Monday, October 30, 2006

PAU-BRASIL – Oswald de Andrade
O DISCURSO DE EXPORTAÇÃO - ROTEIRO DE LEITURA
Cid Ottoni Bylaardt
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Professor Adjunto da UFC (cidobyl@ig.com.br)

PAU-BRASIL

Nas primeiras décadas do século XX, a arte brasileira, e especialmente a literatura, apresentava um cenário de transição histórica, sob a ação dos simbolistas e dos tardios parnasianos e realistas-naturalistas. A Europa do pós-guerra produzia movimentos de vanguarda que de alguma forma inquietava nossos intelectuais.
A Semana de Arte Moderna de 1922 produziu o escândalo cultural que faltava para se acender a fogueira das discussões sobre o passado, o presente e o futuro da arte brasileira. Seus protagonistas partiram de uma “unidade do contra” em relação à arte daquele momento e do recente passado, representados na literatura pelo parnasianismo e naturalismo passadistas e pelo simbolismo. Sua linha de frente, composta por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira e outros, realiza uma verdadeira agitação cultural ¾ revistas, livros, manifestos, eventos ¾ a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, em direção ao resto do país.
Os modernistas ¾ que se opunham aos passadistas e independentes ¾ dividiam-se em quatro correntes principais: dinamista, primitivista, nacionalista e espiritualista. Oswald, com sua poesia Pau-Brasil, costuma ser incluído entre os primitivistas.

O PRIMITIVISMO DE OSWALD

O livro de poemas “Pau-Brasil”, de 1925, é precedido do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, publicado no Correio da Manhã em 18 de março de 1924.
A primeira frase do manifesto é “A poesia existe nos fatos”. Aí começa a proposta de revolução oswaldiana. Para ele, fatos são o carnaval do Rio, nossa formação étnica, nossa riqueza vegetal e mineral, nossa culinária. Opondo-se aos simbolistas nefelibatas e à torre de marfim parnasiana, Oswald propõe que a poesia se faça de cada pedaço deste Brasil, desde suas origens.
A poesia de até então é mais um saber do que uma arte, a literatura das belas-letras, com sua erudição e seu cerimonial de hierarquias e regras; para os modernistas, uma deformação.
Em oposição a essa poesia “pesada”, Oswald propõe “a alegria dos que não sabem e descobrem”, a poesia “ágil e cândida”, como uma criança. Para ele, poesia não pode ser coisa de gabinete, de academicismo, eruditismo, mais um saber do que uma arte, provocadora de “indigestões de sabedoria”. Daí a reivindicação de uma literatura mais despojada: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos, como somos”, a expressão de brasilidade através da linguagem.
A poesia “culta”, parnasiana, inspirada em modelos e regras europeus, é uma poesia de importação; a poesia “Pau-Brasil”, que nasce aqui, é poesia de exportação, daí a denominação, homenagem à primeira riqueza brasileira de exportação, o pau-brasil.
O manifesto estabelece as leis da poesia Pau-Brasil: a síntese em oposição ao detalhe naturalista, o equilíbrio contra a morbidez romântica, a invenção e a surpresa em negação à cópia, a valorização de estados primitivos da alma brasileira, uma nova perspectiva sentimental, intelectual, irônica e ingênua, uma nova escala, que privilegie o novo, o atual, o sentido puro da existência, sem fórmulas, com “olhos livres”. “A poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal”.
A poesia incorpora, portanto, as características multifacetadas da sociedade brasileira, como o arranha-céu, o carnaval. É preciso ser “regional e puro em sua época”, a prevalência da inocência sobre o “estado de graça”.
A poesia Pau-Brasil é, enfim, a proposta de libertação da influência dos cânones europeus, que serviam de modelo para a literatura brasileira; a proposta de renovação da linguagem poética, livrando-a da “eloqüência balofa e roçagante”. É a valorização da poesia curta, condensada, antidiscursiva, o “poema-minuto”, invenção de Oswald.

ROTEIRO DE PAU-BRASIL

Se o objetivo de Oswald de Andrade é exportar um produto para o estrangeiro, no caso a poesia, como ocorreu com o pau-brasil do século XVI ao XIX, é preciso apresentar ao comprador um catálogo da mercadoria oferecida. Este menu contém, assim, dez títulos, que compõem o roteiro de um Brasil poético. Esse roteiro parte da descoberta do Brasil, seguindo com a colonização, a vida em fazenda, uma viagem pelo vale do Paraíba até o Rio, o carnaval, a aventura amorosa, flagrantes urbanos, impressões sobre as cidades de Minas, o regresso da Europa e as escalas do Brasil.

POR OCASIÃO DA DESCOBERTA DO BRASIL

“Escapulário”, o primeiro poema desta parte, contém um diálogo com uma oração católica, o “Pai Nosso”, à guisa de invocação para compor sua obra poética. O poema interliga a poesia, a grandiosidade da natureza brasileira, representada pelo Pão de Açúcar, e a religião católica, que acompanha os brasileiros desde o primeiro momento do “achamento”. Este texto histórico/religioso/metalingüístico ostenta um título que remete a um adorno de religiosos e devotos, um “bentinho”, que se supõe abençoado, e, portanto, “dá sorte”.
Solicitada a proteção divina para seu empreendimento, o poeta deita falação sobre sua crença poética, num mini-manifesto que contém seus assuntos e seus modos de dizê-los. Reveladora é a relação da ignorância do poeta que descobre a poesia com a ignorância de Cabral ao descobrir o Brasil. É a pureza primitiva contra o enciclopedismo de importação, os caminhos imprevisíveis que se descortinam em nosso país, retirando de nossa vida objetivos racionalmente definidos, conforme sugestão de Blaise Cendrars contida em “Falação”:
¾ Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta de vosso destino.

A proposta é, então, de uma poesia despojada, imprevisível, inventiva e sintética, que contenha o que o Brasil tem de autêntico, e de diferente dos outros:

E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade.
Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau-Brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.

HISTÓRIA DO BRASIL

Invocada a assistência da musa do Pão de Açúcar e feita a proposta, numa inversão da fórmula épica, inicia-se o passeio espacial-temporal. Quem abre a “História do Brasil” é, obviamente, Pero Vaz Caminha. O poeta se apropria de textos de Caminha para compor os quatro primeiros poemas. O primeiro poema, “A descoberta” tem seus versos retirados quase que integralmente do texto corrido da carta de Caminha. O texto da carta é o seguinte (assinalamos com itálico as palavras ou expressões que compõem o texto poético):

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram vinte e um dias de abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas (...). E, quarta-feira seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam furabuchos. Quarta-feira, 22 de Abril: neste dia, a horas de vésperas, houvemos vista de terra! (Carta de Pero Vaz Caminha)

Os demais poemas desta seção apresentam flashes do primeiro contato do colonizador com o elemento autóctone. Merece registro a projeção das personagens femininas do ano de 1500 para o século XX no poema “As meninas da gare”. As “moças bem moças e bem gentis” que emergem da carta de Caminha com “suas vergonhas tão altas e tão saradinhas” são lançadas a uma estação de trem paulista do início do século XX, eliminando as grandes diferenças étnicas entre a nudez das índias inocentes e o pudor das garotas da burguesia que se exibem numa estação de trem.
Pêro de Magalhães Gândavo é um cronista português do século XVI que registrou suas impressões sobre a terra brasileira em duas obras principais: Tratado da terra do Brasil no qual se contém a informação das cousas que há nestas partes e História da província de Santa Cruz que vulgarmente chamamos Brasil. Oswald dialoga com o historiador mantendo a grafia arcaica do texto original, com a intenção de preservar tanto o primitivismo da situação quanto a visão européia sobre nossa terra.
O poeta recorre a Gândavo para reafirmar o acolhimento afetuoso da terra aos que nela chegam, a beleza de seu formato, que lembra uma harpa, instrumento que produz melodia suave e harmonia agradável, a pureza do ar e a abundância das águas, a riqueza que não deixa a ninguém no desamparo, as frutas, os animais, enfim, a descrição do paraíso. Não se pode esquecer a menção ao nosso primeiro produto de exportação, símbolo da proposta de Oswald: “Também há muito paobrasil / nestas capitanias”.
É importante observar que todos os textos reaproveitados por Oswald sofrem um processo de deslocamento, de atualização, sendo retirados de seu contexto de origem para também fazerem uma viagem espacial-temporal por esse Brasil contraditório, o que é confirmado pelos próprios títulos dos poemas.
Os títulos indicam uma atualização, ou uma transposição dessa terra edênica ao momento da enunciação, com a utilização de nomes técnicos para aspecto poéticos, como “Corografia” (estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município), “Salubridade” (conjunto das condições propícias à saúde pública), “Sistema hidrográfico” (conjunto das águas correntes ou estáveis duma região) e “Natureza morta” (gênero de pintura em que se representam coisas ou seres inanimados).
Clemente Foulon, o capuchinho francês Claude D’Abbeville, esteve no Maranhão em 1612. Publicou, em 1614, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão. Na recriação das palavras em francês do capuchinho, o poeta confronta a moda indígena com a moda francesa, comenta a nudez das índias e decanta a beleza da natureza brasileira. Basicamente os mesmos assuntos são desenvolvidos nos versos recriados de Frei Vicente de Salvador.
Mais para o final do século XVII, aparece Fernão Dias Pais, em excertos da carta enviada ao governador-geral do Brasil, Afonso Furtado de Mendonça, pedindo permissão para formar sua bandeira, que iria desbravar os sertões de Minas e iniciar seu povoamento, em busca de ouro e pedras preciosas. A referência ao “terreal paraíso” das terras brasileiras é reiterado em “Frei Manoel Calado”.
O poema “Vício na fala”, intertexto de um certo J. M. P. S., desconhecido escritor português do início do século XIX, refere o modo de falar das gentes incultas do Brasil, cotejado com a expressão dita culta: “milho”/“mio”; “melhor”/“mió”; “pior”/“pió”; “telha”/“teia”; “telhado”/“teiado”.
A referência ao príncipe Dom Pedro, que logo se transformaria no Imperador Dom Pedro I, fecha esse roteiro da história do Brasil até a independência. O texto em questão é a carta que Dom Pedro escreveu ao patriarca José Bonifácio, referindo-se ao importante papel que desempenhou o regimento dos pardos por época da independência do Brasil, exercendo estreita vigilância sobre os possíveis reacionários ao golpe.

POEMAS DA COLONIZAÇÃO

Esta parte compõe-se de quinze poemetos, sendo o maior de sete versos e os menores de quatro. Os textos são extremamente sintéticos, de imagens incompletas, inacabadas, que exigem do leitor a composição mental da cena, como em “Negro fugido”:

O Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando pilão na cozinha
Entraram
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
Montaram nele

A cena que finaliza o relato dá margem a várias construções na mente do leitor, imaginando-se o que pode significar o verso “Montaram nele” em se tratando de um escravo fugido apanhado por seus donos.
A maioria dos poemas desta parte trata da vida dos escravos negros nas fazendas, que um dia seriam libertados e trocados por “terras imaginárias / onde nasceria a lavoura verde do café”. Desfilam em pequenos flashes do cotidiano das fazendas os escravos de ofício (marceneiro e cozinheiro), as jovens escravas sempre grávidas, o escravo assassino e suicida, o escravo fugido apanhado por seus perseguidores, o fantasma da mulatinha morta, a discussão dos negros sobre palavras da língua, o medo de assombração, o assassinato do negro comprado na cadeia, a briga de negros com soldados, a escrava que tem uma filha com o senhor e se joga no rio com a criança, temendo a represália da senhora, o levante dos escravos que terminou com várias “caveiras espetadas nos postes”, que faziam um ruído fúnebre à noite, enfim, a comida, o trabalho, as pequenas alegrias e o sofrimento dos negros, bem como seu castigo, retratado em cena que remete a uma macabra culinária humana:
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura

Com tanto sofrimento, o negro prepara produtos que fazem sua fama nos bailes da corte, como a farinha, a pinga, o fumo: “É comê bebê pitá e caí”. Aos brancos cabe também uma pitada de sofrimento, na figura do rapaz convocado para a guerra do Paraguai, onde ficou para sempre, deixando a noiva a tocar piano de saudade.
Toda essa movimentação, toda essa vida tem um chefe supremo, que regula as condições de existência de todos: o dono, que exerce um poder feudal, maior do que o do próprio imperador.

SÃO MARTINHO

A vida de fazenda é retomada nessa parte; não o espaço escravista da seção anterior, mas a fazenda moderna, iluminada pela mesma lua desde os tempos do descobrimento. O Brasil agora é cortado pelas estradas de ferro, e a moeda de valor é o café, é o símbolo da pujança paulista, o carro-chefe de sua prosperidade, o orgulho do fazendeiro que “olha os seus 800 000 pés coroados”.
A prosperidade, entretanto, permite que se retome a vida bucólica no pomar antigo, as crendices, as tragédias passionais, as cantigas de violas (“O violeiro”, quadrinha de versos heptassílabos), a festa do churrasco e do chimarrão. Os tempos antigos, retratados na decadência do ex-escravo, o “Pai negro”, cedem lugar a tempos mais modernos, lembrados na presença da escola rural, nas leis de registro obrigatório das crianças, e na indústria que nasce no rastro da opulência do café:

Os fornos entroncados
Dão o gusa e a escória
A refinação planta barras
E lá embaixo os operários
Forjam as primeiras lascas de aço

rp1

O título misterioso pode ser as iniciais de rio Paraíba, ou de reflexão poética, ou de roteiro de poesia. Rio Paraíba porque os poemas dessa parte parecem reconstituir uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, de trem, cujo espaço predominante é o vale do rio Paraíba. Reflexão poética pela revelação que o poeta tem por meio de seu filho:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi

Essa parte é também um roteiro de poesia, porque fornece um itinerário de descobertas poéticas, de São Paulo ao Rio de Janeiro, com instantâneos, “Como um fotógrafo”, das cidades do interior paulista e fluminense, sua simplicidade, seus imigrantes, seus produtos, que se destinam às capitais, seus bancos de jardim e cinemas freqüentados por moças vigiadas por mães.
A chegada próxima ao Rio de Janeiro é anunciada por dizeres de linguagem publicitária que anunciam um apartamento na então capital do país, local de chegada da poesia itinerante de Oswald de Andrade nessa parte.

CARNAVAL

Essa parte se inicia com a interjeição festiva com que, na Antiguidade, se evocava Baco durante as orgias: Evoé, e viva o Carnaval, a alegria, o delírio, o “brilhante cortejo” que, por tão grandioso, não será submetido, e sim sobremetido à apreciação do Brasil, que julgará a competência das “hostes aguerridas / do riso e da loucura”.
O tom do primeiro poema, “Nossa Senhora dos cordões”, fazendo jus ao nome, é religioso, e contém um pedido à santa que proteja o evento. Numa atitude irônica, Oswald carnavaliza as graças religiosas, os intelectuais (“o culto povo carioca”) e a imprensa (“Acérrima defensora da Verdade e da Razão”). A carnavalização das instituições tem como objetivo proteger o carnaval contra sua institucionalização como bem cultural da elite, composta de “distintos cavalheiros da boa sociedade / Rigorosamente trajados”, das “damas / Fantasiadas de pavão”

SECRETÁRIO DOS AMANTES

Aqui se apresenta um voz feminina que fala da Europa reportando-se ao amante possivelmente no Brasil. Em meio a excelentes hotéis, jantares magníficos, as belas paisagens européias, a locutora registra sua saudade e tristeza pela separação. Entretanto, o choro de saudade do amante apartado pela distância não compensa as manchas de maquiagem provocadas pelas lágrimas.

POSTES DA LIGHT

Dentro deste roteiro brasileiro se insere um outro, pela cidade de São Paulo. Evidenciam-se os contrastes: o antigo e o moderno no confronto entre a carroça puxada por cavalo que entrava o bonde que transporta doutores advogados, com castigo para o anacrônico infrator; a Biblioteca Nacional, que ostenta, entre suas obras canônicas e de legislação vetusta, títulos transgressores como “A arte de ganhar no bicho”; a prostituição e os ricos da sociedade “Hípica”.
São variados os retratos de São Paulo, a cidade “sem mitos”, de múltiplas identidades e tradições: o vale do Anhangabaú, com seu viaduto de ferro; o Jardim da Luz, recreio das famílias paulistanas; a praça Antônio Prado; os pontos nobres de residência etc.
Não podem faltar os tipos populares, como o malandro com passagem na polícia que aborda mocinhas e o lambe-lambe que registra instantâneos poéticos de seres apaixonados (técnica utilizada pelo próprio autor em seus instantes de poesia).
Em “Escola Berlites”, o autor refere-se às famosas escolas de língua do início do século XX, que utilizavam o método “direto” de ensino de línguas (associação objeto-palavra), do pedagogo americano Maximilian Berlitz, cujo sucesso se difundiu pelo mundo. A evocação do poeta recai no mau-humor da professora e nas frases sem nexo que se formam nas línguas estrangeiras.
Elementos importantes na vida de uma capital metropolitana são as invenções da modernidade, que começavam a incorporar os hábitos de vida da sociedade de então: a vitrola acionada por manivela que tocava discos de cera de carnaúba; o cinema, diversão que inaugura um novo tipo de sedução interdita; a rádio bandeirantes que “cinematiza” uma luta de boxe, os automóveis, os arranha-céus.
A publicidade na capital também aparece como um sinal dos novos tempos: os reclames de vendas de imóveis em regiões nobres da capital, anúncios de lutas de boxe, o “Reclame” da “graciosa atriz” Margarida Perna Grossa.
No futebol, o direito ao ufanismo: as muitas vitórias e a única derrota da seleção brasileira em uma excursão pela Europa
A “caipirinha vestida por Poiret” do poema “Atelier” é referência à pintora Tarsila do Amaral, que foi casada com Oswald. Os retratos agora são dos quadros de Tarsila, com seus temas, suas cores, o som (as locomotivas; klaxon: buzina de automóvel) o cheiro do café no “silêncio emoldurado”.
Seguem flashes sobre a vida na cidade grande: a prostituição em “Bengaló”; o amor “interesseiro”, porém sincero em “Passionária”; a língua falada que difere da escrita em “Pronominais”, lutas de boxe, os passeios, os parques etc.
Oswald não deixa de espetar uma ironia nos homens “importantes” de São Paulo, como na cena dos doutos advogados atravancados por um cavalo e no Espírito Santo da procissão, de quem ele espera o poder de “inspirar os homens / De minha terra”.

ROTEIRO DAS MINAS

Neste roteiro, o poeta apresenta várias cidades mineiras, colocando seu foco principal no aspecto religioso e histórico de nossa tradição, durante a Semana Santa. O convite para redescobrir as Minas Gerais, em viagem de trem, começando por São João del Rei, é feito no primeiro poema, lembrando o locutor os feitos dos bandeirantes no passado.
A paisagem dessa Minas de sangue e ouro é vista da janela do trem: a madrugada no alvorecer, torres de igrejas, pontes de muitos rios, coqueiros em grupos, palmas, criações de cavalos... As cidades se sucedem. Sete-lagoas, Sabará, Caeté: muita moça bonita, algum ouro, e o malandro violeiro; São José del Rei: o ouro terminando, a decadência, o Judas enforcado no sábado de aleluia; Traituba: sobrado com jeito de igreja, pomares, frutas, passarinhos, carros de bois. E mais: Ibituruna e seus campos, Carmo da Mata, Tartária, Capela Nova, Bom Sucesso...
Ouro Preto merece destaque: a igreja de São Francisco de Assis, com púlpitos do Aleijadinho e teto de mestre Ataíde, a lembrança dos tempos rigorosos do Conde de Assumar. Em Congonhas, os profetas do aleijadinho em sua “religiosidade no sossego do sol”.
Tarsila do Amaral: “Abaporu”
O asseio se dá na típica Semana Santa mineira. Nas festividades, mais alegria do que pesar pela tragédia de Cristo, nos rituais, a procissão que ilumina as ladeiras, a encenação da Paixão de Cristo, o dia de Reis com o bumba-meu-boi. A volta à tranqüilidade marca o final dos festejos (“Ressureição”).
O poeta, que seguia o roteiro da Semana Santa, despede-se das festas com “aquela paixão / No coração”, e segue sua viagem até a proximidade da capital, onde pousa num hotel “rigorosamente familiar”, que “oferece vantagens reais”. Aproxima-se o Barreiro, a Gameleira, Lagoa Santa (“Águas azuis no milagre dos matos”), Santa Luzia, terra do pintor Marcolino, Sabará e seu córrego onde havia “negros a cada metro de margem” e que ainda atrai faiscadores.
A viagem finda com a despedida da paisagem mineira em “Ocaso”:

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
A cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro das minas

LÓIDE BRASILEIRO

“Minha terra tem palmares”: tanto o sofrimento dos negros escravos marginalizados pela sociedade dominante quanto o conjunto de palmeiras que embelezam esta terra compõem os motivos de saudade e de crítica para quem está para lá do Atlântico. “Canto de regresso à pátria” é uma irreverente paródia da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Sua intenção é dessacralizar a poesia canônica, retirando-lhe a aura de objeto único, irreproduzível, a ser exposto no museu da veneração.
Lóide Brasileiro é o navio que conduz o poeta de volta a pátria. A partida em Lisboa se confunde com a partida para o descobrimento do Brasil da “pátria quinhentista”. No mar, o navio com seus bêbados, gigolôs e jogadores, além de famílias tristes; no céu, o Cruzeiro, que marca a passagem do Equador, “Primeiro farol de minha terra”.
A aproximação da terra brasileira é anunciada pelos “Rochedos São Paulo”, nas proximidades do Amazonas e por “Fernando de Noronha”, ilha solitária, “terra habitada no mar”.
A chegada à costa brasileira revela Recife, do ciclo da cana-de-açúcar, e Olinda, que conserva em seus canhões a memória das batalhas contra os holandeses. Em seguida a orla marítima baiana, com suas jangadas, e o Rio de Janeiro do Pão de Açúcar. São Paulo se anuncia por uma publicidade governamental: “A Secretaria da Agricultura fornece dados / Para os negócios que aí se queiram realizar”.
No porto de Santos, os funcionários da alfândega examinam as malas, mas não conseguem apreender a “saudade feliz” que o poeta carrega de Paris.
O poeta termina com a expressão em latim que alguns autores, em geral religiosos, põem, às vezes, no fim de um livro, em sinal de gratidão: “Laus Deo” (Louvado seja Deus).

A ESTÉTICA DO REAPROVEITAMENTO

O material utilizado por Oswald em Pau-Brasil é o passado brasileiro, revisitado em textos de outros autores, expressões em latim e em outras línguas, dizeres populares, orações etc. Eis o que chamamos de escrita parodística, escrita de segunda mão, uma apropriação dos enunciados pré-existentes ao texto. Coloca-se então a questão do plágio, da cópia. Oswald investe contra o status poético brasileiro do início do século, que é a estética da imitação, da cópia de modelos estrangeiros, conforme ele afirma em “Falação:

Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa.

Estaria o poeta entrando em contradição, do tipo “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Faz-se necessário observar que Oswald, ao reutilizar outros textos em sua poesia, não está reproduzindo situações, não está promovendo um espelhamento deles a partir de seu berço de origem. Deve-se entender a “cópia”, aqui, como uma deformação do texto original, um reaproveitamento parodístico, um deslocamento que leva o texto a uma outra dimensão, com o intuito de homenagear, ou de satirizar, ou de inverter.
Não existe, portanto, uma mera reprodução textual, mas um reaproveitamento que constrói uma revisão crítica do passado histórico-literário brasileiro, produzindo uma releitura, uma redescoberta do Brasil que dá voz a todos os elementos que participaram dessa construção.
Laus Deo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo. Secretaria do Estado da Cultura, 1990.
CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. V. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1970.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1987.

1 comment:

Anonymous said...

Olá, por acaso você teria a referência exata à carta citada no seguinte trecho? "O texto em questão é a carta que Dom Pedro escreveu ao patriarca José Bonifácio, referindo-se ao importante papel que desempenhou o regimento dos pardos por época da independência do Brasil, exercendo estreita vigilância sobre os possíveis reacionários ao golpe." Pesquiso exatamente aspectos relacionados ao regimento de pardos de São Paulo, mas desconheço esta referência. Obrigado pela atenção!