Friday, June 04, 2010

Intenção e recepção em
Iracema, de José de Alencar
Cid Ottoni Bylaardt *


Resumo
O sentido de um texto supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e os leitores que virão terão uma carga de acumulação histórica adicional em relação a ele. Isso não significa que os intérpretes tenham uma compreensão melhor, em que pese sua superioridade histórica em relação ao autor, mas uma compreensão diferente. Este texto pretende mostrar como, em Iracema, apesar de tantos cuidados e explicações, José de Alencar não conseguiu evitar que o tempo trouxesse a sua obra novas visões e interpretações.
Palavras-chave: Intenção; Recepção; Iracema; História “efeitual”; Reciclagem.
Intenção e recepção em
Iracema, de José de Alencar
Cid Ottoni Bylaardt *
* Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará.


A questão da produção e da recepção em literatura, envolvendo intenção e interpretação, ainda provoca controvérsias. Esse é um dos vários assuntos levantados de maneira instigante por Antoine Compagnon (1999b), em O demônio da teoria. Em La notion de genre, Compagnon (1999a, p. 10) justifica o título de seu livro O demônio da teoria, atribuindo aos estudiosos
de literatura o caráter de gênios da tentação: “Je voudrais faire de vous des protestants de la théorie, des démons de la théorie [...]”. A teoria não pode, na opinião do autor, ser um vade-mécum comportado, cujo papel é o mais das vezes representado pelo senso comum, que inclui idéias preconcebidas, velhas concepções, linguagem corrente, noções populares. Sua ação tem de ser desafiadora e instigadora, deve provocar e propiciar “les conflits du sens commun et de la théorie, la résistence du sens commun, les excès de la théorie” (COMPAGNON, 1999a, p. 10). Fazendo da perplexidade a única moral literária, Compagnon pretende empreender um “combate feroz e vivificante” (COMPAGNON, 1999a, p. 10, tradução nossa) entre a teoria e o
senso comum, “toujours d’un point de vue sceptique, ironique, désabusé, non dupe” (COMPAGNON, 1999a, p. 10).

Os capítulos do livro de Compagnon (1999b) que tratam da problemática da concepção e da recepção são principalmente “O autor” (cap. II) e “O leitor” (cap. IV), embora toda a obra esteja perpassada por essas e por outras preocupações concernentes à teoria literária. Ao abrir a discussão sobre intencionalidade e não-intencionalidade, o autor invoca três “textos-guias” para iniciar o “delicado debate” sobre a pertinência ou não de buscar a intenção do autor para a melhor compreensão de um texto. Os textos são o prólogo de A vida inestimável de Gargântua, pai de Pantagruel (1534), de François Rabelais, Contre Sainte-Beuve (provavelmente 1905), de Marcel Proust, e o conto “Pierre Menard, autor del Quijote” (1941), de Jorge Luis Borges.

Compagnon (1999b) cita esses três textos como instigadores de uma busca. Procurar “o que o autor quis dizer” em um texto é acomodar-se a velhas noções; por outro lado, eliminar sumariamente o autor corresponde a ignorar a existência de um ser humano por trás do ato de criação. Que fazer então? Tentar conciliar os opostos? Partiremos das enunciações dos autores citados (e de mais alguns outros, especialmente Hans-Georg Gadamer) sobre o assunto, para em seguida empreender uma investigação da resistência histórica relacionada ao binômio concepção/recepção de um cânone da literatura brasileira: Iracema, de José de Alencar, obra publicada no ano de 1865.

No prólogo a La vie trés horrificque du grand Gargantua père de Pantagruel, Rabelais ([19—], p. XIX) adverte os leitores de que o livro dele não é recheado apenas de gracejos, zombarias e mentiras: “C’est pouruoy fault ouvrir le livre et soigneusement peser ce quy est deduict”. O autor segue afirmando que, embora os títulos dos capítulos possam parecer idiotices, o leitor deve esforçar-se por interpretá-los “à plus haute sens”. Comparando a leitura de seu livro ao trabalho de um cão ao quebrar um osso e comer o tutano, o leitor deve procurar o sentido alegórico de suas palavras, segundo os preceitos da antiga hermenêutica; assim fazendo, ele terá sua recompensa: “car en icelle bien aultre goust trouverez et doctrine plus absconce, laquelle vous revelera de très haultz sacremens et mysteres horrificques, tant en ce que concerne nostre religion que aussi léstat politicq et vie oeconomicque” (RABELAIS, [19—], p. XIX). Rabelais diz não acreditar que Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisséia, tivesse em mente as “allegories lesquelles de luy ont calfreté Plutarche, Heraclides Poticq, Eustatie, Phornute”; da mesma forma, as aventuras de Gargântua não têm quaisquer alegorias intencionadas por seu autor, mas o leitor pode interpretá-las ou criá-las à vontade, responsabilizandose por elas: “Pour tant, interpretez tous mes faictz et mes dictz en la perfectissime partie; ayez en reference le cerveau caseiforme qui vous paist de ces belles billes vezées, et, à vostre povoir, tenez moy tousjours joyeux” (RABELAIS, [19—], p. XIX). A intenção do autor, no caso de Gargantua, não é revelada, e o leitor tem o direito de construir a significação da obra. Na narrativa de Borges (2000), o escritor Pierre Menard escreve o Dom Quixote de Cervantes. Sua proposta não era copiar o Dom Quixote mas “producir unas páginas que coincidieran – palabra por palabra y línea por línea – com las de Miguel de Cervantes” (BORGES, 2000, p. 47). O narrador recusa considerar o texto
do personagem transcrição ou cópia do Dom Quixote do século dezessete, porque são duas obras diferentes, separadas por três séculos. O texto de Menard é, para o narrador, “casi infinitamente más rico” (BORGES, 2000, p. 52). Há ainda um contraste de estilos: Cervantes maneja o espanhol corrente de sua época, enquanto o estilo arcaizante de Menard sofre de alguma afetação. Enfim, o fato de os dois textos terem sido escritos por autores diferentes em épocas diferentes provoca interpretações diferentes. Nesse caso, o texto em si não é responsável único
pelas interpretações que se fazem dele: as circunstâncias de sua concepção são em grande parte responsáveis por sua compreensão. Assim, Pierre Menard enriqueceu o ato de ler com uma técnica inovadora, “la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas” (BORGES, 2000, p. 55).

O terceiro texto citado por Compagnon consiste numa reflexão crítica de Marcel Proust contra a crítica literária autodenominada “científica”, corrente no final do século XIX, que Proust (1988, p. 52) chamava ironicamente “botânica literária”. Essa crítica preocupava-se com a biografia do autor, a história de sua família, seus gostos, seus amores, o que pensava da religião e da natureza, sua condição de rico ou de pobre, seus vícios etc. Segundo Proust (1988, p. 52), esse método

[...] desprezava aquilo que uma convivência um tanto profunda com nós mesmos pode ensinar: que um livro é produto de um outro eu e não daquele que manifestamos nos costumes, na sociedade, nos vícios. Aquele eu, se desejamos tentar compreendê-lo, está no fundo de nós mesmos; tentando recriá-lo em nós é que podemos atingi-lo.

Proust não nega a existência de uma intenção; ele nega é o fato de que
essa intenção resida no homem comum, no escritor biográfico, quando na realidade
ela parte de um “outro eu”, que não pode ser revelado pela história de
sua vida.

Os três textos-guias citados por Compagnon (1999b), portanto, levantam
questões concernentes à existência de uma relação entre o contexto e o texto:
Rabelais pressupõe uma intenção, mas não a revela, deixando ao leitor o encargo
de construir os significados; Proust admite a intenção, mas não a deposita no
autor de carne e osso; Borges declara a importância dos contextos e das intenções
para a compreensão dos textos.

O contexto e a intenção podem ter sua importância, sim, mas o “querer-dizer”
do autor não pode ser o guia principal para a compreensão do texto,
como postulava a hermenêutica romântica, que pensava a compreensão como
uma reprodução das idéias originais do autor, propondo-se a compreender um
autor “melhor” do que ele se compreendia.

Hans-Georg Gadamer faz uma revisão dessa postura da hermenêutica romântica
em sua obra Verdade e método. Segundo ele, há uma tensão que “se
desenrola entre a estranheza e a familiaridade que a tradição ocupa junto a nós,
entre a objetividade da distância, pensada historicamente, e a pertença a uma
tradição. E esse entremeio (Zwischen) é o verdadeiro lugar da hermenêutica”
(GADAMER, 1999, p. 442 – grifo nosso). A distância histórica interpõe entre o
autor e o intérprete uma diferença intransponível, que impede o leitor de
reproduzir uma obra em seu contexto original. Para Gadamer (1999, p. 443),

Cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar,
pois o texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um
interesse pautado na coisa e onde também ela procura compreender-se a si
mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu
intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o
autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse
sentido será sempre determinado pela situação histórica do intérprete e, por
consequência, por todo o processo objetivo histórico.


O sentido de um texto supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e os leitores que virão terão uma carga de acumulação histórica adicional em relação a ele. Isso não significa que os intérpretes têm uma compreensão melhor, em que pese sua posterioridade histórica em relação ao autor, mas uma compreensão diferente, produto de uma reciclagem do texto. Esse é o conceito de compreensão que rompe com os postulados da hermenêutica romântica.

A constatação de que compreender diferente não significa trair o texto faz com que a distância de tempo não seja, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. “Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender” (GADAMER, 1999, p. 445). Gadamer vai além, afirmando que “a distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa” (1999, p. 446). Isso não significa que esse “verdadeiro sentido” seja atingido em determinado momento, porque o processo é infinito, a distância de tempo não tem uma dimensão acabada, donde se conclui que o verdadeiro sentido são muitos, dado o caráter de contínua renovação da “verdade”. O autor atribui ao ato de compreender um processo de “história efeitual” (GADAMER, 1999, p. 449), isto é, há sempre um efeito de acumulação histórica (e acúmulo de compreensão histórica) na própria compreensão da história das obras transmitidas.

É sob esse ponto de vista que se investigarão aqui as relações entre o texto de Iracema, de José de Alencar, as intenções de seu autor, e a recepção da obra no decorrer do tempo e, principalmente, na era contemporânea. Alencar teve para com seu texto cuidados especiais, tentando não permitir que ele errasse pelo mundo ao sabor de variadas interpretações. O que pretendemos demonstrar é que, apesar de tantos cuidados e explicações, o autor não conseguiu evitar que o tempo trouxesse novas visões e interpretações à obra.

O que chamamos “cuidados especiais” são os textos adicionais que normalmente acompanham o romance. São eles: o “Prólogo da primeira edição”, o “Argumento histórico”, a “Carta ao Dr. Jaguaribe”, publicada como posfácio à primeira edição, o “Pós-escrito à segunda edição” e as 116 notas distribuídas ao longo dos capítulos, num montante de textos que seguramente equivale ao tamanho do próprio romance, quase como se cada palavra da narrativa tivesse um correspondente metalingüístico a explicar-lhe a existência.

As preocupações do autor são muitas. No “Prólogo”, ele já se pergunta “qual sorte será a do livro?”, ao qual se refere como “o filho de minha alma” (ALENCAR, 1965, p. 46). O romance foi escrito e publicado no Rio de Janeiro, e a grande expectativa do autor era a recepção da obra em sua terra natal, o Ceará.

No “Argumento histórico”, Alencar (1965, p. 145) procura dar ao romance o suporte mundano e para tanto, embora tenha sempre o zelo de ser fiel à “verdade histórica” e confiar nas crônicas e escritos do século XVII, elege a tradição oral como “uma fonte importante da história, e às vezes a mais pura e verdadeira”.

Outra preocupação do autor, expressa na “Carta ao Dr. Jaguaribe”, é a de que a linguagem de seus índios não seja uma linguagem clássica, portuguesa, ou seja, que “a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara, e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem” (ALENCAR, 1965, p. 141). Nesse ponto, José de Alencar demonstra ter vivido um impasse. Dar à língua uma feição mais primitiva exigiria a incorporação de termos indígenas que não tinham correspondentes portugueses à altura da exigência poética. Essa tentativa seria, entretanto, compreendida pela recepção da obra? Valeria a pena concretizar a inovação correndo o risco de não ser compreendido? “Que fazer? Encher o livro de grifos que o tornariam mais confuso e de notas que ninguém lê? Publicar a obra parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto literário? Dar leitura dela a um círculo escolhido, que emitisse juízo ilustrado?” (ALENCAR, 1965, p. 142). Uma das soluções encontradas por José de Alencar foi escrever em prosa o texto que inicialmente deveria ser um poema épico, para que a flexibilidade desse tipo de escrita propiciasse maior espontaneidade às inovações. Ele não pôde, entretanto, abrir mão das “notas que ninguém lê”, que contam mais de uma centena em trinta e três capítulos.

Ao final da “Carta”, José de Alencar afirma que só a recepção de sua obra determinará a sua perseverança nesse gênero de literatura indianista, ou o seu abandono dele, e conclui prometendo a correção de alguns defeitos para uma próxima edição.

No enorme “Pós-escrito à segunda edição” Alencar tece extensas considerações ortográficas e gramaticais e defende-se da acusação de um crítico português, Pinheiro Chagas, que censura nos brasileiros “a falta de correção na linguagem portuguesa ou, antes, a mania de tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português por meio de neologismos arrojados e injustificáveis e de insubordinações gramaticais” (ALENCAR, 1965, p. 168). Como argumento para tal defesa o autor invoca o direito de “criar uma individualidade nossa, uma individualidade jovem e robusta, muito distinta da velha e gloriosa individualidade portuguesa” (ALENCAR, 1965, p. 171).

No mesmo artigo, argumenta a favor de uma linguagem brasileira e defende a verossimilhança de suas imagens – como a do índio que, do alto de uma palmeira, flecha um peixe na água –, a migração da jandaia e a existência do coqueiro no Brasil no século XVII. De tudo o autor defende sua utilização, citando documentos que comprovam sua existência. José de Alencar termina esse texto declarando: “É preciso pôr aqui termo a esse pós-escrito, para que não fique um livro acostado a outro” (ALENCAR, 1965, p. 181.). A propósito, esse pós-escrito tem vinte e uma páginas.

As notas aos capítulos têm funções variadas, com informações etimológicas e toponímicas, além de considerações sobre os costumes dos índios.

Todo esse aparato metalinguístico visa a proteger o “filho”, o texto, de possíveis outras interpretações. Qual é, então, a intenção que o autor pretende preservar em relação ao seu texto? É evidente que Alencar tem um projeto “brasilianista”, dentro da proposta burguesa do romantismo, especialmente se se considerar a época em que a obra foi escrita, um momento de busca de uma identidade nacional. O índio representou então para uma parcela da intelectualidade brasileira uma maneira de exibir algo que nos fosse próprio, não encontrável na Europa, de onde se trazia tudo (roupas, músicas, instrumentos musicais, moda etc.) para a nossa burguesia. Alencar, particularmente, assume essa busca, quando defende, por exemplo, o abrasileiramento da língua, contra a postura preservacionista do logocentrismo português.

Alencar tem um evidente objetivo de destacar a importância do elemento autóctone como iniciador da raça brasileira, e sua proposta é apresentar aos leitores um mito de origem. Há por certo a intenção do autor de cantar as glórias dos índios, exaltar a exuberância natural da Terra brasilis, bem como a beleza física e moral de Iracema. Reside ainda em sua intenção dar valor ao índio como espírito da civilização nacional, como elemento histórico e poético de nossas origens, de nossa nacionalidade.

Muitas são as intenções do autor, mas a leitura atual não pode e não deve se restringir a elas. Como afirma Compagnon (1999b, p. 63), “para uma hermenêutica pós-hegeliana, pois, não há mais primado da primeira recepção, ou do ‘querer-dizer’ do autor, por mais amplo que seja o termo”. Assim, a “diferença intransponível” que separa o texto produzido na segunda metade do século XIX do leitor do início do século XXI, a “distância histórica” entre produção e recepção tem de provocar uma nova leitura, por mais que o texto original
esteja cercado de advertências e explicações.

O fato é que o sentido da obra não pode ficar paralisado no tempo por efeito de declarações de intenções e outras explicações. Assim como a intenção original pode ser enriquecida, novas significações podem ser agregadas no sentido de questionar a própria intenção do autor ao se confrontá-la com a realização.

Um exemplo de valor agregado é a “descoberta” emocionada do crítico Afrânio Peixoto (1931, p. 163), em Noções de história da literatura brasileira, de que o nome “Iracema” é um anagrama da palavra “América”, “símbolo secreto do romance de Alencar que, repito, é o poema épico definidor de nossas origens, histórica, étnica e sociologicamente”.

Silviano Santiago (1975, p. 11), em suas notas à leitura do romance, lança algumas perguntas sobre o texto e as explicações do autor: “Seria possível uma outra leitura do texto de Alencar sem levar em conta prólogos, posfácios e notas? Isto é, poderá o filho-texto ter uma circulação independente dos cuidados ‘paternos’?”.

Sem pretender apresentar aqui uma argumentação extensa em resposta às perguntas de Santiago, poderíamos dizer que a ausência das notas poderia ter diversos efeitos. Na maioria dos casos, a leitura seria enriquecida, porque os 136 anos que nos separam da publicação da obra certamente teriam produzido – como produziram – interpretações e mais interpretações que teriam preenchido com vantagens as explicações “paternas”.

Os símbolos maiores, entretanto, cremos que seriam preservados. As ideias de maternidade, paternidade e filiação relacionadas à lenda do surgimento de uma nação teriam permanecido como alegorias mais ou menos óbvias; alegorias, aliás, que o autor não explicita claramente em suas considerações metalingüísticas. Não nos parece, portanto, que a ausência de explicações pudesse ter dado ao texto um destino totalmente diferente do que teve até agora, até mesmo pela ação da “história efeitual” de que fala Gadamer (1999).

Em que, na realidade, as sucessivas interpretações de um texto mais que centenário contribuíram para mudar o destino traçado pelo pai? Na questão da realização lingüística, por exemplo, é hoje uma unanimidade o arrojo inovador de José de Alencar, daquele mesmo José de Alencar que se colocava numa posição de receio em relação a sua própria novidade, ameaçando inclusive abandonar o projeto dependendo da recepção da obra.

Há, entretanto, outros elementos que somente a distância histórica pôde detectar e que de certa forma desmistificam algumas das intenções do autor. Trata-se principalmente de sua visão inconscientemente etnocêntrica das relações entre os índios e os brancos. A tentativa do autor é sem dúvida de encenar uma relação harmônica entre aquelas que ele propõe como as duas grandes etnias iniciadoras da “raça brasileira”.

Todavia, uma análise mais detalhada da narrativa desvela um status quo que mesmo um escritor do porte de Alencar não conseguiria trair. Relacionaremos a seguir alguns dos acontecimentos e comentários que revelam uma visão européia dessa relação.

No final do segundo capítulo, o personagem branco Martim demonstra possuir a linguagem dos índios, bem como suas terras: “Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus” (ALENCAR, 1965, p. 52).

Ao final da narrativa, Iracema, seu povo e seu Deus morrem, demonstrando uma fragilidade incompatível com sua presumida grandeza. Poti, o índio que se torna Antônio Felipe Camarão, acultura-se, renunciando a sua religião, atirando-se à cruz erguida no primeiro povoado, sem hesitar. A civilização branca vence; o dominador se estabelece. O elemento indígena cede lugar ao invasor, que consolida sua conquista: “A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá” (ALENCAR, 1965, p. 138).

Considerando, entretanto, que Martim também havia sido “batizado” pelos pitiguaras, tornando-se Coatiabo, não se poderia afirmar que a aliança entre Martim e Poti guarda elementos de reciprocidade, de intercâmbio de valores? Vamos então examinar as duas situações.

No caso do batismo de Martim, ele deveria tornar-se filho de Tupã, mas parece que nunca reconheceu a filiação, já que seu “deus verdadeiro” não o permitiria jamais. Na cerimônia, ele recebe o nome de Coatiabo, que significa guerreiro pintado. E não falta tinta para tanta pintura: vários símbolos indígenas – riscos vermelhos e pretos, flecha, gavião, raiz de coqueiro, asa, abelha, folha – são pintados no corpo de Martim. Em seguida, recebe de Poti o arco e o tacape,
que são as armas nobres do guerreiro, e de Iracema o cocar e a araçóia, ornatos dos chefes ilustres. Após a cerimônia, vem a comemoração: “Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram as danças alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria, ressoavam as canções” (ALENCAR, 1965, p. 114).


E assim vai até o amanhecer. Passada a ressaca da esbórnia, supõe-se que Martim olvida o novo nome, a nova filiação. Nunca mais se ouve falar das pinturas em seu corpo. Como ele era um guerreiro índio apenas pintado, supõe-se que a brancura de sua pele lhe tenha sido devolvida pela água do mar. As armas recebidas de Poti e os ornatos dos chefes ilustres que Iracema havia tecido para o esposo perdem rápido a significação. A alegria e o orgulho de receber tal honraria duram “o tempo que as espigas de milho levam para amarelecer” (ALENCAR, 1965, p. 114), o que não parece muito. Tanta doçura começa a enjoar: “A caça e as excursões pela montanha em companhia do amigo, as carícias da terna esposa que o esperavam na volta, e o doce carbeto no copiar da cabana, já não acordavam nele as emoções de outrora” (ALENCAR, 1965, p. 116). O apelido Coatiabo – guerreiro pintado – não consegue fazer frente ao nome Martim – guerreiro verdadeiro, filho de Marte, divindade guerreira na mitologia dos europeus. O batismo de Martim é apenas uma representação, uma concessão à cultura autóctone.


O batismo de Poti, entretanto, reveste-se de uma significação perene. O evento coincide com a fundação do primeiro povoado do Ceará: “Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem” (ALENCAR, 1965, p. 137).


A cruz, plantada com raízes profundas, alastra-se pela “terra da liberdade” (liberdade de quem?). Poti precipita-se na reverência ao grande lenho, renegando Tupã, porque ele e Martim “deveriam ter ambos um só Deus, como tinham um só coração” (ALENCAR, 1965, p. 138). Além de um só deus, uma só cultura. Poti transforma-se em Antônio Felipe Camarão (o nome do santo do dia, o nome do rei espanhol que então governa Portugal, e o seu próprio nome traduzido para o português). Assim, o surgimento da nova civilização ocorre à custa do sacrifício da cultura indígena. “Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1965, p. 138), avisa o narrador ao final. As coisas são transitórias, e assim o é a civilização dos índios.


Há outros momentos em que o enunciador, vigiado pelo autor, denuncia sua postura pró-brancos. Um é aquele em que descreve os sentimentos de Martim, quando este começa a enjoar do mel de Iracema e da fidelidade de Poti:


Como o imbu na várzea, era o coração do guerreiro branco na guerra selvagem. A amizade e o amor o acompanharam e fortaleceram durante um tempo, mas agora, longe de sua casa e de seus irmãos, sentia-se no ermo. O amigo e a esposa não bastavam mais à sua existência cheia de grandes desejos e nobres
ambições. (ALENCAR, 1965, p. 122)


Aí está o que supomos ser um ato falho do narrador. Na ânsia de expressar os sentimentos do cristão, deste eleva ao máximo os desejos e as ambições, esquecendo-se de que, assim o fazendo, está automaticamente atribuindo ao elemento índio o oposto, ou seja, pequenos desejos e ignóbeis ambições. O grandioso está do lado do homem branco.


Outro momento é aquele em que, numa das notas ao capítulo 11, o autor desautoriza a magia indígena, a propósito de uma ação do Pajé Araquém:


– Ouve seu trovão e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.
Araquém, proferindo essa palavra terrível, avançou até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão; súbito, abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um medonho gemido que parecia arrancado das entranhas do rochedo. (ALENCAR, 1965, p. 74)


A cena chega até nós como uma bela mágica perpetrada pelo feiticeiro. Em sua nota à passagem, entretanto, o autor arranca toda a beleza de seu encanto:


Todo esse episódio do ruído da terra é uma astúcia, como usavam os pajés e os sacerdotes de toda a nação selvagem para fascinar a imaginação do povo. A cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterrânea que comunicava com a várzea por estreita abertura; Araquém tivera o cuidado
de tapar com grandes pedras as duas aberturas, para ocultar a gruta aos guerreiros. Nessa ocasião, a fenda inferior estava aberta, e o Pajé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com estridor medonho, e de que pode dar uma idéia o sussurro dos caramujos. (ALENCAR, 1965, p. 154)


A explicação do autor é apontada por Silviano Santiago (1975, p. 28) como desnecessária e preconceituosa:


Dentro de uma determinada atitude alencariana de ceticismo quanto aos valores e mecanismos do sagrado entre os indígenas, percebe-se aqui o desejo exagerado de querer, em nota fora do texto, propriamente, desmistificar possíveis ações sobrenaturais que são plenamente verossímeis ao nível da ficção. Intromissão pouco pertinente e sobretudo demonstradora do preconceito etnocêntrico do romancista. O que é manifestação de magia entre os indígenas é compreendido e traduzido pelo escritor “civilizado”, que no mito indígena apenas descobre um fenômeno que pode ser explicado pela física. Assim é que a linguagem da terra, ou fala de Tupã, descoberta e usada pelos pajés para acentuar seu poder religioso entre os companheiros, é vista, na nota, como mera “astúcia”, enquanto o fato sobrenatural (dentro da ótica indígena) é apenas “natural” para Alencar. [...] Talvez esse seja um dos maiores exemplos do conflito entre o texto e a nota, entre o filho-texto e o pai-autor, mostrando como aquele se encontra tolhido em sua “verdade” pela nota esclarecedora do pai que logo o assinala como “falso”.


Apesar da intenção de valorizar a cultura indígena, fica evidente que o autor adota uma postura etnocêntrica em favor do conquistador, e a ótica estruturadora do romance é claramente a do civilizado e do cristão. Eis aí o que chamamos de paradoxo entre a intenção e a realização. O mito da harmonia das raças só funciona na intenção, e o resultado é a dominação econômica e cultural
da terra pelo colonizador branco, tendo o indígena como aliado, após a eliminação dos que resistiram. Essa dominação, emoldurada por um discurso lírico, consuma-se no amor entre Martim e Iracema, símbolo da terra que se recusa ao próprio índio.


Teria sido possível a Alencar perceber lucidamente sua postura em meados do século XIX? Possivelmente não. O próprio Machado de Assis, dotado de extremo espírito crítico, não se permitiu extrair dessa narrativa uma história de dominação, ou a alegoria do nascimento de uma raça. Em crítica datada de 1866, o autor de Dom Casmurro exalta a história do amor entre Martim e Iracema, a nobreza dos sentimentos indígenas, bem como a do elemento branco, cada qual em sua cultura, como no caso da amizade entre Poti e Martim: “a afeição de Poti tem a expressão ingênua, franca, decidida; Martim não sabe ter aquela simplicidade selvagem” (ASSIS, 1961, p. 82). Nem uma palavra sobre dominação, nada sobre aculturação nem sobre extermínio. Mesmo criticando a superabundância de imagens, Machado ainda assim a justifica como elemento próprio à “poesia americana”, a que hoje conhecemos como indianista.


Mais para o final do século XIX, em obra publicada em 1888, o crítico e historiador literário de linha positivista Sílvio Romero demonstra um certo desdém pela literatura indianista, embora elogie em José de Alencar sua capacidade de observação, seu vocabulário rico e seu estilo “sonoro e brilhante”. O crítico reconhece que Gonçalves Dias e José de Alencar, principalmente, conseguiram manter nossa literatura a salvo da imitação do triunvirato romântico português: Garrett, Herculano e Castilho. Se formalmente o indianismo apresentava alguma virtude, o “critério etnográfico”, que para o crítico é a “base principal da compreensão das literaturas”, coloca o elemento indígena como um “vulto mudo a esvair-se no centro de nossa vida, no marulho de nossa civilização” (ROMERO, 1980, p. 919, 921). Na crença do crítico, os índios constituem um povo que “não deu certo” na vida real e portanto devem ser eliminados da literatura:


Não quis ou não pôde sentir as agitações de um outro viver, escutar os ruídos de outras formas de anseios, de liberdade, de crenças, de lutas que a turba, às vezes tirânica, dos conquistadores lhe quis fazer entender. A raça selvagem está morta; nós não temos nada mais a temer ou a esperar dela. (ROMERO, 1980. p. 921)


Em confronto com a concepção de Sílvio Romero, Alencar certamente foi mais benevolente para com os índios, ao exaltar neles algumas qualidades morais e seu heroísmo, que o crítico nega. É lógico, portanto, que Romero não quisesse ver na história alegórica de nossas origens nada mais do que uma justa tomada de posição do conquistador em relação a um povo fraco e fugidio.


A recepção do texto de Alencar 136 anos depois, portanto, tem de apresentar necessariamente uma “verdade” em relação às outras que se realizaram no correr dos anos. Essa recepção escapa das indicações do autor, por mais que ele cercasse seu texto de cuidados.


Rabelais ([19—]) deixou ao encargo dos leitores transformar seu texto em uma obra-prima, sem maiores recomendações; Proust (1988), negando a intenção do escritor biográfico, nega indiretamente as advertências de Alencar; Borges (2000), com seu “Pierre Menard, autor del Quijote”, sugere-nos que há um Iracema em 1865 e outro Iracema em 2001.


O texto, enfim, supera sempre as intenções de seu autor. Quando, entretanto, elas são explicitadas, podem fornecer novas possibilidades que se entrelaçarão à situação histórica do intérprete, cuja leitura sempre irá agregar ao texto novas significações e atualizações, numa reciclagem que pode inclusive traí-la “de maneira fecunda”, como estabelece Antoine Compagnon (1999b, p. 63) e como acontece com uma leitura contemporânea de Iracema.



Abstract
The meaning of a text always surpasses its author’s intentions, as interpreters and readers to come will have an amount of additional historical accumulation towards it. That does not mean interpreters understand it better, despite their historical superiority over the author, but they understand it differently. This paper intends to show how, regardless of all his care and explanations, José de Alencar could not avoid new visions and interpretations of Iracema in the coming years.
Key words: Intention; Reception; Iracema; Effectual history; Recycling.


Referências
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2 comments:

  1. Anonymous1:46 PM

    Olá Professor Cid! Sou aluna da UFC virtual (letras) e adoro td q vc escreve. :)

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  2. Anonymous1:47 PM

    This comment has been removed by the author.

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