Friday, November 10, 2006

MACUNAÍMA
Mário de Andrade



“Enfim, sou obrigado a confessar de uma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava copiar o Brasil, por meio dele mesmo. Mas nem a idéia de satirizar é minha pois já vem desde Gregório de matos, puxa vida! Só me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provável acaso descoberto em provável primeiro lugar o Brasil, o Brasil pertence a Portugal. Meu nome está na capa e ninguém o poderá tirar”.
Mário de Andrade


O GRILEIRO DAS LETRAS

Cid Ottoni Bylaardt, professor da UFC


COPIEI, SIM, MEU QUERIDO DEFENSOR

Em 20 de setembro de 1931, Mário de Andrade publicou no jornal Diário Nacional uma carta pública dirigida ao antropólogo Raimundo de Morais. Este, agindo com malícia dissimulada em ingenuidade defensora, comenta, num verbete de seu Dicionário de Cousas da Amazônia, que pessoas “maldizentes” insistiam em que o livro Macunaíma era plagiado da obra do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, Von Roraima zum Orinoco. O dicionarista acata o boato, mas diz que duvida de sua veracidade, pois acredita que o romancista paulista “possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas”.
Raimundo de Morais esperava, naturalmente, que Mário se defendesse, mas o pai adotivo de Macunaíma surpreendeu os defensores da originalidade intelectual declarando solenemente sua condição de PLAGIADOR (1999: 165):

Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa.

Neste mea culpa, Mário investe descaradamente sobre a noção de propriedade textual, de autoria e de originalidade até então considerados, pelos guardiães do texto sagrado, do texto peça de museu, elementos fundamentais do processo de criação. Em sua exposição, o romancista de Macunaíma revela a ignorância dos eruditos “maledizentes”, entre os quais se inclui o próprio Raimundo de Morais, que não perceberam que o plágio era de toda uma cultura, e não apenas de um livro, comparando-se aos “rapsodos de todos os tempos”, que “transportam integral e primariamente tudo o que escutam ou lêem para seus poemas” (1999: 164).
Mário, em Macunaíma, copia o Brasil, mostrando sua cara e satirizando-o, mas não abre mão de sua autoria: “Meu nome está na capa de Macunaíma e ninguém o poderá tirar”. Do livro do alemão, Macunaíma se libertou e ampliou suas fronteiras inicialmente nortistas, agregando a si e a sua ação “modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosíssima língua portuguesa” (1999: 165).
Fica aí declarada a condição parodística da escrita, a escrita de segunda mão, a apropriação dos enunciados, tantos e tão diversos que compõem um patchwork lingüístico proposital. Qual é, então, a intenção desse grileiro das letras? Que sentido procura ele dar a essa combinação de múltiplos elementos, que para alguns soava como um estranho amontoado de fragmentos, e para outros como uma unidade fortíssima na busca da identidade brasileira?
Embora tenha declarado que escreveu o livro de “pura brincadeira”, Mário de Andrade não nega que ele “vale um bocado como sintoma de cultura nacional”. Contém, portanto, as dúvidas e o fascínio do escritor em relação à cultura brasileira e às nossas etnias, numa oscilação hesitante entre otimismo e pessimismo extremos. A leitura de um Brasil simpático e surpreendente não é obliterada por qualquer traço de ufanismo que impeça uma visão crítica do passado e do presente cultural-literário brasileiro, uma releitura que busca redescobrir este país, que tenta investigar qual é a sua verdadeira cara, a sua real identidade.

AVENTURA PAPAGUEADA

O epílogo da narrativa nos informa de seu narrador, que ouviu toda a história de um papagaio. O papagaio, por sua vez, tinha ouvido tudo do próprio Macunaíma, quando este havia voltado para o Uraricoera e curtia o impaludismo e a solidão.
Quem conta a história é o papagaio, o que repete indefinidamente, o que se apropria dos discursos dos doutores, das frases feitas, dos provérbios, das adivinhas, das canções, dos mitos etc, e, principalmente, do livro Von Roraima zum Orinoco, do alemão Theodor Koch-Grünberg. O papagaio é o rapsodo, o aedo, o vate, que conta a história com “uma fala mansa, muito nova, muito!” “Isso é o Macunaíma e esses sou eu”, diz Mário de Andrade em sua carta a Raimundo Moraes (1999: 164), isto é, Macunaíma é o produto de várias escutas e leituras, e Mário é o papagaio-rapsodo, o que repete de seu jeito. É, portanto, um texto de terceira mão que papagueia de segunda mão outros discursos.

TEMPO E ESPAÇO SEM LIMITES

O tempo da narrativa é mítico, mágico, indefinido, mas pode-se acompanhar em cronologia progressiva a trajetória de Macunaíma, desde o nascimento até a morte.
No espaço, contrapõem-se o mundo mítico amazônico, e o mundo-máquina da metrópole, afinal transformado em preguiça de pedra, portanto manietado em seu sentido mais peculiar. Nenhum espaço do Brasil oferece ao herói seu pouso seguro. O mundo civilizado é uma bricolagem mal feita de empréstimos estrangeiros, e exige excessivos esforços do herói para se manter lá. A tribo é um espaço tão perigoso quanto a cidde, e vive um processo de decadência em direção ao extermínio, que ocorre ao final, vítima de um enorme “tangolomângolo”, palavra portadora de estragos proporcionais a sua extensão de significante.

A CONSCIÊNCIA NO MANDACARU

A rapsódia, em poesia, consiste numa obra épica que representa as peculiaridades de uma nação; na música, é uma composição formada de diversos cantos tradicionais ou populares de um país. Os rapsodos eram, na Grécia antiga, recitadores profissionais de textos alheios, aos quais enxertavam os próprios textos e/ou lhes davam interpretação particular. Macunaíma é a rapsódia de um herói que incorpora os cantos do Brasil e seus contracantos. Os múltiplos textos que compõem a obra são mitos, lendas, superstições, provérbios, anedotas e contos etiológicos falsos e autênticos; todos esses textos têm origem ameríndia, européia e negra.
Macunaíma, “o herói de nossa gente”, nasceu à margem do Uraricoera, na floresta amazônica. Filho da tribo dos Tapanhumas, revela desde pequeno seu caráter controvertido: manhoso, brincalhão, indolente, lascivo, infiel, mentiroso, embora apresente momentos de grandeza e coragem, geralmente não intencional. Ao transformar-se em um “príncipe lindo” quando fazia amor com sua cunhada Sofará, esposa de seu irmão Jiguê, manifesta também uma característica que o acompanhará em toda sua trajetória: sua capacidade de metamorfose, uma maneira de mostrar várias caras sem assumir uma fisionomia definida.
Após muitas andanças, em companhia dos irmãos, Macunaíma conquista Ci, a Mãe do Mato, não sem muita luta e muito sangue. O herói apanha muito dela, mas não desiste, terminando por ficar com a Icamiaba, tornando-se Imperador do Mato e iniciando uma fase de amores ardentes, até que tiveram um filho. A morte do filho fez com que Ci fosse para o céu, virando a estrela Beta do Centauro. Antes, ela deixou com Macunaíma a famosa pedra muiraquitã, artefato feito de pedra verde, em forma de jacaré, à qual se atribuem virtudes de amuleto.
Com a perda do filho e de Ci, o herói junta os irmãos, Jiguê e Maanape, despede-se das Icamiabas e parte. Nas lutas contra Capei, a Boiúna Luna, ele perde a muiraquitã. Um uirapuru revela ao herói que a pedra tinha sido comprada por um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, que morava em São Paulo, “a cidade macota lambida pelo Igarapé Tietê”.
O projeto do herói passa a ser, então, ir a São Paulo reaver a pedra verde. Um dos preparativos para a viagem foi o cuidado de deixar a consciência na ilha de Marapatá, na foz do rio Negro. “Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, para não ser comida pelas saúvas”. Não se pode exigir, portanto, que o herói pratique seus atos conscientemente. Se se pode duvidar de sua consciência até aquele momento, fica claro que a partir daí essa é uma palavra inexistente em seu vocabulário e em sua prática, mesmo porque não se tem notícia de que ele tenha voltado para buscá-la. Após tentativas frustradas de reaver a muiraquitã, Macunaíma envolve-se com Vei, a Sol, quebra sua promessa de ser fiel às filhas de Vei e perde a condição prometida de eterna juventude. Escreve uma carta para as Icamiabas, em que estabelece o confronto entre o barbarismo e a civilização, e pede mais dinheiro a suas súditas. O episódio de Vei e a carta merecem comentários mais detalhados adiante.
Incontáveis aventuras depois, o herói consegue reaver a pedra das amazonas e empreende viagem de volta ao Uraricoera, acompanhado de Maanape e Jiguê, e portando um revólver Smith-Wesson, um relógio Patek Philip e um “casal de galinha Legorne”. O casal é formado por um galo e uma galinha. Em sua luta com a Uiara, ele é mutilado, perde novamente a muiraquitã e é transformado na constelação da Ursa maior.

A SOL, A CARTA, A PEDRA

Os principais eixos de sustentação da trama na rapsódia são a disputa de Vei com Macunaíma, a “Carta pras Icamiabas” e o embate do herói com Venceslau Pietro Pietra pela posse da muiraquitã.
O capítulo VIII, “Vei, a Sol” é considerado pelo próprio Mário de Andrade como uma das alegorias centrais da narrativa. Atirado pela árvore Volomã em uma ilhota, o herói dormia sob uma palmeira em cujo cimo havia um urubu, que despejou sobre ele várias cargas de fezes — de urubu. Desiludido da vida, tenta obter um lugarzinho no céu apelando para a estrela-da-manhã e para a Lua, que, não suportando seu fedor, o despacham, com a expressão que se tornou vulgar, posteriormente: “— Vá tomar banho!”, que normalmente passou a ser dirigida a certos imigrantes europeus que tinham resistência ao banho. Macunaíma guarda, então uma característica européia, já que os índios se lavam com freqüência. Vei, a Sol, tem simpatia por ele, e ordena a suas três filhas que limpem bem o herói. Depois ela promete a ele a mão de uma das filhas, desde que ele se mantenha fiel à esposa.
Aí tem origem a grande transgressão do herói. Traindo sua palavra, ele resolve “brincar” com uma varina, vendedora ambulante de peixe, entre os portugueses. Vendo suas filhas preteridas por uma portuguesa, Vei recusa a Macunaíma a juventude eterna e a imortalidade, tirando-o de sua proteção. A escolha desastrada marca sua entrega ao europeu, atestando que os males do Brasil não são apenas as enfermidades e as formigas. Pode-se novamente fazer um paralelo entre a “entrega” de Macunaíma e a de Iracema, que configuram situações parecidas, porém ideologicamente diferentes. Numa, o tom é de censura; noutra, a doação é positiva; em ambas, o fato é inevitável. Para completar sua vingança, Vei encaminha Macunaíma para a morte pela sedução da Uiara.
O grande motivo da movimentação de Macunaíma é, sem dúvida, a pedra muiraquitã, presente que sua amada Ci lhe fez ao desencarnar. Na luta contra Capei, um monstro fantástico que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos, o herói perde o talismã, que posteriormente é adquirido pelo gigante Piaimã, ou Venceslau Pietro Pietra. Na primeira tentativa de abordar o gigante, Macunaíma é morto com uma flechada, e ressuscita graças aos poderes mágicos de seu irmão Maanape.
Na segunda tentativa, o herói se fantasia de francesa para tentar seduzir o gigante. Piaimã mostra-lhe toda sua coleção de pedras, mais a muiraquitã. Pietro Pietra declara que não vende e nem empresta a pedra das amazonas, mas é capaz de doá-la, dependendo dos agrados. Pressentindo o assédio, Macunaíma tenta fugir, mas é capturado e colocado em um tgrande cesto. O herói foge outra vez, e é perseguido por um cão de Venceslau Pietro Pietra, que o acua e faz com que ele entre num formigueiro. Usando artimanha, ele consegue escapar.
Macunaíma tem inveja do gigante porque não possui coleção de pedras, e decide colecionar alguma coisa, de preferência algo mais leve. Ele resolve então fazer uma coleção de palavras-feias de que ele gostava. O herói revela aí sua arma de combate: a força das palavras, escritas faladas, populares, eruditas, em latim e grego (que ele vinha estudando), em italiano e em indiano, enfim, o discurso torna-se para o herói a grande moeda de uso.
No Rio de Janeiro, Macunaíma visita um terreiro de macumba e pede a Exu que castigue Piaimã, que é então chifrado por um touro selvagem e ferroado por quarenta mil formigas-de-fogo. No terreiro, encontrava-se a força da palavra de vários poetas modernistas citados no capítulo.
O embate épico do herói contra Piaimã termina com a derrota do gigante, que morre fervendo na água da macarronada de Ceiuci, e desprende “um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói teve uma sapituca”. O herói então recupera os sentidos e a muiraquitã e retorna com os irmãos “pra querência deles”.
Na “Carta pras Icamiabas”, faz-se a paródia da retórica, em linguagem grandiloqüente e pomposa, própria de um “Imperator”, nem que seja do mato. É a sátira epistolar aos que falam e escrevem “bem”, mesmo que não sejam compreendidos, o questionamento do abismo existente entre a fala e a escrita. Ao mesmo tempo, o herói prova que ele também pode se apropriar do discurso erudito, assim como maneja com a maior naturalidade a língua falada, a linguagem chula, idiomas estrangeiros, enfim, o bastante para impressionar quem quer que seja.
Macunaíma não conseguiu reaver a pedra verde, mas conquistou o discurso precioso.
O ponto de vista aqui se desloca do rapsodo, ou aedo, para o personagem, recém-iniciado nos segredos dos discursos, e impressionado com o poder da linguagem, tanto que ele em seguida resolve estudar as duas línguas da terra, “o brasileiro falado e o português escrito”. O poder do discurso revelado no pastiche da carta, construído sobre um arremedo de estilos variados, equivale, para o herói, a ser louro de olhos azuis e a possuir muito dinheiro para morar em São Paulo: são as exigências da sociedade emergente, cuja antítese é o negro ou mestiço pobre e ignorante. A fala do povo é coisa bastarda, deformada, “bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano”.
A boa escrita lusitana pode ser identificada nos diálogos que Macunaíma trava com Pero Vaz Caminha, Luís de Camões, Pero de Magalhães Gandavo, Manuel Botelho de Oliveira, José de Anchieta, Rui Barbosa.
Esta é a verdadeira pedra mágica de Macunaíma, que, através do discurso, pretende se impor às suas súditas e se igualar aos dominantes na maior cidade do Brasil. O texto confronta-se com a oralidade predominante na narrativa como um todo, constituindo uma ruptura com o discurso da rapsódia, coincidindo com o momento em que o herói toma a palavra. Em suma, esse discurso é seu, e não aquele que o rapsodo ouviu de um papagaio e colocou em sua boca. Por mais que se considere o fato de que as palavras teriam chegado até nós por arte do aruaí, a peculiaridade do texto o desloca da narrativa do papagaio e do aedo, depositando-o na pessoa de Macunaíma.
A “Carta pras Icamiabas” insere-se exemplarmente na proposta da estética modernista de par com Oswald de Andrade, de apropriação de variados discursos, deslocados de seu contexto original, compondo o universo lingüístico de Macunaíma, propositalmente desordenado, não-linear, cheio de altos e baixos. Tais recursos encontram berço na rapsódia, forma livre, caráter de fantasia.

A MELANCÓLICA ASCENSÃO

Macunaíma havia nascido preto retinto, a cor dos Tapanhumas. Em trânsito para São Paulo, ele se banha em uma poça mágica e fica “branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele”. Jiguê copiou o ato do irmão, mas como a água estava suja do negrume do herói, ele ficou “da cor do bronze novo”. Maanape não conseguiu molhar senão as palmas das mãos e as solas dos pés, que ficaram vermelhas, enquanto o resto do corpo permaneceu negro. Por sua reação, Macunaíma estabelece uma hierarquia do melhor para o pior na transição gradual de branco para bronze para negro: mais que uma gradação, é uma degradação preconceituosa.
Considerando a questão da formação do povo brasileiro, pode-se fazer um paralelo entre Macunaíma e Iracema, ambos portadores de algum tipo de símbolo ligado à fundação. Na obra de José de Alencar percebe-se a intenção de enaltecer o elemento indígena como etnia importante para a formação do povo brasileiro. A intenção, entretanto, não pode ser realizada plenamente por força do preconceito do autor, que se irradia para o narrador e os personagens de Iracema. Um exemplo claro é uma das notas de pé de página do autor, que desmistifica com explicações “racionais” um ritual mágico de Araquém, o pajé dos pitiguaras, que faz as entranhas da terra ecoarem a voz de Tupã, deus supremo dos índios. No caso de Alencar, o preconceito é proposital e aceito ingenuamente como a atitude certa para os padrões do século XIX meado.
Quanto a Macunaíma, ele sabe que ser branco é “melhor” do que ser mameluco, mulato, negro ou índio. O comparativo melhor é arraigado na cultura brasileira, o escritor o percebe e denuncia o ato de preconceito como um dos traços contraditórios da identidade do brasileiro; a visão do preconceito aqui é, portanto, crítica, como a constatar que o brasileiro, infelizmente, é assim.
Ser brasileiro, para Macunaíma, é ser inseguro, indeciso, debater-se entre opções não muito claras de vida, lutar entre os pólos de opressão e submissão, transitar entre etnias dominadoras e dominadas. O “herói de nossa gente” é um ser de muitas caras e de nenhuma, em busca de sua identidade.
Macunaíma vive muito e morre muito, e parece que até a questão de vida e morte é controvertida para ele. Ele morre duas vezes sem querer morrer, e é impedido de morrer quando se cansa da vida, recusado por Caiuanogue, a estrela-da-manhã, e por Capei, a Lua.
Sua primeira morte se dá na primeira batalha contra Venceslau Pietro Pietra, atingido por uma flechada no coração. Foi ressuscitado pelo feitiço de Maanape. Na segunda morte, o herói é enganado por um macaco, que o convence a quebrar seus próprios testículos para comer. Macunaíma pegou “um paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto”. Foi novamente restituído à vida por Maanape.
O fim de Macunaíma é patético. Vei, a Sol, para se vingar do herói, guia-o até a lagoa onde é derrotado pela Uiara, sereia lindíssima que, não por acaso, tinha os cabelos negros como a asa da graúna. Esse é um momento de delicado impasse para o herói. Ao se deixar seduzir pela Uiara, secundado pela punição que lhe foi imposta por Vei, por preferir o herói a cultura européia, ele termina por abrir mão da vida terrena, após um momento de indecisão entre ir morar no céu ou na ilha de Marajó. Se a permanência na terra é complicada, a entrada no céu também é difucultada, novamente por Capei e por Caiuanogue, e também por Pauí-Pódole, que termina por resolver o problema do herói:

Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos fez em encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revólver relógio, numa constelação nova. É a constelação de Ursa maior. (1997: 166)

Merece comentário a aproximação que Mário de Andrade faz entre a Uiara e Iracema, heroína de José de Alencar, símbolos da nacionalidade que se recusa ao herói. Assim como Iracema, a Uiara é belíssima e tem os mesmos cabelos negros. Iracema morre para o Brasil nascer; a Uiara provoca a morte de Macunaíma, numa luta etnocida, mas representa uma raça igualmente derrotada no confronto mortal com a civilização européia.
O exílio cósmico do herói é tão triste quanto inútil, ou seja, não é saída nem solução para o impasse entre o primitivismo ameaçado e a vida urbana pseudo-europeizada e semi-americanizada. Assim como o retorno de Macunaíma ao Uraricoera não tem sabor de triunfo, sua transformação em estrela não é apoteótica, mas melancólica.
A declaração do autor sobre seus sentimentos quanto à morte do herói atestam que a narrativa não era para ele apenas o “livro de pura brincadeira” que ele queria fazer parecer inicialmente. Eis o patético depoimento do autor (1999: 180):

(...) Pouco importa, si muito sorri, escrevendo certas páginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando o herói desiste dos combates da terra e viver o “brilho inútil das estrelas”, eu chorei. Tudo, nos capítulos finais, foi escrito numa comoção enorme, numa tristeza, por várias vezes senti os olhos umidecidos, porque eu não queria que fosse assim! E até hopje (é o livro meu que nunca pego, não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou três vezes que reli este final, a mesma comoção, a mesma tristeza, o mesmo desejo amoroso de que não fosse assim, me convulsionaram.

BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica. LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José de Costa Rica, Santiago de Chile. ALLCA XX, 1997.
GLAESER, Célia Flud. Linguagem e fundação. Belo Horizonte: Universidade, 2000.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

2 comments:

Anonymous said...

Maravilhoso, seu texto. Vou fazer um seminário sobre o Macunaíma e tenho usado o Roteiro de Macunaíma, do M. Cavalcanti Proença, e o Morfologia do Macunaíma, do Haroldo de Campos. Sem comentários, não é? hehehe. Agora vou usar o seu, também, como sutentação, com créditos, é claro. =)

Anonymous said...

Hey, I am checking this blog using the phone and this appears to be kind of odd. Thought you'd wish to know. This is a great write-up nevertheless, did not mess that up.

- David