Monday, March 05, 2007

HERESIAS DA LETRA SEM CORPO E DO ESPÍRITO ERRANTE
Uma leitura do romance As iniciais, de Bernardo Carvalho

Cid Ottoni Bylaardt
(Doutor em Literatura Comparada pela UFMG.
Professor Adjunto do Departamento de Literatura da UFC)


Resumo
Este texto pretende desenvolver a idéia de perturbação democrática da letra órfã, postulada por Jacques Rancière, passando pelas concepções de escrita de Homero, Platão e Aristóteles. A errância da letra sem pai que a proteja conduz à idéia de supressão das belas-letras, com a instauração da literatura, que proclama sua autonomia em detrimento do edifício mimético. Essas concepções nortearão a averiguação que se conduzirá sobre a narrativa As iniciais, de Bernardo Carvalho, cuja dispersão encena textos desvinculados do mito, da alegoria e da história.

Palavras-chave: errância, heresia, letra sem pai, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Abstract
This text intends to develop the idea of democratic disturbance of the orphan letter, postulated by Jacques Rancière, going by the conceptions of writing of Homer, Plato and Aristotle. The letter that wanders without a father to protect it leads to the idea of suppression of the belles lettres, establishing the notion of literature, which proclaims its autonomy towards mimesis. Those conceptions will orientate this investigation of Bernardo Carvalho’s text, As iniciais, whose dispersion exhibits reports disentailed of myth, allegory and history.

Key-words: wandering, heresy, fatherless letter, Rancière, As iniciais, Bernardo Carvalho

Os fundamentos destas considerações encontram-se nas formulações de Jacques Rancière sobre o conceito de literatura, em oposição ao de belas-letras, e suas implicações para o mundo da escrita e para o que ele denomina mundo das condições. Daí a necessidade de se definirem alguns conceitos trabalhados por Rancière, tais como literatura, belas-letras, sistemas de legitimação, democracia, orfandade e errância das palavras, que conduz ao que ele chama “heresias da letra sem corpo e do espírito errante”. Uma vez estabelecidos, esses princípios nortearão a investigação que se conduzirá sobre o romance As iniciais, de Bernardo Carvalho.
A proposta de Rancière se baseia em sua recusa de investigar a escrita sob o ponto de vista das formas estereotipadas do pensamento de hoje.
Recusa, para começar, de instalar-se no fim da filosofia e na infelicidade dos tempos. (...) Recusa, por outro lado, de seguir a onda do social, de ceder ao peso dominante do pensamento estatizado, este pensamento segundo o qual nada existe senão estados de coisas, combinações de propriedades, e que julga as práticas e os discursos na medida em que eles reflitam, desmintam ou desconheçam estas propriedades. (ALLIEZ, 1996, p. 100)

A questão do “próprio” da literatura, ou “o ser da coisa literária” em oposição ao saber dos letrados, as belas-letras, parte dessa recusa. Na escrita, as “combinações de propriedades” estruturam o edifício mimético, que fornece os elementos de investigação aos filósofos da escrita, os quais evitam a desordem literária, encerrando as letras nas categorias estabelecidas para a poesia e para a ficção.
Toda essa formulação da representação, que Rancière tenciona subverter, passa por três cânones notáveis: Homero, Platão e Aristóteles.
O ponto inicial de inquietação é Platão, que desmascara a dupla mentira de Homero e seus pares: seus deuses movidos por querelas e adultérios desmentem sua própria divindade; sua palavra escondida na palavra de seus personagens desmente sua paternidade do discurso. No Fedro, os poetas são considerados almas de sexta categoria, por serem meros produtores de imitação, e não investigadores da verdade.
A própria palavra escrita deve ser vista com reservas, por seus possíveis efeitos perniciosos, adverte Platão, ao relatar o mito egípcio da invenção da escrita. Conforme o relato socrático, o deus Theuth foi ter com o deus Thamus e mostrou-lhe suas invenções, que iam sendo criticadas pelo outro, com boas ou más palavras. Após tantas artes, apresentou-se-lhe a escrita, que, segundo o inventor, tornaria os egípcios mais sábios e lhes fortaleceria a memória e lhes consolidaria a sabedoria. Dando seu parecer, Thamus elogiou o outro por sua arte, mas discordou dos benefícios da invenção:
(...) this discovery of yours will create forgetfulness in the learners’ souls, because they will not use their memories; they will trust to the external written characters and will not remember of themselves. The specific which you have discovered is an aid not to memory, but to reminiscense, and you give your disciples not truth, but only the semblance of truth; they will be the hearers of many things and will not have learned nothing; they will appear to be omniscient and will generally know nothing; they will be tiresome company, having the show of wisdom without the reality. (PLATO, 1991, p.138)

A idéia da perturbação da letra órfã, que Rancière vai relacionar ao advento da democracia, aparece em Platão como uma ameaça à verdade, ou à adequação entre o enunciador, o discurso e o receptor:
And when they [the speeches] have been written down, they are tumbled about anywhere among those who may or may not understand them, and know not to whom they should reply, to whom not: and, if they are maltreated or abused, they have no parent to protect them; and they cannot protect or defend themselves. (PLATO, 1991, p.139)

Além do mito da invenção da escrita, há no diálogo platônico o mito das cigarras (enunciados que têm voz identificável e privilegiada: as cigarras receberam das musas o honroso privilégio de não necessitarem de alimentação em toda sua vida, sendo capazes de cantar, do nascimento até a morte, sem comer nem beber), que separa os trabalhadores dos dialéticos, e o mito da parelha de cavalos alados, que reforça essa divisão e identifica os “donos das vozes”. Uns alcançam as verdades celestes, outros não; estes não têm o poder da palavra, aqueles trocam palavras a qualquer hora do dia. É essa relação ordenada do fazer, do ver e do dizer, em que os papéis são estabelecidos segundo uma hierarquia de legitimação, que a escrita vem desfazer.
Há em Platão, portanto, a preocupação com a verdade, a que os poetas épicos fogem, com a identificação dos corpos que engendram palavras, de acordo com seu nível, o mais elevado dos quais é o dos filósofos que buscam a verdade divina. Há também uma inquietação quanto ao destino errante da palavra órfã na escrita sem pai, que não é capaz de defender-se nem de proteger-se por si.
As preocupações de Platão acabam por legitimar o enganador como poeta, que é reabilitado pela Poética de Aristóteles. A mentira, denunciada por Platão, regulamentada por Aristóteles, acaba por se instituir como saber através da convenção que o edifício mimético estabelece entre o autor, o discurso e o receptor. A mentira não é então mentira, é ficção, é a “regra séria do não-sério”, na expressão de Rancière.
Na idade moderna, a fábula platônica foi representada pelos “filhos do povo”, que descobriram escritos desconhecidos e/ou misteriosos e deles se apropriaram. A viuvez da postura platônica faz-se sentir entre aqueles que lamentam as devastações da letra muda/falante , da letra órfã, como os filósofos da monarquia, a vociferarem contra os joões-ninguém, incitadores de sedição que se apropriam da escrita que não lhes é destinada para realizar seus desígnios.
A literatura, ao se opor às belas-letras, representa o desvio da concepção ordenada da prosa em direção às aventuras do sentido, inaugurando uma nova partilha entre a ordem do discurso e a das condições. Rancière propõe que literatura não é apenas o que sucede as belas-letras, mas aquilo que as faz desaparecer, como evento singular da escrita, não mais subordinado à concepção clássica da inventio (assunto), da dispositio (organização das partes) e da elocutio (tons e complementos convenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto). É a ruptura da literatura, que contém em si a ilusão da continuidade, mas que leva a sua absolutização. Não mais as relações estáveis entre as palavras e as coisas e as idéias. Não mais a ordenação das posições do falante e do discurso, do pai enunciador e da letra filhote. Não mais o elemento ordenador da mimese. Não mais a convenção entre o enunciador e o destinatário que regula as maneiras de recepção da obra de arte, ruptura representada pelos golpes de espada de Dom Quixote nas marionetes de mestre Pedro. Não mais a correspondência entre a letra e seu pai, mas a falha entre o corpo e a letra. No caso de Dom Quixote, sua loucura reside em sua falha, que é o paradoxo de ser ele ao mesmo tempo o homem do atraso cavaleiresco e o herói da modernidade literária. Herói porque não reconhece mais a relação convencional entre ficção e não-ficção, desautorizando as belas-letras, que organizam a ficção dentro da realidade, a “regra séria do não-sério”, estabelecendo um jogo entre os modos de discurso e os modos de recepção, em que enunciador e receptor obedecem às premissas convencionadas.
A quebra das convenções estabelece a “doença” da escrita: sua orfandade faz com que a contingência determine seu referencial, ou seja, a escrita não possui a priori um referencial ou um enunciador pré-determinado. A teoria da representação lingüística (cada palavra a uma coisa representada) ou a idéia de que a palavra é signo sucumbem aí. O remédio para a doença da escrita é sempre outra escrita, um texto que corrige as falhas do outro.
A palavra é deslegitimada pela ausência do pai, como a sociedade das deslegitimações que tende a derrubar a divisão entre os superiores e inferiores em vários níveis, num regime que remete ou que converge para a desigualdade e para a desordem democrática. Essa perturbação é um efeito da disseminação dos discursos, que confirma a deslegitimação própria da democracia, dispersão e desvio da letra, que erra sem voz que lhe confira legitimidade.
É a pulverização do corpo glorioso de uma sociedade, outrora representado pela epopéia de um povo, em que o criador escreve como quem fabrica armas e utensílios necessários à perpetuação da tribo, num imitativo elevado que exprime o ethos da coletividade. A ordenação tem de ser respeitada, o modo de ser da literatura corresponde aos modos de fazer da comunidade.
A literatura não mais belas-letras, em oposição à escrita convencional, é capaz de dar a qualquer corpo obscuro a capacidade do brilho, porque a escrita deixa de se enquadrar em esquemas de representação para promover a errância da letra sem pai, a heresia da conspurcação das belas letras, o espírito errante que desafia a coerência entre a ordem das palavras e a das coisas. O compartilhamento da letra por todos é uma contingência igualitária que propicia um novo tipo de desigualdade decorrente da deslegitimação, que se opõe à desigualdade existente no sistema de legitimação.
Nessa condição, a literatura tende a aproximar-se de sua absolutização, tornando-se um evento tanto mais singular, único, quanto mais se afastar de seu locutor, enunciador ou produtor, com “la disparition élecutoire du poète”, nas palavras de Mallarmé. Para Blanchot, a ausência do sujeito é uma das características primeiras da obra de arte:
L’œuvre d’art ne renvoie pas immédiatement à quelq’un que l’aurait faite. Quand nous ignorons tout des circonstances qui l’ont preparée, de l’histoire de sa création et jusq’au nom de celui qui l’a rendu possible, c’est allors quélle se raproche le plus d’elle-même. C’est là sa direction véritable. (Blanchot, 1999, p. 293)

Essa concepção se opõe a uma visão pragmática da literatura, que, segundo Rancière, desconsidera o que ele estabelece como o cerne da questão, ou seja, a ruptura da escrita com as belas-letras, inaugurando a literatura nesse sentido específico. Conforme Rancière, a transição de belas-letras para literatura ocorre entre os séculos XVIII e XIX; entretanto, a fábula do “louco da letra”, o Dom Quixote, fundador da literatura, situa-se no início do século XVII, inaugurando a errância da letra sem pai. O cavaleiro da triste figura subverte a relação convencional entre ficção e não ficção, que não lhe diz respeito, substituindo-a pela dicotomia falso-verdadeiro, que aparecem indistintamente na ficção e na não-ficção, as quais perdem a importância. Ficção e não-ficção são pactos da representação, que organizam as relações entre os modos de discursos e os modos de recepção, estabelecendo a arquitetura mimética que sustentava o modelo das belas-letras. Dom Quixote quebra as normas de representação, fazendo prevalecer a lei interior sobre a exterior, que se esfacelava. A boa relação entre a ordem do discurso literário e a ordem das condições, sustentada pela brincadeira séria do não-sério, é desfeita pela crença na verdade dos livros, que deixam de ser diversão para se tornar a sua infelicidade, e sua loucura da crença na ficção contamina Sancho Pança, representante do “bom senso” popular, disseminando a loucura da letra para além dos limites idealizados pelo cavaleiro nostálgico dos feitos heróicos.
É consistente afirmar que Dom Quixote inaugura uma nova relação entre o produtor, a obra e a recepção, mas é importante sublinhar que o texto de Cervantes não foi concebido como tal, tendo adquirido essa condição pelos desdobramentos das concepções de romance desde então. A literatura “não é aquilo que sucede as belas-letras, porém aquilo que as suprime” . Pode-se pensar em termos de supressão ideal, um basta progressivo que tenta passar um rolo compressor no edifício mimético, mas que tem nele ainda, nos séculos vindouros, um vigoroso adversário, que, não obstante a altura, tem uma queda lenta, embora inexorável, ainda que a filosofia tente evitar a desordem literária, sustentando os mecanismos de atribuição de vozes próprias aos diversos corpos.
No dizer de Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos rompem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada.
O rompimento das regras, a quebra das convenções acarreta novas oposições que marcam o texto literário: a oposição ao suporte mítico e histórico, bem como a dispensa do símbolo como referência, como a idéia de um sentido que se coloca atrás da intriga.
Uma vez ruído o prédio mimético, o que sustentará a edificação literária? Na falta da regra externa, deverá substituí-la a regra interior. Rancière aventa três possibilidades de afirmação da potência da obra de arte, que permanecem como “gracejos de comediantes e prefaciadores”: potência da individualidade de seu produtor, potência de sua totalidade fechada sobre si mesma e trazendo ela própria sua regra de unidade, ou a potência pura da linguagem, desviada de seus usos representativos e comunicativos e voltada para seu ser próprio.
É necessário considerar um novo fundamento agregado a essas possibilidades. Ao proclamar sua autonomia em relação ao edifício mimético, a literatura passa a se sustentar em uma heteronomia de outro gênero, “sua identificação com uma potência própria do pensamento, com um modo específico de presença do pensamento na matéria que é também heteronomia do pensamento”. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)
A physis que a tekhnè imitava e completava teve de ser substituída por uma metafísica de natureza diferente, que fosse para o estilo o que a physys era como modelo mimético, levando à absolutização da literatura. Rancière lembra, com Flaubert, que “o estilo é uma maneira absoluta de ver as coisas” (RANCIÈRE, 1996, p. 3), e absoluto pressupõe desvinculação. Desvinculação de quê?
Das formas de apresentação dos fenômenos e de ligação dos fenômenos que definem o mundo da representação. Para que a literatura afirme sua potência própria, não basta que ela abandone as formas e as hierarquias da mimesis. É preciso que abandone a metafísica da representação. É preciso que abandone a “natureza” que a funda: seus modos de apresentação dos indivíduos e as ligações entre os indivíduos; seus modos de causalidade e inferência; em suma, todo o seu regime de significação. (RANCIÈRE, 1996, p. 3)

Considerando o sujeito escritor como o pai do discurso, e o personagem como seu refém, ou seja, aquele que não deveria ler nem participar da vida do escrito, mas que, para além de sua função ficcional, ainda seduz o filho do povo, Sancho, não estaria o próprio escritor se identificando com o personagem, transformando-se também no louco que cria o “próprio” da literatura, a transgressão, eliminando a paternidade reguladora das convenções? Não seria esta a forma de investigar “a subjetivação que liga a posição do escritor e do narrador à de seu refém” em As iniciais, de Bernardo Carvalho? Não é essa a maneira como “a” literatura se determina, “no jogo das transformações e das reviravoltas da fábula” (RANCIÈRE, 1995, p. 77)? O “próprio” da literatura seria, então, a reescrita do que já foi escrito. “É o puro desdobrar-se ao infinito das combinações que ela autoriza” (RANCIÈRE, 1995, p. 80). É o efeito suspensivo da literatura: a natureza literária de um texto está relacionada a uma historicidade que lhe confere a dramaturgia “das aventuras e dos imperativos da escrita” (RANCIÈRE, 1995, p. 97). A escrita tem sempre um tipo de déficit que está suspenso ao mito de outro escrito.
Numa posição clássica, o escritor onipotente cria seres submissos, o pai gera filhos, fazendo-se mestre de vida ou mestre de jogo; essa posição é exemplificada nas relações internas do romance As iniciais nas tentativas do personagem M., como escritor, de se tornar o senhor dos fatos e dos personagens. Nesse caso, o personagem é instrumento de reflexão sobre a busca da verdade, e a literatura se faz filosofia, postura com a qual o texto de Carvalho rompe.
Para Rancière, há literatura quando as relações entre as vozes e os corpos suprimem as regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, quebram as convenções que distinguem as formas da palavra comum e da palavra artisticamente trabalhada. A literatura não é então apenas a purificação da linguagem em seu interior, muito menos o engajamento impuro.
Em As iniciais, o narrador não se isola na solidão própria da linguagem, nem pretende atribuir aos corpos que ali se movimentam uma linguagem de questionamento ou de alegoria social. Pode-se atribuir a ele as palavras de Rancière a respeito de Flaubert:
Ele faz a aposta insensata de fazer falar a vida muda na língua de uma arte inteiramente transparente. Produz, em suma, aquele estado “neutro” da linguagem de que fala Blanchot, enfiando-se, não no interior da língua, porém na relação enigmática que a pureza do ideal literário mantém com as vidas mudas, ou seja, de fato, com a entrada democrática da escrita na vida de qualquer um e de qualquer vida na vida da escrita. (RANCIÈRE, 1995, p. 101)

A neutralidade reivindicada por Blanchot advém da relação de busca que o escritor mantém com o livro. O livro nunca está pronto; não é ele propriamente que exerce atração sobre aquele que escreve, mas a busca dele. O livro só importa na medida em que ele representa a busca do livro, independentemente dos gêneros e espécies. E é ela que conduz o escritor a neutralizar a escrita literária, em reduzi-la ao ponto neutro e impessoal da linguagem, o próprio da literatura:
(...) plutôt comme ce qui ne se découvre, ne se verifie ni ne se justifie jamais directement dont on ne s’approche qu’en s’en détournant, qu’on ne saisit que là où l’on va au-delà, par une recherche qui ne doit nullement se préoccuper de la littérature, de ce quélle est “essentiellement”, mais qui se préoccupe au contraire de la réduire, de la neutraliser ou, plus exactement, de descendre, par un mouvement qui finalement lui échappe et la néglige, jusqu’`a un point où ne semble parler que la neutralité impersonnelle. (BLANCHOT, 1959, p. 272)

Em As iniciais, as leis que regem o texto são as leis do que Rancière chama “esse mundo de baixo, esse mundo molecular, in-determinado, in-individualizado, anterior à representação, anterior ao princípio de razão” (RANCIÈRE, 1996, p. 4). Aqui, a narração clássica é esvaziada, transformada em blocos de textos que se superpõem e se entremeiam, é a literatura escondendo seu trabalho ao mesmo tempo em que o realiza.
Coloca-se em primeiro lugar a questão da estrutura do texto em si e sua relação com o que o autor chamou romance. Que lugar ocupa o romance na literatura, afinal? Conforme Walter Benjamin, o surgimento do romance decreta a morte da narrativa, porque o romance é livro, é página impressa, seu leitor é solitário, “ele nem procede da tradição oral nem a alimenta” (BENJAMIN, 1994, p. 201). O romance é, portanto, um gênero disperso, transgressor, que não contém verdades, que não edifica, nem forma, não havendo exceção nem para o Bindungsroman, o romance de formação:
A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1994, p. 201)

Rancière considera o romance, por motivos parecidos com os de Benjamin, a escrita fundadora da democracia, a partir do momento em que a letra desincorporada inicia sua trajetória errante, tornando-se a escrita de todos e de qualquer um. À errância da letra em Rancière corresponde a dispersão de Blanchot, mas com uma diferença: o romance, como gênero, em si, é manso, uma espécie de cordeiro em pele de lobo:
Le roman est souvent dit monstrueux, mais, à quelques exceptions prés, c’est un monstre bien éduqué et trés domestiqué. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

A expressão “monstro bem educado e domesticado” refere-se aos romances em geral, que ainda se escondem na “discreta segurança de suas convenções” e na “riqueza de seu conteúdo humanista”.
Não é a existência do gênero, com todas as suas liberdades e audácias aparentes, mas que mantém convenções internas que lhe garantem a sobrevida, que irá aproximá-lo do próprio da literatura, e sim a atitude de busca atormentada daqueles que produzem a escrita e que os conduz ao espaço “fechado, separado e sagrado, que é o espaço literário”:
Ce n’est pas la diversité, la fantasie et l’anarchie des essais qui font de la littérature un monde dispersé. Il faut s’exprimer autrement et dire: l’éxperience de la littérature est l’épreuve même de la dispersion, elle est l’approche de ce qui échappe à l’unité, expérience de ce qui est sans entente, sans accord, sans droit — l’erreur et le dehors, l’insaisissable et l’irrégulier. (BLANCHOT, 1999, p. 278)

Vamos examinar os componentes de errância e dispersão em As iniciais. De início, percebe-se que não há aqui uma prevalência de qualquer um dos elementos tradicionais da narrativa que o enquadre em alguma tipologia clássica do romance: ação, personagem (indivíduo ou grupo social), espaço, tempo. Nem nas categorias que compõem a evolução do gênero: romance fechado ou aberto, Bindungsroman, romance polifônico, nouveau roman.
Observam-se aqui características citadas por Antoine Compagnon (COMPAGNON, 1999, p. 214) como sendo próprias do que seria o romance pós-moderno: o sentido é indeterminado, a narrativa se questiona a si mesma, autor/narrador/personagens são indefinidos e não mostram o rosto, os bastidores da narração aparecem em forma de um “laboratório” em que um escritor (M.) se exercita, o leitor participa de um jogo que não parece conduzir a nenhum lugar, bem como as demais vozes e corpos presentes. E é a presença dessas características que culminam no que Walter Benjamin considera a crise do romance, num sentido pejorativo, no qual o texto é interioridade pura, não dialoga com o mundo exterior, tornando-se uma atitude épica a contrariu sensu. Mas é nesse “defeito” puramente escritural que a posição de Benjamin se aproxima à de Rancière e Blanchot, com a diferença que a odiosa transgressão, para o primeiro, é a própria condição de existência de literatura para Rancière, e constitui para Blanchot a perda de unidade necessária para que a literatura exista em seu “ponto zero”.
É oportuno lembrar que Michel Foucault, comentando o pensamento de Maurice Blanchot em The thought from outside, afirma que a interioridade pura, deepest interiority, é uma categoria do pensamento, da filosofia, e não do discurso literário. Este leva ao exterior, com a supressão do sujeito falante:
In fact, the event that gave rise to what we call “literature” in the strict sense is only superficially an interiorization; it is far more a question of a passage to the “outside”: language escapes the mode of being of discourse — in other words the dinasty of representation — and literary speech develops from itself, forming a network in which each point is distinct, distant from even its closest neighbors, and has a position in relation to every other point in a space that simultaneously holds and separates them all. (FOUCAULT, 1987, p. 12)

O que Benjamin chama, portanto, interioridade pura, no sentido de perda de ligação com o mundo exterior, será tratado aqui como exterioridade, no sentido dado por Blanchot, do discurso que se desenvolve a partir de si mesmo, rumo ao espaço neutro, que tira da literatura qualquer caráter de mitologia ou retórica.
O texto não se organiza como uma experiência vivida num sistema global de significações, mas caminha para a fragmentação e a dispersão. O próprio título do romance, e a utilização de iniciais para designar pessoas e lugares enfatizam a indeterminação das referências dos enunciados, assim como a identidade do enunciador não se determina jamais, cada texto tem sua existência suspensa aos demais, formando um mosaico textual e humano absolutamente irregular, um patchwork, uma rede de textos que compõem a escrita.
O que vamos chamar texto primeiro mostra um narrador em primeira pessoa, um jornalista de folga por falta de acontecimentos. Eis aí uma referência inicial ao “mundo exterior”, feita de maneira absolutamente imprecisa. Não existe nenhuma verdade que mereça a isenção documental do jornalista. O último acontecimento havia sido a decisão do presidente (de onde?), declarada em entrevista coletiva, de achar que seu país ia entrar em guerra. A voz narrativa considera essa notícia “a última coisa importante de que eu tivera notícia”. É evidente, entretanto, que essa notícia de uma possível participação em uma guerra no outro lado do mundo não tinha importância nenhuma, tudo é um grande vazio.
Esse texto principal pretende ser autobiográfico, mas, segundo a voz narrativa, é um texto desordenado, que seria taxado de obsceno por C., que o uso de iniciais é imitação (cômica? servil? contra-imitação?) de M. (um modelo?), “que isto não passa de um pastiche, de uma paródia das páginas e mais páginas do diário que ele escrevia incessantemente na sacristia”. A voz narrativa renuncia a sua vida e a seu passado para eternizar a conversação, e isso significa separar-se de C., seu antigo amante, e retomar a escrita de M., o que seria considerado por C. uma traição, se ele conhecesse o texto. Traição tanto a C. quanto a M.: a este, pela revelação de aspectos segredados em confiança; àquele, porque a escrita o substituiu no mundo do narrador.
A partir do momento em que o narrador e seus demais personagens pisam no mosteiro em que M. mora, e em cuja sacristia ele escreve, a sua existência fica inteiramente condicionada ao seu diário. É fundamental transcrever aqui o trecho em que se problematizam as relações entre vida, morte e escrita, e as relações entre o texto primeiro e o diário de M.:
Mas há uma coincidência além dessa simbiose com C. que explica em parte, e por um outro ângulo, esse sentimento e essa confusão: é que M. e G. morreram ao mesmo tempo que minha vida acabou também. Pelo menos a vida como eu a tinha imaginado. Sem nunca terem sido próximos, parecem ter me deixado sozinho ao morrerem. Outra coisa é que somente após a morte de M. publiquei o meu primeiro livro, só depois da morte ter interrompido meu diário interminável é que passei a escrever de forma sistemática; e às vezes, quando estou menos seguro de mim mesmo, é como se algum tipo de elo sobrenatural nos unisse, um pacto sinistro, como se os meus livros fossem a herança que ele tivesse me deixado, ao preço de perder a minha própria vida também. A publicação do primeiro, por exemplo, coincidiu com meu reencontro com H. em P., bem depois da morte de G., quando ela me revelou tudo sobre C.: que minha vida já tinha acabado e eu era o último a saber. Foi ela quem, um belo dia, quando eu já não morava mais em P. e estava de passagem, tomou a iniciativa de marcar um encontro comigo, na casa dela, alegando que sentira que eu estava com sede de “informações”, para me dizer que C. não só vivia com outro havia anos (...), mas estava apaixonado, cego, a ponto de escrever um livro com as histórias que o outro lhe narrava oralmente e publicá-lo como se tivesse sido escrito de fato pelo namorado, alcançando um certo sucesso de crítica e público. (CARVALHO, 1999, pp. 17;18)

Os limites dos discursos — o texto primeiro e o diário — que se entrelaçam e se superpõem, não são conhecidos, são de impossível mapeamento, mas podem ser perseguidos no sentido de se investigarem suas existências opostas e complementares. Há, evidentemente, outras escritas que serão examinadas adiante.
C. é um ex-amante do dono da voz narrativa, com o qual estava fundido e confundido, a mesma voz, a simbiose. A morte de M. e G. (marido de H.) determinam o término da vida da voz narrativa, sua solidão. O diário interminável de M. não terminou com sua morte porque foi retomado pelo jornalista, que sacrifica sua vida pela herança da escritura. H., a viúva de G., acabou sendo a porta-voz da morte do jornalista, de sua ruptura com seu duplo, C., que desenvolveu sua própria escrita dissociada da dele. A voz narrativa vê este texto como vingança, como revolta contra a herança de M., de ser obrigado a dar-lhe continuidade, uma maneira de ironizar sua sina, revelando-a, mostrando que tem consciência dela. Existe aqui uma relação entre escrita e insanidade, entre escrita e morte, entre escrita e desastre, que conduzem à parole neutre de que fala Blanchot. É o escritor que se sacrifica por sua obra, que se torna outro, que se torna ninguém para ir até o fim.
Onde está o fim? Onde está essa morte que é a esperança da linguagem? Mas a linguagem é a vida que carrega a morte e nela se mantém. (BLANCHOT, 1997, p.323)

A linguagem do narrador de As iniciais só é possível com a morte de M., e com a “morte” do próprio narrador, ou a morte da vida que ele imaginava ser possível ou cara. Ele está condenado ao que Blanchot se refere como a “maldição dos renascimentos”: o dono da voz narrativa de As iniciais vive mal e morre mal, e está condenado a reviver, tantas quantas forem as vezes necessárias para transformá-lo num bem-aventurado, um homem realmente morto. Parece-nos, entretanto, que a busca dele não vai ter um final, e o ciclo da maldição vai-se repetir indefinidamente.
A própria paixão por C., que tem aqui um termo mortal, nasceu da condição dele, C., de personagem (no mundo criado por M.), narrador e autor (confundidos num livro escrito pelo próprio C.). Sendo assim, M. deu C. de presente ao jornalista, e depois lho tirou ao morrer. C. conheceu o da voz narrativa logo após a morte de um amigo filósofo, assim como conheceu o novo namorado após a morte de M., e, conseqüentemente, do jornalista também. A herança mortal, insana, é também uma regra diabólica concebida pelos poderes divinos de M. Diante disso, este pastiche representa uma “reação, uma espécie de provocação” (p. 19), não mais uma continuidade apenas. O texto que nega o texto.
Para investigarmos a extensão dessa reação, examinemos primeiramente as características da escrita de M. Vamos partir do pressuposto de que o diário de M. estabelece uma relação ordenada entre a ordem do discurso e a das condições, construindo um texto representante das belas-letras, na concepção de Rancière, fundado na estética da representação, um texto escrito na sacristia, lugar onde se guardam os paramentos e demais objetos do culto. Vamos chamá-lo de contra-texto, o elemento de contraste com o texto primeiro.
Vejamos a postura do produtor do texto, M. A voz narrativa da escrita primeira atribui a ele poderes divinos; ele exerce sobre seus amigos e sobre o mundo à sua volta um fascínio irresistível, recriando e redefinindo o mundo, dando-lhe “uma importância quase mitológica” (p. 26). O escritor é, então, senhor do mito e senhor da mística, profeta e pai de seu mundo de letras. Ele organiza as coisas e pessoas, em sua “mistificação do mundo”, que em suas mãos ganhavam uma “aura mítica” (p. 34).
Episódio significativo dessa postura onipotente do escritor é o efeito que nele produziu a frase do administrador de grandes fortunas:
A religião no melhor e no pior dos casos é apenas um louvor de si mesmo, já que não passa de uma adoração do criador pela criatura. (p. 33)

M. ficou ressentidíssimo com o discurso do administrador, porque viu nele uma alegoria óbvia: a religião é a literatura, o Criador é o escritor, e o escritor é ele, M. O administrador é visto então pelo escritor como um personagem rebelde, que se libertou das rédeas estabelecidas. Ele deve ser, então, punido com o silêncio: o escritor não lhe dirige mais a palavra durante o jantar, e corta o personagem de seu diário:
Como se não existisse, como se o administrador não tivesse nem nascido, seu nome não aparece nem uma única vez em todas as páginas do diário em que M. descreve aquele jantar. (p. 35)

Além de introduzir no espetáculo o perigo da rebelião dos personagens, evidenciando sua independência de opinião e quebrando a hierarquia dos representados, a observação do administrador “reduzia a obra de M., desmontando-a, ao projeto convencional de criação de uma religião” (p. 33), em que ele “tentava usurpar de um Criador exterior e superior o poder da criação” (p. 34).
Poder de criação é poder de conquista, é apoderar-se da realidade e transformá-la, negando-a, e atribuindo-lhe um sentido valendo-se das convenções de representação. Vimos com Blanchot que a presença excessiva do pai afasta a obra de sua absolutização. E essa ânsia de ocupar o espaço deixado vazio pela ausência dos deuses é enganadora:
Ambition étrangement trompeuse. Illusion qui lui fait croire qu’il sera devenu divin, s’il se charge de la fonction la moins divine du Dieu, celle qui n’est pas sacrée, qui fait de Dieu le travailleur des six jours, le démiurge, le “bon à tout faire”. Illusion qui, de plus, voile le vide sur lequel l’art doit se refermer, qu’il doit d’une certaine manière préserver, comme si cette absence était sa vérité profonde, la forme sous laquelle il lui appatient de se rendre présent lui-même dans son essence propre. (BLANCHOT, 1999, pp. 290-291)

Rancière relaciona esse escritor onipotente ao mestre de representação ou mestre de jogo, que dispõe as marionetes no palco, ou as peças no tablado, que faz de seu personagem seu refém, o fraco de espírito:
M., por incrível que pareça, também se manteve calado de início, apenas observando, como se já tivesse distribuído os papéis e agora soltasse as rédeas dos personagens para ver até onde eles eram capazes de ir, mas pronto para retomá-las ao menor sinal de que as coisas estivessem saindo do seu controle.(p. 32)

O espetáculo da escrita, promovido por M., é reforçado pelas relações do escritor com o cenário que ele mesmo monta, encenando, além de outros, o espetáculo das velas e o dos fogos de artifício. No último caso, verificamos mais uma rebelião de personagem, o ex-campeão de tênis, irmão de A., que grita antes da hora, assumindo clandestinamente o comando do evento, ameaçando terrivelmente a hegemonia do escritor e, naturalmente estragando o efeito pré-estabelecido, desorganizando o que estava organizado, “fechando a cena com a sua assinatura aparentemente desastrada” (p. 54).
Os rojões foram disparados, mas de maneira desordenada, e não houve registro do espetáculo, porque a câmara de vídeo e a máquina fotográfica não estavam prontas. Estava arruinada a representação, o grito fora da hora convencionada equivale ao ataque de D. Quixote às marionetes de mestre Pedro, que faz ruir o edifício mimético, na última cena da noite.
Sai de cena o espetáculo de M., entra outro texto convencional, o “roman à clef” da herdeira dos laticínios, que pretendia expor a banda podre da alta sociedade e levar a seus leitores uma lição moral, “num nível mais elevado, espiritual”. O efeito produzido pela referência ao romance, que imitava o estilo de M., foi desastroso, “a herdeira era uma idiota e seu romance a sua mais perfeita expressão” (p. 61). M. jamais poderia permitir que qualquer texto fosse exaltado em sua presença, além do seu próprio. O texto da herdeira dos laticínios não tem longa duração na cena do romance, e é retirado por inconsistência própria e pela ação de M., o todo-poderoso que acaba sem poder.
Além desses textos, o texto primeiro reúne uma longa seqüência de outras escritas: o livro de C., do qual ele nunca escreveu uma linha, a revista editada por T., a receita de bolo, os apontamentos para a aula de matemática, a narrativa minúscula do próprio narrador sobre a traição involuntária, as sinopses dos futuros romances do autor, a carta de amor que o narrador escreve a C. sem conhecê-lo, o conto em que A. é um monstro, a entrevista com o mágico e com o pintor suíço, a história do milionário escocês que salvou o dançarino japonês de butô, o romance de R.M., inventor da “fabulação minguante” etc. O narrador cria sua heresia a partir do texto de M., e depois ele tem a infelicidade de ser invadido por esse e outros textos. A literatura se afirma através dessa fábula privilegiada que constitui a demolição do edifício da representação.
O texto primeiro se contrapõe à escrita de M., embora seja uma herança dele e de todos os demais textos que permeiam a escrita. Nas relações entre eles, e na recepção do narrador, esses textos compõem um mosaico desprovido das características miméticas dos textos originais. E o que confere ao texto como um todo esse afastamento da dinastia da representação? Vamos lembrar então, com Blanchot, a questão da passagem para o “exterior”, o desaparecimento do sujeito, o desdobramento do discurso a partir de si mesmo, a linguagem “getting as far away from itself as possible” (FOUCAULT, 1987, p. 12).
O narrador afirma que este texto é cópia, pastiche, paródia do texto de M., mas ao mesmo tempo ele trai a confiança do escritor, ele apresenta personagens que foram riscados do romance de M., registra diálogos que não aparecem no texto antecessor, o próprio narrador e C. sequer tinham sido mencionados no diário, nos apontamentos daquele dia. O próprio narrador admite que ele nunca iria fazer “nada nem ao menos parecido com o que escrevia M.”. A própria inicial do narrador só aparece duas vezes em milhares de páginas no diário de M. Há, sim, um desdobramento de textos que configuram a metamorfose dos textos em escrita órfã. A estranha relação do narrador com C. é exemplo desse desdobramento. Ele conheceu C. graças ao mundo que M. criou nos romances, em que o amigo C. vira personagem. Essa fantasia construída na leitura de M. ensejou a escrita da “carta de amor, desvairada” (p. 19), ao ler um livro de sua autoria, e sua paixão por C. ao ler um livro que ele havia escrito, confundindo autor com narrador. A literatura aproximou-o de C., e posteriormente o tirou dele.
Coloca-se aqui a questão da errância do narrador em primeira pessoa, que se apresenta como aquele que faz asserções, que relata algo que se supõe tenha sido vivenciado por ele. Nas relações ordenadas entre os modos de discurso e os modos de recepção o enunciador elege um pai, o eu da narração, que se anuncia como diferente do autor, apresenta as personagens do relato como fictícias, apresenta seu mundo e conduz a ação. Essa a posição ideal do narrador, que aqui se desfaz. Existe um deslocamento entre o narrador tradicional do edifício mimético e o narrador do texto primeiro de As iniciais. Este não se coloca como todo-poderoso, como organizador do espetáculo, como condutor dos personagens e da ação, e chega a afirmar que “por mais que tentasse imitá-lo nunca teria autoridade suficiente para converter aquelas pessoas em meus personagens" (p. 27). Ao contrário, ele é sempre claudicante, indeciso, sua fala é pontilhada por expressões como “parece que só eu não entendi”, “só eu continuei a acreditar”, “não é implausível”, “óbvia, menos para mim” etc. Ele é o crédulo, o que não vê o óbvio, o que não tem malícia, o que duvida de si o tempo todo, o ingênuo. O narrador se desautoriza a si mesmo, e não realiza sua função.
Ele lida com o imponderável e com a morte, sofrendo uma desincorporação ou desnaturação que o transforma em escritor pela morte, pela perda, pelo terrível fascínio do livro que é sua pena de morte. Enfrentamento da morte no nascimento da escrita, como queria Blanchot: o escritor só vale por seu poder de ausência da obra. A morte de M. acaba sendo o fim da vida do narrador para que ele dê continuidade à literatura, perdendo quem mais amava.
Além dos textos que se intrometem e fogem de sua vida, o herói se depara com a mensagem misteriosa das iniciais VMDS na caixinha de madeira entregue a ele pelo Zulu, e que acaba conduzindo-o a essa busca insolúvel. Ele é inseguro até na segurança:
Não ver que havia ali uma mensagem era querer tapar o sol com a peneira, eu pensei de início, e essa suposição, embora um tanto incerta, serviu apenas de base para outras bem mais. (p. 62)

Não querer tapar o sol com a peneira sugere certeza, que imediatamente se transforma em suposição e em seguida em incerteza. É a errância do significado, do referente, não apenas do pai da letra; é a orfandade do significado. É o texto que chega ao herói, misterioso, a letra errante, sem pai, que circula sem destino. Tanto o remetente quanto o destinatário podiam ser várias pessoas, mas afinal o narrador assume ser o destinatário, assume uma certa mensagem e decide que deve ir à casa de A. É a mensagem entalhada a canivete, inscrita na madeira, que o conduz a um novo espetáculo que nada esclarece, a cena da loucura da herdeira dos laticínios, entre gritos e murmúrios. A cena dos gritos da herdeira admitia várias possibilidades sobre o remetente da mensagem, sobre o destinatário, sobre a mensagem em si, sobre a verdade do que acontecia, ou de sua teatralidade, da qual o narrador seria o único espectador.
Muitos anos depois, o narrador se lembra daquela noite como “uma das noites mais perturbadoras de minha vida” (p. 82), um jantar à luz das estrelas, como outro qualquer, porém inesquecível, uma situação confusa em que ele não consegue determinar nem o remetente nem o destinatário da mensagem. Um discurso sem conclusão, sem solução, a entrada democrática da escrita na vida do narrador, com seus mistérios e indagações, sua busca de sentido na ausência deste, a perturbação da espera de resposta ao mistério das iniciais. É a fábula privilegiada daquele que teve a infelicidade de achar um escrito misterioso, que não conduz a nenhuma resolução, inscrevendo-o num círculo sem fim de busca da escrita.
A segunda parte do romance é o que poderíamos chamar de segundo ciclo de peregrinação do narrador em sua busca. O cenário é uma mansão em cujos jardins desenrola-se uma festa. A primeira grande surpresa e perturbação do narrador é a presença de D. (assim como, na primeira parte, A. o havia impressionado). A presença de D., e a crise econômica, supõe-se, foram as causas do desmaio do narrador.
E as histórias se sucedem. A moça sobrinha da anfitriã conta ao narrador sua versão da história de D., a qual lhe havia sido contada por L., aos sussurros, roçando a orelha, uma história muito diferente do que dizem por aí. L., o sedutor que gosta de meninas, diz à sobrinha da anfitriã que D. é o assassino de um milionário que usa nome falso, e que tem o costume de falsificar documentos históricos de fatos que nunca aconteceram. Pela história oficial, D. é o maior pintor de paisagens do final do século XX, que fazia sua originalidade pelo anacronismo. Sua busca da mais bela paisagem do mundo o havia levado à loucura, até que, de tanto reproduzir a natureza, acabou pintando o real representado.
Num determinado momento de seu depoimento, a sobrinha da anfitriã acusa o narrador de desmemoriado, aquele que não tem condição de reconstituir o passado; ele não pode, portanto, ser narrador, pois não tem nem o poder de transformação e nem de construção.
Pela história de L., passada ao narrador pela sobrinha da anfitriã, D. era amigo de um advogado que administrava a fortuna de um milionário que sumiu sem deixar vestígio. Quando o milionário voltou para cobrar sua fortuna, o advogado não teve como devolvê-la intacta, daí o possível pacto com D. para eliminar o milionário.
Outra versão sobre D. era a de que ele tinha vindo ali por causa de uma mulher condenada por uma doença incurável e rara. Por medo da morte, D. a abandona, e milagrosamente ela se restabelece e arranja outro homem.
Entremeiam-se outras histórias e textos, como o poeminha de L., pura filosofia de botequim, vaticinando a morte de todos os viventes e a história contada por um rapaz a uma moça que fazia uh-uh, envolvendo D. também. A moça, a quem o contador da história pretendia seduzir, afastou-se dele ao ouvir o final, que era a única parte verdadeira da história. Há ainda a história da antropóloga, presa e torturada por engano, sobre os índios da tribo I.
Ao final da tarde, todos se afastam, e abandonam os textos ao vento, o papel do poema de L., o esquema de amor do rapaz à moça que fazia uh-uh, o papel amassado em que a antropóloga fizera uma confusão de iniciais para explicar o caso dos índios I. Tudo é sugestão, invenção, detalhes não são lembrados, o narrador nunca obtinha respostas quando perguntava coisas específicas como datas, nomes ou lugares.
O segundo ciclo da busca tem semelhanças com o primeiro: D. poderia ser A., o administrador de grandes fortunas poderia ser o advogado, a moça com a doença incurável poderia ser a herdeira de laticínios, o ator brasileiro reaparece com sua voz “estridente e desgraçada”, falando sobre o fim do capitalismo em meio a tiradas literárias e científicas.
Após o discurso sobre o fim do capitalismo, o câncer e o universo, o ator resolve encenar com a anfitriã um texto de sua autoria, um diálogo entre Santa F. e Deus sobre o suicídio.
O encontro do narrador com o ator brasileiro se dá quando ele abandona o jardim onde o vento varria textos e demais objetos. Andando pelo corredor largo e branco, ele passa pelo ator de voz estridente e segue sua busca, atraído pelos textos, até que divisa alguém, que, pela voz, ele julgava ser D., falando para um grupo de pessoas. Parecia ser a metamorfose de A. em D., o único que poderia ter a chave do enigma das iniciais. D. contava a história de um aborígene australiano que tomava remédios para sobreviver.
Na primeira parte, o contra-texto que confirma o texto; na segunda, os textos (de sedução e de indeterminação) que não funcionam e acabam sendo varridos pelo vento. O final é o eterno insolúvel, é feita a pergunta que devia ser feita, a única pergunta pertinente no meio de tanta tolice. E a história recomeça, “Em agosto de 19..”, a mesma história que vaga errante, a letra sem pai, os loucos da letra.
A pergunta, afinal, foi feita. Mas e a resposta? Terá o narrador salvado sua Eurídice resistindo a olhar seu rosto, ou teria posto tudo a perder captando a visão maravilhosa de sua imagem?
Eis aí as heresias da letra sem corpo, sua manifestação em corpos deslocados, metamorfoseados, tornados neutros e imprecisos, discursos sem afirmação, sem solução e sem conclusão, independentes de qualquer solo nativo, espíritos errantes no próprio espaço literário, que se desvincula de mitos, símbolos e referências, que se absolutiza.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLIEZ, Éric. Da impossibilidade da fenomenologia. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 100. O trecho citado por Alliez é uma intervenção de J. Rancière num encontro organizado pelo Colégio Internacional de Filosofia por ocasião da edição de L’Être et l’événement, publicada em Le Cahier du Collège International de Philosophie, n° 8, Éditions Osiris, 1989, p.211.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 323.
BLANCHOT, Maurice. Le livre à venir. Paris: Gallimard, 1959, p. 272.
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Gallimard, 1999, p. 293.
CARVALHO, Bernardo. As iniciais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 114..
FOUCAULT, Michel, and BLANCHOT, Maurice. Maurice Blanchot: the thought from outside / Michel Foucault as I imagine him. N. York: Zone Books, 1987, p. 12.
PLATO. Phaedrus. Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 1991. Translated by Benjamin Jowett, p. 125.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
RANCIÈRE, Jacques. “Deleuze e a literatura”, p. 3. Texto apresentado nos “Encontros Internacionais Gilles Deleuze, no Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, na UERJ, nos dias 10, 11 e 12 de junho de 1996. Tradução de Ana Lúcia Oliveira.

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