor arguments of Monteiro Lobato against Anita Malfatti's yellow man. The legitimate literary criticism must be the result of a deep reflection, of an intense experience with the literary work. Aesthetic judgement, however inevitable, must be done carefully, by means of a close reading, and not through easy suppositions or quick and dubious conclusions. Above all, contemporary critic and reception must give a new look at the literary work, beyond the old critical and theoretical instruments. Maybe this new look doesn't mean to give up the old instruments, but they must necessarily be newly relocated in order that they might not be anymore the means of an absolute way of knowing the work of art.
Key words: critical taste, poetry, foundations of taste, new look.
Em meio a pesquisas na internet sobre a obra da poeta mineira Henriqueta Lisboa, deparo-me com um ensaio chamado “As sombras da delicadeza”, assinado por Felipe Fortuna. Folheando eletronicamente o texto, deparo-me com uma oração que inevitavelmente chama a atenção de quem lê poesia: “...sendo mesmo forçoso classificar de menor a poesia de Henriqueta Lisboa... ”. Imediatamente pensei nas declarações saudosistas de alguns críticos, de que não se faz mais crítica como antigamente, isto é, a crítica acadêmica ou jornalística atual estaria mais preocupada em estudar ou promover comercialmente as obras literárias do que propriamente atribuir-lhes um valor, como ocorria nas épocas de ouro da crítica que criticava, entendendo-se criticar principalmente como falar mal.
Retornando ao final do século XIX, encontramos o respeitadíssimo Sílvio Romero depreciando a escritura machadiana devido à gaguez do escritor: “Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da linguagem” (ROMERO, 1980, p. 1506). Não obstante, Romero teve o cuidado de não classificar a escritura de Machado como “menor”, por menos que a apreciasse. Algumas décadas depois encontramos Massaud Moisés a afirmar que no conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, a cena em que os personagens bebem cerveja numa confeitaria constitui falha no plano de ação, já que ao leitor não interessa o que bebem ou deixam de beber os personagens. O Guarani, de José de Alencar, também não escapa da erudição do crítico: o final da narrativa é tido como romanticamente inconsistente, incorreto mesmo.
Antonio Candido também incorre em julgamentos de credibilidade duvidosa, quando confunde sua persistente dicotomia dialética do local e do universal e se desdiz afirmando em certo momento que Sagarana “nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura” (CANDIDO, 2002, p. 186), enquanto em outro momento afirma exatamente o contrário, que as obras anteriores a Grande sertão, o que inclui Sagarana, careciam de transcendência do regional (CANDIDO, 2002, p. 190). O crítico ainda se deixa levar por critérios de valor igualmente duvidosos ao questionar a qualidade da poesia brasileira dos anos 40 do século XX, afirmando que “impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer” (CANDIDO, 2006, p.135).
As discussões sobre o mau gosto e o bom gosto em literatura fazem lembrar a polêmica de baixo nível entre Júlio Ribeiro e o Padre Sena Freitas a propósito do romance A carne, do primeiro, bem como a de melhor nível entre José de Alencar e o imperador D. Pedro II sobre o poema de Gonçalves de Magalhães, A confederação dos Tamoios. Essa última ainda teve a virtude de proporcionar uma rica discussão sobre a narrativa do século XIX.
Vale lembrar ainda que uma banca de notáveis avaliadores do bom gosto literário “reprovou” Sagarana em favor de Maria Perigosa, de Luís Jardim, no julgamento do Prêmio Humberto de Campos em 1938. Graciliano Ramos, um dos notáveis de 1938, reconheceu em 1946: “Afinal, os julgamentos são precários ― e naquele tínhamos vacilado” (RAMOS, 1971, s/ p.).
Em seu ensaio “Les jugements sur la poésie ont plus de valeur que la poésie” (1999, pp 40-51), Agamben cita os Cursos de estética de Hegel, em que o filósofo alemão lamenta que em sua época (século XVIII) os homens não mais tinham acesso à vitalidade profunda da obra de arte, uma vez que as reflexões e a crítica sobre ela se resumiam em transformá-la em uma representação intelectual conforme o modelo crítico utilizado. A arte era, assim, uma oportunidade para os homens exercitarem sua habilidade crítica. Para Heiddeger, a arte pouco tem a ver com saberes que se acumulam sobre ela. Blanchot vai mais além e afirma que quando a reflexão imponente se aproxima da obra de arte, esta se retira.
No artigo citado, Agamben faz uma interessante associação entre a atitude do crítico diante da obra de arte e o estudante de medicina que aprende anatomia em cadáveres. Quando se vê diante do corpo vivo do paciente, ele só pode lembrar-se de seu modelo anatômico morto para orientá-lo em sua abordagem do ser vivo. Nessa linha de pensamento, vale lembrar o pequeno texto de Mario Quintana que encena a atitude de racionalismo depauperante de quem só consegue ver um saber estéril onde se manifesta a beleza:

A BORBOLETA
Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: “Olha uma borboleta!” O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: — Ah! sim, um lepidóptero... (2003, p. 19)


Agamben segue lembrando que os critérios utilizados para o julgamento da obra de arte formam um esqueleto de elementos mortos ao invés de um corpo vivo e pulsante. No caso do artigo de Felipe Fortuna sobre a obra de Henriqueta Lisboa, o crítico enumera alguns pressupostos que determinam sua condição de poesia menor, a saber: tradicionalismo das formas, fidelidade a um só ideário (não-evolução), mau gosto, isolamento, provincianismo, arcaísmo. Temos então alguns critérios de julgamento estético que podem dar uma certa consistência à crítica pretendida. Se forem bem utilizados, ainda que limitados e sem vida, teremos no máximo uma pequena visão do que poderia ser a obra de arte; se forem simplesmente arbitrários e não configurarem uma relação coerente com o objeto de conhecimento, teremos mais um dos inúmeros desastres críticos a que assistimos frequentemente, disfarçados de reflexão erudita. Em ambos os casos, a apreciação da arte paga-se com o esquecimento dela. Este ensaio não tem a intenção de defender a poesia de Henriqueta Lisboa nem de apontar suas virtudes em contraposição aos argumentos depreciativos do crítico; isso seria utilizar o procedimento aqui condenado, dentro do mesmo sistema binário que permitiu a crítica. A ideia é mostrar como os instrumentos de aferição do gosto são frágeis, imprecisos, inconsistentes, quando tentam se mostrar racionais, científicos e determinados, sobretudo quando não vêm acompanhados de argumentos firmes e bem fundamentados, se se admitir que uma vez que há literatura, há crítica de juízo. Ao final, a prática da crítica negativa pode até afastar algum estudante de letras ou leitor de poesia da obra poética, que, não obstante, continua lá, intocada, inteira, a produzir sua verdade, indiferente às razões iluministas ― que se revelam obscurantistas ― da crítica tradicional.
Vale lembrar as palavras de Agamben sobre a atividade da crítica:

Onde quer que o crítico encontre a arte, ele a traz para seu oposto, dissolvendo-a em não-arte; onde quer que ele exercite sua reflexão, ele traz consigo não-ser e sombra, como se ele não tivesse outros meios de adorar a arte que não fosse a celebração de uma espécie de missa negra em honra do deus inversus, a divindade invertida da não-arte. (1999, p. 46)


O pensador italiano segue refletindo sobre o que parece ser uma crise desse tipo de instrumento de nossa apreensão estética da arte, e como essa crise pode levar a um eclipse da crítica (que possivelmente já esteja ocorrendo neste início de século XXI). Segundo ele, há ainda uma questão mais extravagante a rondar essa atividade crítica. Se o ser humano não tem necessidade de medir a beleza dos fenômenos naturais comparando-os com sua sombra, por que insistimos em fazer isso com relação aos fenômenos artísticos? Admitamos, entretanto, que quem fala sobre a arte, quem fala sobre a literatura, não pode furtar-se a emitir algum juízo crítico de valor. Se temos, forçosamente, que nos mover em torno dos fundamentos do julgamento crítico, não seria mais desafiador buscarmos parâmetros mais originais, iniciais, desprovidos dessa sobrecarga de saber que constrói uma sombra da arte julgando que fala dela?
Alguns desses elementos de não-arte, de sombra de poesia, serão aqui examinados em sua validade como fundamentos do julgamento estético, conforme aparecem no mencionado artigo sobre a poesia de Henriqueta Lisboa.
De início, a pecha de poesia menor atribuída à obra poética de Henriqueta parece ter causas bem fundamentadas e inquestionáveis: “Pois, sendo mesmo forçoso classificar de menor a poesia de Henriqueta Lisboa, tal se deve à sua monocórdica fidelidade a um só ideário, que sintomaticamente jamais evoluiu”. Como afirmei antes, não se trata aqui de refutar a relação dos fundamentos com o objeto investigado, desvelando a injustiça da análise. Nossa preocupação é de questionar os fundamentos em si, e refutá-los, sim, em sua própria formulação. O critério de julgamento artístico aqui é então a noção de evolução. Aplica-se ― o verbo “aplicar” é tão oportuno quanto estranho ― à arte algo que pertence ao saber racionalista, como se fosse possível atribuir à poesia alguma determinação teleológica ligada à ideia de evolução. O articulador “tal se deve” é taxativo: a poesia é menor porque não evolui. Essa afirmação pode ter sido inquestionável algum dia, mas é no mínimo uma atitude anacrônica atrelar-se ao julgamento de arte o critério evolutivo. O que parece ser uma afirmação insofismável que possa conduzir o estudante de letras ou o leitor a um terreno sólido em suas apreciações poéticas se esfumaça diante da impossibilidade de se definir com segurança como esse critério de julgamento pode ser “aplicado” à poesia em questão. Essa atitude da poeta configura, na visão diacrônica do crítico, uma deficiência: “Longe de confirmar uma coerência, trata-se de um sinal de implacável conformidade.” Dentro dos padrões binários de julgamento crítico, “coerência” parece ser uma atribuição positiva, num sistema lógico-racional, enquanto “conformidade” tem uma conotação menor, de subserviência, mesmo que seja sujeição da poeta a ela mesma. Entretanto, coerência e conformidade têm valores semelhantes fora do sistema binário, opondo-se, no caso, apenas pelo desejo do crítico de estabelecer sinais confrontantes ― positivo e negativo ― no intuito de depreciar o objeto de análise, sem que ele possa apontar indícios consistentes dessa oposição.
A acusação seguinte é de anacronismo, vulgaridade e infantilidade. Aqui o trecho demanda sua citação em frase íntegra para que se tente perseguir a lógica do crítico:

Arcaizante, sua poesia apresenta momentos constrangedores, seja em imagens surradíssimas,
os dedos do luar partiram-se os fios do (pensamento ("Prisioneira da Noite")
seja em concepções lamentavelmente infantis:
Por que de tantas estrelas no céu ao menos uma não se despreende
para vir pousar no meu ombro como sinal de esperança?
("Prisioneira da Noite")


Quanto às “imagens surradíssimas”, ficamos a nos indagar como é possível emitir um juízo tão taxativo a partir de um único verso de um poema que tem dezenas deles, desprezando-se o próprio clima geral do texto, em que elementos noturnos como “estrelas”, “ventos marinhos” e “caminhos da madrugada” estabelecem uma ressonância de indeterminações com os execrados “dedos do luar”. Para agravar o pouco rigor crítico ― o rigor tão reivindicado pela crítica racionalista ― do acusador, o verso aparece adulterado, parecendo mais estranho do que propriamente surrado. No poema de Henriqueta, o verso está escrito da seguinte maneira: “os dedos do luar partiram-me os fios do pensamento” (LISBOA, 1958, p. 37), e de certa forma antecipa, articulado à atmosfera de indecisão do poema, elementos de uma atitude poética que floresceu na década de quarenta, em que a linguagem literária começa a questionar sua própria insuficiência para acessar o real, para veicular uma compreensão incontestável de verdades, que começam a ser abaladas, configurando o que chamamos estética da falta, da fratura, da impossibilidade. Tal atitude ressoa em poemas inesquecíveis como “Jardim”, “Dissolução” e “Remissão”, de Drummond, e “Acidente” e “Esta é a graça”, da própria Henriqueta. Na sequência, o crítico fala em “concepções lamentavelmente infantis”, e mais uma vez demonstra descaso e descuido com a transcrição dos exemplos poéticos, grafando como um incrível “despreende” a forma verbal “desprende” utilizada pela poeta. Voltando às criticadas concepções infantis, o que é que se tem realmente a lamentar quanto à presença das crianças na poesia, ou mesmo de atitudes próprias dos pequenos? Que diriam dessa atitude, por exemplo, Mario Quintana, Cecília Meireles e Manoel de Barros, só para citar três artistas que não abrem mão da força poética emanada das crianças?
Para reforçar seu ponto de vista de que a poesia de Henriqueta Lisboa é “menor”, Fortuna investe na questão altamente controversa do bom gosto:

A grafia em desuso da palavra cousa e a simpatia pela idéia de musa,
a minha musa ama precisamente o que não existe neste lugar ("Singular")
são afetações que atentam frontalmente contra o gosto poético.


Mais uma vez, o bom gosto revela-se pelo seu oposto da relação binária. Mau gosto poético é aqui simpatizar com a “ideia de musa” e usar grafias em desuso. A questão do desuso, como indício de não-bom-gosto conduz a uma pergunta singela: a própria noção de desuso, despida de suas contaminações depreciativas, não é um traço normalmente valorizado na linguagem poética, precisamente por se afastar da linguagem usual? E a ideia de musa precisa ainda ser execrada mais de um século após o auge do Parnasianismo? A simples presença da palavra basta para definir a poesia como de mau gosto? Drummond, cuide de repensar sua “Musa de outubro” e sua “Musa domingueira”. O mau gosto em questão abate-se sobre uma poesia que recusa a mesmice, que busca novas formas de expressão sem saber como encontrá-las, mas que continua em sua busca.
Sobre o poema criticado, anterior à década de 40, vale dizer que seu título, "Singular", equivale a um adjetivo posteriormente utilizado com frequência para designar a escritura que não tem par, a literatura que não se enquadra em convenções, o texto que surge diante de um novo olhar que se debruça sobre ele. Sintomaticamente, o pequeno e belo poema de Henriqueta Lisboa antecipa a inquietação dos anos quarenta e do próprio pós-modernismo, numa atitude poética bastante ousada para a época.
Outro aspecto dessa crítica negativa que nos faz refletir a respeito dos procedimentos de juízo é a metacrítica que faz o autor do artigo daqueles ou daquelas ― isso inclui Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade ― que viam e veem na poesia de Henriqueta delicadeza, singeleza e musicalidade, e condena comparações ― segundo ele forçadas ― da poeta mineira com Cecília Meireles e Gabriela Mistral, e sobretudo com Rainer Maria Rilke, para ele um “desastroso paralelo”. Segundo Fortuna, todas essas apreciações constituem “grotescas interpretações” da poesia de Henriqueta. Quando se espera que o crítico vá justificar sua feroz contestação dos traços de singeleza, delicadeza e musicalidade da poesia de Henriqueta, depara-se com um ponto final e o texto dá início a uma nova acusação, e nada se explica. Quando se imagina que o escritor do artigo vá estabelecer os fundamentos de suas descomparações dos símiles mal feitos, permanecem ressoando no ar as acusações, sem fundamentação ou justificativa. Simplesmente, os traços apontados com sensibilidade por vários críticos e apreciadores são pulverizados com sofismas pretensamente inquestionáveis, e procede-se assim à decretação da não-singeleza, da não-delicadeza, da não-musicalidade, da não-semelhança com poetas canônicos.
Mais adiante lê-se uma nova tentativa de conceituação de poesia menor, atribuindo-lhe o traço de “renitente tradicionalismo”, e justifica simplesmente seu juízo de valor transcrevendo versos que segundo o crítico são bastante tradicionalistas:

Na sua faina de artista o sol
com pincéis de espiga
é o próprio dom do amarelo.
("Poeminha do Amarelo")


Tentamos avidamente examinar o tradicionalismo renitente que esses versos exalam com tanta força. Estaria nos heptassílabos, tão ao gosto da literatura popular, que carrega nos ombros séculos de tradição? Ou na rima toante, a favorita de João Cabral, de “artista” com “espiga”? Ou na própria insistência no amarelo, como um Van Gogh anacrônico, cuja beleza a tradição transformou em tradicionalismo? Ou na prosopopeia do sol transformado em artista impressionista espalhando o amarelo em pinceladas aparentemente descuidadas? Enfim, o leitor fica sem poder conferir ou aferir no exemplo dado o traço atribuído. Para arrematar o argumento de que a poesia de Lisboa é teimosamente tradicionalista, o crítico acusa o poema “Beija-Flor” de nomear o animalzinho que lhe dá título de “dramazinho melífluo”. Isso é propriamente uma atitude tradicionalista? Onde? Em quê? Parece-nos inclusive que há alguma impropriedade na leitura do crítico, uma vez que dramazinho melífluo não é uma nomeação do beija-flor, mas uma sucinta descrição de uma cena que se desenrola. Transcrevemos aqui a estrofe para que se possa contextualizar a expressão condenada:

Dramazinho melífluo:
coração em conflito
de premência e cautela
Beija-flor investe a custo
e sem perder o galeio
gira oscila dança paira
não desiste mal se atreve
em galanteios e escusas
antes de colher o inseto
que entre pétalas se oculta.
(LISBOA, 1982, pp. 61-62)


É evidente que por um processo de ampliação da imagem, do deslindamento de suas possibilidades, o epíteto de dramazinho melífluo pode, sim, ser atribuído ao beija-flor, embora a atribuição passe necessariamente pelo desdobramento da cena de tensão em que o bichinho hesita entre necessidade e desejo, de um lado, e cuidado e receio, de outro, tudo isso sem perder a pose, sem prescindir da graça e da delicada elegância. Ele encena o drama, ele atua no drama, ele é o drama.
O autor se permite tecer alguns elogios ― tão pouco convincentes quanto as recriminações anteriores ― aos livros Flor da morte e Reverberações, considerados “bem acabados”, novamente uma expressão vazia que designa algo vago e impreciso. Flor da morte, particularmente, é louvado como obra de “unidade absoluta” por sua “meditação soturna sobre a morte”. Unidade e bom acabamento são, portanto, qualidades de uma boa poesia, embora não salvem o conjunto da obra da poeta da pecha de “menor”. Quando se reflete a respeito de um olhar contemporâneo sobre a arte, fica-se a pensar se esses dois traços são realmente positivos, se eles podem salvar uma obra da mediocridade. Unidade e acabamento são, contemporaneamente, valores confiáveis para um julgamento estético? Na época em que Lobato desancou a arte de Malfatti, quando esses traços foram convocados por ele para fortalecer seus argumentos, eles já eram fortemente questionados pelas vanguardas. Isso foi há quase cem anos. Inconsistência da censura, fragilidade do elogio.
Não escapa a quem lê essa crítica descuidada a sensação de que o crítico busca seus exemplos a esmo, sem a atenção devida ao que foi escrito pela poeta, sem a preocupação de pelo menos demonstrar consideração à poesia criticada, adulterando pela terceira vez, agora de forma ainda mais grosseira, seus versos. Ao tentar fazer uma aproximação entre Henriqueta Lisboa e Hilda Hilst, possivelmente relacionando o livro Flor da morte a Da morte. Odes mínimas, o crítico estabelece a associação referindo-se à “vocação meditativa sobre o tema” herdada por Hilst, e para ilustrar seu argumento cita um verso de “Esta é a graça” (verso que por sinal não está no poema), talvez o único poema do livro que não trate da temática da morte:

em busca do intangente inefável. ("Esta é a Graça")


Henriqueta Lisboa não escreveu isso. Se não cabe aqui a transcrição completa do poema, o que seria mais recomendado, transcrevemos ao menos a estrofe em que aparece o verso citado de maneira descontextualizada e adulterada pelo autor do artigo:

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.
(LISBOA, 2004, p. 43)


Uma leitura mais atenta da estrofe e do poema como um todo revela uma concepção de poesia, em que elementos da natureza, como os pássaros, os cães, as plantas e até a própria madrugada aparecem como metáforas da criação artística desinteressada. Por menos que queiramos restringir as possibilidades da linguagem poética, parece ser algo forçado ler nesse poema uma reflexão meditativa sobre a morte, como afirma o crítico em sua infeliz referência.
Para finalizar, o autor do artigo retoma as atribuições ― segundo ele grotescas ― de suavidade e delicadeza à poesia de Lisboa, e chega a admitir que elas podem estar presentes em seus textos, mas que realmente servem para “caracterizar uma poesia que, posicionando-se com um compromisso ultrapassado, acabou presa no círculo do seu próprio silêncio”. A afirmação é tão inconsistente que fica difícil detraí-la. Que relação haveria entre suavidade e delicadeza, de um lado, e compromisso ultrapassado, de outro? Aqueles seriam componentes determinantes deste? E ao comporem essa profissão de fé anacrônica, teriam forçado essa poesia a se prender no círculo de seu próprio silêncio? Supondo-se que seja, estar presa ao círculo do próprio silêncio, em si, seria algo depreciativo dessa poesia? Quando se pensa em poetas contemporâneos como Paulo Leminski, Waly Salomão, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes, ou o português Herberto Helder, para citar alguns, constata-se que a ideia do silêncio na linguagem poética surge com tanta força como marca dessa inquietação estética própria do final do século XX e início do século XXI, com uma robustez tão tensa quanto intensa, não obstante difusa, a provocar o sentimento de beleza na contemplação da poesia pós-moderna, que fica difícil imaginar a prisão no círculo do próprio silêncio como um traço pejorativo, típico de uma poética menor. Essa tensão poética, essa intensidade de beleza emana da comovente estrofe final do poema “Esta é a graça”, citado inadequadamente pelo crítico como exemplo de meditação sobre a morte, e que na verdade nos conduz a uma reflexão sobre a inquietação da poesia que dos anos quarenta se alastrou à contemporaneidade. Nisso, Lisboa foi mais vanguarda do que retaguarda. Os versos são os seguintes:

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas.
(LISBOA, 2004, p. 43)


O poema do qual foi retirado o quarteto acima reflete a incerteza, a inquietude, a necessidade angustiada de fazer uma poesia mais intransitiva, mais absoluta, talvez, própria dessa época, que se pode possivelmente desdobrar em um sentimento típico de nossa contemporaneidade: a ideia de que a palavra é insuficiente para propiciar o acesso ao real, de que o sentido não é mais algo apreensível sem contestação, de que a poesia não consegue mais estabelecer as verdades que o ser humano julgava bastantes para satisfazer seus anseios e seus desejos, de que a linguagem poética não mais se sustenta pela codificação de licenças.
O poeta Lêdo Ivo, no editorial da Revista Orfeu, de 1947, declarava:

O modernismo e o pós-modernismo, que fixam o maior período de densidade, pesquisa e criação já atingidos no Brasil, comprovam hoje a existência de um movimento cultural, ainda incerto em sua significação e em seus objetivos. [...] Essa incerteza somos nós. O tempo não nos construiu ainda, ignoramos o que seremos ― é a vertigem de vir a ser que nos tenta e nos congrega. [...] Enquanto formos novos, seremos inacabados. (pp. 376-377).


Pode-se relacionar a afirmação de Lêdo Ivo ao que escreveu, muitas décadas mais tarde, Leyla Perrone-Moisés: “Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós” (1990, p. 104).
Essa estética da falta, da carência, da fratura, da impossibilidade tem muito a ver com a literatura nossa contemporânea. A poesia então deseja algo que nem ela mesma sabe o que é, fazendo-se a própria busca; ao libertar-se da velha lei da licença codificada, o texto poético parece subordinar-se a essa nova e estranha potência, que não se dá a conhecer, mas que move os poetas em seu fazer incessante.
Tal inquietação assaltou Henriqueta Lisboa, e toda sua obra poética de maneira geral a reflete, particularmente em poemas como “Esta é a graça” e “Acidente”, ambos de Flor da morte. Esse é o verdadeiro silêncio em que se prende a obra da poeta, um silêncio altissonante, hesitante, claudicante, e de muita beleza, uma profunda beleza.
Embora a publicação do ensaio aqui comentado seja datada de 1986, e o crítico possa ter mudado de ideia em suas concepções de poesia ― ou não ―, o fato é que o artigo está lá, podendo ser então tomado como expressão de uma crítica contemporânea que lamentavelmente se apoia em verdades pretensamente eruditas, em um saber aparentemente universal e imutável, como os tristes argumentos de Lobato diante do homem amarelo malfatiano. A crítica literária, para se legitimar, tem que ser fruto de uma reflexão profunda, de uma vivência intensa com o texto, principalmente se se tratar de texto poético. Juízos de valor, se são incontornáveis, que sejam feitos com cautela, a partir de uma leitura atenta, e não de suposições fáceis e conclusões apressadas e vagas. Sobretudo, a crítica e por extensão a recepção contemporânea deve lançar um novo olhar à obra literária, além dos velhos instrumentos críticos e teóricos. Talvez esse novo olhar não signifique propriamente desfazermo-nos desses velhos instrumentos, mas eles devem ser necessariamente reposicionados, relativizados ao ponto de não serem mais os determinantes absolutos de uma maneira condicionada de ver.

Referências bibliográficasAGAMBEN, Giorgio. The man without content. Stanford: Stanford University Press, 1999.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção (Seleção, apresentações e notas de Vinícius Dantas). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002.
FORTUNA, Felipe. As sombras da delicadeza. Disponível em http://www.felipefortuna.com/sombrasdelicadeza.html. Acesso em: 30 jan. 2011.
LIMA, Luiz Costa. “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade". In: Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
LISBOA, Henriqueta. Lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
LISBOA, Henriqueta. Pousada do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Globo, 2003.
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. vol. 5. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1980.
RAMOS, Graciliano. Conversa de bastidores. In: ROSA, Guimarães. Sagarana. 9. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1971.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

10 comments:

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