“Modernidade em ruínas” – Roteiro de Leitura
1. Segundo LPM, como se formam os cânones literários?
2. Quais são as aspirações dos novos escritores?
3. Qual é a relação entre a literatura e a sociedade de consumo? Como se situa aí o ato da leitura?
4. Quais são os sinais, apontados por Octavio Paz, de falha do projeto moderno?
5. Para LPM, qual é a diferença entre modernidade e modernismo?
6. A partir do texto de LPM, tente definir “pós-modernidade” e aponte seus traços principais e sua delimitação temporal na história.
7. Quais são os argumentos dos que rejeitam o pós-moderno?
8. Qual é a posição de Habermas em relação à pós-modernidade?
9. Como Ihab Hassan opõe o moderno ao pós-moderno?
10. Como LPM contesta o binarismo de Hassan?
11. Que considerações LPM faz sobre os chamados traços pós-modernos?
12. Que crítica faz LPM a Linda Hutcheon?
13. Quais são os traços que caracterizam os escritores-críticos estudados por LPM?
14. Por que LPM diz que a literatura está na UTI?
15. Comente: “Das posturas românticas, a pós-modernidade só abandonou a utopia, a nostalgia do absoluto, da totalidade, do sublime” (p. 189).
16. Que modificações a autora aponta no ensino da literatura no século XX?
17. Qual a contribuição dos próprios professores de literatura para o que a autora chama “estrangulamento dos estudos literários”?
18. Qual a posição de Terry Eagleton em relação à literatura?
19. Comente a expressão “movimento pendular entre texto e contexto” (p. 193).
20. Qual é a situação dos estudos literários no Brasil?
21. Por que a autora se refere à sociedade norte-americana utilizando a expressão “evangelização belicosa” (p. 195)?
22. Em que as condições de aprendizagem brasileiras diferem das norte-americanas?
23. Qual é a relação entre os culturalistas e o cânone?
24. Quais são os três mal-entendidos que a autora enumera sobre o cânone?
25. Explique a posição de Harold Bloom sobre o cânone.
26. Em que LPM concorda e em que ela discorda de Bloom?
27. Qual é a opinião geral da autora sobre a cultura de massa e a globalização?
28. Que tipo de cultura, segundo LPM, está ameaçada de extinção?
29. Como se situa a literatura nesse contexto?
30. Qual é a posição de Roland Barthes em relação à literatura contemporânea?
31. Como LPM descreve as idéias de Blanchot?
32. Qual é a constatação de Haroldo de Campos sobre a poesia pós-moderna?
33. Resuma o balanço que Octavio Paz fez da literatura contemporânea.
34. A que tipo de confusão levou a má assimilação das idéias de Foucault, Barthes, Derrida e Sollers?
35. Qual é a conclusão de LPM sobre os escritores-críticos modernos?
Tuesday, October 30, 2007
O desastre da escritura: “Meu tio o Iauaretê”
Cid Ottoni Bylaardt
(Universidade Federal do Ceará)
“Meu tio o Iauaretê” é o desastre da escritura, a escritura do desastre . O termo do desastre é simultaneamente complemento e adjunto: tanto é o processo pelo qual o desastre é escrito quanto a escritura empreendida pelo desastre: a escritura é agente do desastre e alvo dela. A esse propósito, a força impressionante da linguagem em “Meu tio o Iauaretê” de Guimarães Rosa reporta a alguns fragmentos de Maurice Blanchot em L’écriture du desastre. O primeiro deles relaciona ato de escrever e desastre, desvinculando-os da experiência:
Le desastre inexpérimenté, ce qui se soustrait à toute possibilité d’expérience — limite d’écriture. Il faut répeter: le desastre dé-crit. Ce qui ne signifie pas que le désastre, comme force d’écriture, s’en exclue, soit hors écriture, um hors-texte. (BLANCHOT, 1980, p.17)
O desastre não-experimentado é o relato do bugre que o visitante ouve e no qual interfere, mas sobre o qual não pode exercer controle. O relato se de-screve, com todas as possibilidades que essa clivagem sugere. O texto de Blanchot faz pensar então na instabilidade da situação dos corpos que se movem na narrativa de Rosa: de um lado, o interlocutor mudo que interfere violentamente tanto na enunciação quanto no enunciado do texto, e de outro o falador, que não aceita as imposições do visitante, vistas como ameaças a sua integridade selvagem, mas que também não alcança impor as suas. Ao ler o texto de Rosa, caímos freqüentemente na tentação simplificadora de associar o falante ao escritor e o ouvinte ao leitor. Todavia, não se pode esquecer, por um lado, de que o visitante também participa ativamente da escrita, funcionando como a outra mão, que sugere, exige, obriga; por outro lado, o locutor é também ouvinte, acatando ou repelindo as imposições-sugestões.
O operador do discurso é o eu falo, que automaticamente remete à posição formal clássica da situação em que a fala versa sobre um objeto ao qual o “eu” responsável dá suporte. Esse “eu falo” aqui, entretanto, coloca em risco a narrativa, por ser portador de um discurso que falta, que não conduz ao desfecho confortável que distende, mas ao vazio que acumula tensão. A linguagem, ao invés de se fechar, expande-se ao infinito, e o sujeito se dispersa até o desaparecimento no espaço da não-delimitação, no tempo da ausência de tempo. Agora, o eu falo não é mais responsável por um discurso, mas condutor trôpego de uma gramática-onça que não responde mais por verdades humanas. A sintaxe do homem-fera mostra sua última palavra sem fechá-la em predicado ou complemento, um signo móvel sempre pronto a se abrir para outros, em movimento disperso, jamais em linha, sem regras nem unidade, sem começo nem final. Um tecido irregular, uma rede sem centro nem simetria, sem um fio que indique a porta de entrada ou o caminho de saída.
O eu falo da cultura ocidental tende a privilegiar o sentido, a transparência, a presença; a escritura literária, por outro lado, inclina-se a negar a existência, e portanto a presença tanto do que se diz quanto de quem disse; ninguém fala, não há ser humano a quem possa ser atribuída essa fala: a experiência fundamental volta-se à desaparição do sujeito. Essa ausência de obra, de conceito, de Deus, de totalidade, essa direção ao desconhecido tem como único desdobramento o desastre, ou o não-fim. Fechar a obra, terminar o texto seria aceitar o saber absoluto, o êxito.
O discurso do bugre-fera ruma para a metamorfose, para a palavra estranha e estrangeira, para a língua híbrida que não faz relatos exemplares. As histórias de onça reportam a um viver da classe da pureza, com o amargo arrependimento do locutor de ter matado muitas delas. Dos homens, não tem piedade, nem ódio, nem desejo de vingança. Apenas mata-os, ou entrega-os às colegas onças, porque isso faz parte de sua ordem natural. Assim, Gugué, Antunias e Riopôro morrem de “doença”, isto é, viram comida de onça; o preto Bijibo, “muito bom, homem acomodado”, também é entregue às feras; Rauremiro e toda a família são “devorados” pelo próprio narrador; preto Tiodoro parece ter tido o mesmo fim. Só Maria Quirinéia sobrevive à selvageria do homem-onça... além de seu marido, evidentemente, mas este não se situa em nenhuma esfera ameaçadora, por ser ele próprio uma criatura-limite, o louco manso no limiar do humano.
A instabilidade das situações narradas conduz à obscuridade das cenas que marcam o fim das páginas da novela. Não são poucas as exegeses que apontam a morte do sobrinho-onça como algo inquestionável. Ensaístas ilustres, como Walnice Nogueira Galvão, Haroldo de Campos, Ettore Finazzi-Agrò e Clara Rowland apostam na morte inquestionável do bugre, assassinado a tiros pelo visitante.
Haroldo de Campos afirma que “o interlocutor virtual também toma consciência da metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está disparando contra o homem-iauaretê o revólver que sua perspicácia mantivera engatilhado durante toda a conversa” (CAMPOS, 1992, p. 62). Ele se refere ainda aos “rugidos de morte do homem-onça” (idem) e ao “estertor de suas últimas exclamações” (idem). Há, portanto, nessa leitura, a morte física do locutor. Considerando que um dos pontos mais importantes da exegese de Campos é o fato de que o discurso do sobrinho do iauaretê incorpora o “momento mágico da metamorfose” (CAMPOS, 1992, p. 62), conforme referência emprestada de Ezra Pound, do projeto de seus Cantares, causa estranheza o fato de que a impossibilidade da transformação tenha de ser punida com a morte, ao invés de permanecer na dimensão do impossível, do irresolvível, o que nos parece mais adequado à idéia de desastre da escritura e escritura do desastre.
No ensaio de Ettore Finazzi Agrò, o óbito está no título: “A voz de quem morre. O indício e a testemunha em ‘Meu tio o iauaretê’” (AGRÒ, 2006, p. 25). O ensaísta assinala aí, de forma feliz, a “relação impossível” que se estabelece “no limiar certo mas sem consistência entre o humano e o infra-humano ou não humano” (p. 28), e aponta o “desejo absurdo” do escritor de dar voz a essa impossibilidade, na superação da necessidade de uma testemunha. É precisamente pelo caráter impensável do evento que a narrativa do iauaretê-sobrinho, a nosso ver, deve eliminar a morte, mantendo-a suspensa no limiar do intransitável.
Clara Rowland, por sua vez, estabelece uma relação de causa e efeito entre a narração e a morte: “É por contar que matou que o narrador irá morrer” (ROWLAND, 2006, p. 45) ao mesmo tempo em que sustenta, com propriedade, o caráter inconcluso do texto. A morte, em algumas abordagens, pode ser a salvação da escrita, mas para nós é a traição da escritura, em cujo desastre apostamos. Não se trata de morrer, mas de estar a morrer.
No ensaio de Walnice Nogueira Galvão, talvez pela época em que foi escrito, por sua proximidade e compromisso com a mitológica straussiana, chega-se a assinalar o caráter paradigmático da morte do bugre, aquele que tem que morrer porque não pode ser nem fera nem humano, porque é incestuoso, numa saída dialética para o impasse: “Exemplarmente, termina abatido a tiros de revólver pelo interlocutor branco” (GALVÃO, 1978, p. 31). Nesse caso, a morte funcionaria como um desfecho, um ajuste de contas com o implausível, uma confortável determinação.
O texto de Rosa, todavia, não direciona a essa conclusão, a essa distensão seguida de repouso. Ao contrário, tais cenas promovem um recrudescer de tensão que não se resolve, apontando possivelmente para uma dispersão, para uma multi-metamorfose que pulveriza os seres, mas jamais para algo como um remanso merecido do texto, produto de vingança, punição ou exeqüibilidade. Repetindo um lugar-comum do discurso policialesco, não há crime sem cadáver, e aqui essa ausência soma-se às falhas patrocinadas pelo desastre.
Essa indefinição relacionada à morte do contador da história é, portanto, imanente à história, e suscita uma inevitável comparação com Grande sertão: veredas. Têm sido apontadas semelhanças entre o conto e o monumental romance: a presença de um visitante tácito, que parece ter uma certa ascensão cultural sobre o narrador, o qual, por sua vez, despeja sua verborréia memoriosa sobre o chegante. As semelhanças, entretanto, param aí, e as diferenças revelam-se muito mais profundas do que parecem. É intrigante saber que Rosa escreveu "Meu tio o Iauaretê" em momento não muito distante da criação de Grande sertão: veredas, de acordo com o breve resumo da trajetória do conto, fornecido por Clara Rowland, pesquisadora de Rosa:
"Meu tio o Iauaretê" ocupa na obra de Rosa um lugar instável. Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor, continuou a ser revisto e alterado pelo autor até a sua morte súbita em 1967, sendo mais tarde editado por Paulo Rónai para a publicação póstuma de Estas estórias (1969), com marcas de reescrita e de indecisão, sobretudo no nível lexical. Da sua inclusão no plano original do último livro de Rosa dão conta os projetos de índices e as sugestões para o ilustrador. No entanto, uma nota autoral remete-o a uma fase anterior à publicação dos dois livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas. (ROWLAND, 2006, p. 43)
Temos aqui um elemento externo que causa perplexidade. Se a escritura de "Meu tio o Iauaretê" chega a ser anterior a Grande serão: veredas, por que Guimarães Rosa o teria retido por pelo menos doze anos, até ser publicado como conseqüência de sua morte, e sem uma edição “autorizada” e “definitiva”, como era costume na época? Uma explicação fácil é atribuir a omissão à inconveniência de duplicidade formal, como ocorre na indagação de Walnice Nogueira Galvão: “Seria a exploração de um mesmo achado formal a explicação para o engavetamento?” (GALVÃO, 1978, p.34).
Optamos pela conjectura menos óbvia: Guimarães Rosa teria retido esse texto pela sua total incompatibilidade com a narrativa de Riobaldo. No romance, temos como narrador um ex-jagunço que percorre um caminho inverso ao do bugre onceiro: Riobaldo está aposentado, vive uma vida abastada e tranqüila, em que seus tiros não matam, apenas ferem uma inocente tábua de tiro-ao-alvo, sua companheira de brinquedo bem-educado. Definitivamente, o ex-jagunço civilizou-se, sua história circunscreve-se de forma definida num espaço-tempo mítico, sim, que se amplia pela imensidão do sertão-mundo, sim, mas que é da ordem do apaziguamento, do repouso, em que pese o sinal ∞ que se apõe ao final da escrita, necessário aviso de que a travessia não se completou, alívio para um incômodo. A enunciação traz o discurso para o domínio da linguagem possível, da legibilidade, por seu divórcio com o enunciado. Seu tácito interlocutor não é para ele uma ameaça, mas um paciente escutador de histórias bem instalado na confortável residência do rapsodo, a apreciar o relato. O anfitrião sente orgulho por hospedar um doutor culto, e uma certa inveja sadia por querer ser ilustrado como o visitante, mas seus sentimentos são civilizados, adequados a uma convivência social obsequiosa.
Por outro lado, a relação entre o narrador e o visitante de Meu tio o Iauaretê é de extrema tensão, que vai da fingida cortesia à franca hostilidade. O contador vive um momento de indefinição, em que sofre a mais terrível metamorfose possível: a passagem de sua condição humana para o pós-humano (ou infra-humano?). Aqui a enunciação cola-se ao enunciado, numa vertiginosa babilônia que escapa à busca de uma lógica racional. O espaço é tão amplo quanto o do grande sertão, a cabana não tem paredes limítrofes com o mundo da barbárie, as feras transitam por todos os lados, aquele que tinha por missão desonçar o mundo agora alimenta os felinos com carne humana, o visitante parece mais um agente da civilização que exerce um patrulhamento inútil sobre a ação da selvageria. O discurso se ininteligibiliza e se desautoriza do ponto de vista civilizado tanto pela metamorfose do homem em bicho quanto pela ação da cachaça ingerida por ele em grandes doses. A instabilidade instaurada por Rosa nesse texto é de tal ordem que não comporta desfecho, daí a impossibilidade da morte.
Não teria então o autor segurado este, que é seu filho rebelde, para que o outro, evidentemente mais comportado, e que tinha tudo para ser festejado, como o foi, não sofresse a ação da comparação maliciosa? Ou, situação mais trágica, para que um não funcionasse como palinódia do outro? Ou quem sabe essa tensão entre um texto e outro fosse uma experiência necessária à escrita de Rosa, e ter o texto-fera na gaveta não produzisse o efeito de provocar a mão que não escreve em sua função reguladora da escritura de escritor-onça e que terminou por nos presentear com as feras de Tutaméia? Não interessam as respostas às perguntas, mas elas têm que ser feitas, e têm que nos fazer pensar.
Esta leitura arrisca uma morte mais notável, pertencente ao estatuto da escritura, a morte que possibilita a metamorfose em direção à impossibilidade da morte. Há um texto que precisa morrer para ceder lugar à escritura do onceiro-onça, e este não se encontra exclusivamente nas palavras finais. Eis o desastre rosiano: a escritura do que não pode ser experimentado, ou do que é vivenciado no limite, um limite da ordem da linguagem. Segundo Blanchot, o desastre dé-crit, que sugere a forma da terceira pessoa do verbo décrire, em francês. Sem o hífen, o verbo equivaleria ao nosso descrever — o desastre descreve —, o que empobreceria enormemente a sugestão, já que a ação pretendida não é do estatuto da exposição minuciosa, da representação fotográfica, do traçado nítido. Destacado de escrever, sem dúvida o mais importante dos verbos utilizados por Blanchot, o prefixo, de grande vitalidade em francês e em português, acumula significados que ferem de todos os lados o radical: ação contrária à que ele sugere; cessação da ação indicada; ação mal feita; negação da qualidade do ato; separação; mudança de aspecto; remoção. Assim, pelo excesso, o verbo se esvazia, evocando a escritura-desastre do domínio das onças.
Tal idéia do desastre encontra ressonância na linha de argumentação de Giorgio Agamben em The man without content, segundo a qual a essência do conteúdo artístico desdobra-se a partir do princípio criativo-formal, condenando o artista a viver além de sua própria realidade: “The artist is the man without content, who has no other identity than a perpetual emerging out of the nothingness of expression and no other ground than his incomprehensible station of this side of himself” (AGAMBEN, 1999, p. 55).
Esse “homem sem conteúdo”, isto é, esse homem que se afasta do humanismo da escrita em direção ao inumano da escritura aparece com toda sua força nesta criatura linguageira que de matador de onças passa a provedor de carne humana para as feras. Essa é a escritura que, ao recusar a lei dos humanos, procura sua lei própria. Cabe ressalvar que essa recusa não se dá, como a palavra pode sugerir, de uma maneira determinada, definitiva, mas está carregada de tensões, de volutas e meneios atormentados, de desistências e recomeços.
Esse desastre pede um escritor que não saiba escrever, isto é, que não seja portador da má consciência nietzschiana, um selvagem vagabundo, livre do castigo e de todas as outras monumentais barreiras destinadas a obstruir os instintos de liberdade do ser primitivo. A má consciência, então, será alocada na figura do interlocutor, que se apresentará como pregoeiro da ira, da crueldade, da necessidade de perseguir, próprios do “homem superior” que tanto busca o conhecimento quanto se guia por ele.
Avulta aqui então esse homem sublime, a suprema mistificação do humanismo, a criatura que espreita o parente das onças, como a testar a viabilidade de sua condição humana. Não ri, não brinca, não dança, é sério, grave, vingativo, como um Teseu mais preocupado com sua missão de derrotar o monstro do que com a dificuldade de se desvencilhar de seu labirinto. Homem branco, bonito e rico, ele patrulha os movimentos do sobrinho do Iauaretê, quer impor o objeto da escrita, encontrando resistência: “Ah, mas isto eu não conto, que não conto, que não conto, de jeito nenhum! Por quê mecê quer saber? Quer saber tudo? Cê é soldado?...” (p. 232) . O visitante carrega, assume, suporta as provas com um fardo às costas, enfrenta monstros, estabelece leis, quer botar ordem no sertão — quer ordenar a escrita. Ele é o homem da ordem, o soldado que vigia e pune.
O animal que o representa, segundo Nietzsche, é a mula. A viagem aos confins da teia-labirinto, todavia, faz estropiar a mula que carrega o fardo, provocando uma baixa inicial na superioridade do sublime: “Cavalo seu é esse só? Ixe! Cavalo tá manco, aguado. Presta mais não. Axi... Pois sim. Hum, hum.” (p. 191). A mula de Nietzsche, aqui, é comida de jaguar: os cavalos do visitante fugiram, espalharam-se pelo mato, seu destino garantido é bucho de felino, conforme o bugre. O ex-onceiro recusa carregar o fardo: não gosta de cavalo; cavalo e cachorro são presas de onça. O visitante pressente o perigo de estar perdido nesse labirinto sem a mula que ateste sua condição de homem superior, sem o meio de se evadir heroicamente desse meio desconhecido.
No ensaio “O mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, Gilles Deleuze faz uma leitura da concepção nietzschiana da tríade Teseu-Ariadne-Dioniso, ligada ao conceito de homem superior e ao de eterno retorno, desenvolvidos pelo filósofo alemão (DELEUZE, 2000, p. 140). Depois de ajudar Teseu a se conduzir pelo labirinto após ter matado o Minotauro, Ariadne foge com o herói e é abandonada por ele na ilha de Naxos. É então seduzida por Dioniso, que se casa com ela. Deleuze pinça em vários textos de Nietzsche, e principalmente em Assim falava Zaratustra, uma interpretação do affair: “Passar de Teseu a Dioniso é, para Ariadne, uma questão de clínica, de saúde e de cura.” (DELEUZE, 2000, p. 144). Teseu é a impossibilidade do regresso, Dioniso é o eterno retorno.
Esse Teseu que o ex-onceiro hospeda em “Meu tio o Iauaretê” não tem o fio de Ariadne em suas mãos; não tem nem mais a mula para carregar seu fardo. Ariadne não pode ser mula, caso contrário será apenas uma aventureira fracassada sem fio e sem fibra, apenas com um cavalo estropiado. Ela só pode ser onça; sendo assim, não lhe cabe fornecer o fio que conduzirá o herói sublime com segurança à luz do dia; ela fornece, sim, o fio da teia que vai enredar definitivamente aquele que não se escuta no labirinto, na teia do infinito. Essa Ariadne não dorme; encontra um Teseu dormindo e transforma-o em Dioniso, seduzindo-o, fazendo-o transpor o limiar do humano, da linguagem-teseu para a linguagem-onça, o jaguanhenhém dionisíaco. Num parágrafo aparentemente perdido de Assim falava Zaratustra, Nietzsche refere-se à saudável metamorfose: “Porque eis aqui o segredo da tua alma: quando o herói a abandona, é então que se aproxima em sonhos o super-herói” (NIETZSCHE, s/d, p. 107). Nietzsche refere-se certamente, embora de forma enigmática, ao abandono de Ariadne por Teseu, e sua aproximação a Dioniso. Ariadne, portanto, é alma, é Maria-Maria, o segredo de nosso homem-onça.
A noite da sedução é memorável: o personagem não sabe ainda que é parente de onça, ou pelo menos ainda não tem certeza. Maria-Maria se achega enquanto ele dorme; o ritual da morte é substituído pelo jogo do afeto, em que ela declara seu amor a ele: “Onça que era onça — que ela gostava de mim, fiquei sabendo...” (p. 208). Os dois dormem juntos, e ele percebe que não pode mais matar onças, com exceção da suaçurana, aquela que conspurcou seu leito de amor com suas fezes fedorentas. Maria-Maria é porã-poranga, catú, bicho bonito, bela fêmea, bonita e cheirosa: “Bonita mais do que alguma mulher. Ela cheira à flor de pau-d’alho na chuva” (p. 209). Até o hálito das onças é perfume para ele. Ele se afirma seduzido e zela por sua condição de onça-macho, declarando que não permitirá a aproximação de nenhum marido-onça; doravante, é o ser viril: “Se algum macho vier, eu mato, mato, mato, pode ser meu parente o que for!” (p. 210). A tentativa de sedução perpetrada pela outra Maria, a Quirinéia, que não é onça, redundou em fracasso: por pouco ela não virou comida de fera, sendo salva por seu charme; o bugre, todavia, permaneceu irredutível, prometido para sua Maria-Onça. Suspendeu o ódio que a tentativa de assédio provocou nele, permitiu que Maria Quirinéia fugisse, e até ajudou-a, para não matá-la. Inconsciente do perigo que esse homem-felino representava, ela ainda o provocou: “Mecê homem bom, homem corajoso, homem bonito. Mas mecê gosta de mulher não...”; ao que ele tornou com uma resposta ambígua, incompreensível para ela: “Gosto mesmo não. Eu — eu tenho unha grande” (p. 233).
Bacuriquirepa é a afirmação pura; Maria-Maria é anima, a afirmação desdobrada. Ao dizer sim a Dioniso, a positividade redobra-se nele, o sim-sim que produz o eterno retorno da união Ariadne-Dioniso, que permite à escritura se desvencilhar da finalidade rumo à felicidade. O bugre dionisíaco não é panema ─ doente, infeliz ─ mas marupiara ─ criatura feliz, de sorte (p. 227), que redobra em si pensamento de onça, pensamento de leveza, de quem não tem que carregar fardo, apenas ser ditoso:
Eh, então mecê aprende: onça pensa só uma coisa — é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... Quando algũa coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar. Daí, só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual, feito em antes... (p. 223)
Maria-Maria sabe com seu saber próprio que dizer sim é desatrelar-se, descarregar os fardos, afirmar a vida. O pensamento feliz não comporta seu contrário que autorizaria o movimento dialético: ele simplesmente pára de funcionar no momento em que o bom-bonito é ameaçado, para recomeçar quando os sinais vitais se reapresentam.
O sobrinho-onça faz, então, o caminho inverso do homem Nietzscheano, seu sublime desafeto, que perde a liberdade para civilizar-se: ele inicialmente contribui para o processo civilizatório, assumindo a missão de desonçar o mundo; em seguida reconhece seu próprio erro, e é seduzido pela onça, que o atrai para o mundo selvagem, inserindo-o nele de forma tensa. Esse é o movimento que a escritura do relato faz, ampliando desmesuradamente seu caminho, tornando-o infinito, sem lei que o limite, desvencilhando-se dos pesados valores que correspondem ao patrimônio do homem superior nietzschiano: “ ‘Este é agora o meu caminho: onde está o vosso?’ Era o que eu respondia aos que me perguntavam “o caminho”. Que o caminho... o caminho não existe.” (NIETZSCHE, s/d, p. 168)
Esse movimento não-dialético estabelece o relacionamento entre a escritura e a morte, mas a morte numa dimensão que não é da ordem do desfecho, da conclusão, e sim do porte de um embate repleto de riscos para a integridade da linguagem; não a morte que nos livraria do desastre, mas a que nos faz abandonar-nos a ele, como assinala Blanchot:
(...) d’où le rapport œuvre d’art et recontre avec la mort: dans les deux cas, nous nous approchons d’un seuil périlleux, d’un point crucial où nous sommes brusquement retournés. (…) Passage à la limite. Il reste possible que, dès que nous écrivons et si peu que nous écrivons — le peu est seulement de trop — , nous sachions que nous approchons de la limite — le seuil périlleux — où le retournement est en jeu. (BLANCHOT, 1980, p. 18)
No caso do nosso sobrinho de onça, o perigo do umbral repousa na ambigüidade do próprio retorno. O ser pode encontrar sua volta à condição humana, por exigência da notoriedade a que aspira; pode também retornar ao tempo sem tempo e ao espaço sem espaço, que é o retorno do desastre, o retorno sem presença, o não-desejado porque não-planejado. Assim, o evento singular do eterno retorno de Dioniso em direção a Ariadne não é da ordem do desejo, mas da exigência da escrita naquilo que ela tem de irrecusável. É nessa recusa da escrita que, segundo Blanchot, reside o dom de escrever: “Celui qui ne sait plus écrire, qui renonce au don qu’il a reçu, dont le langage ne se laisse pas reconnaître, est plus proche de l’inexpérience inéprouvée, l’absence du ‘propre’ qui, même sans être, donne lieu à l’avenement” (BLANCHOT, 1980, p. 154). O que os homens chamam de estilo, nesse caso, vem a ser o que resta de outra recusa, a resistência do escritor a abandonar-se à escrita, negativa que acarreta a notoriedade que o entrega ao poder, que evita o apagamento, a desaparição.
Um dos traços mais importantes desse devir-onça, em sua recusa do devir-homem, é a instabilidade do nome, o excesso que não identifica, que conduz ao nada: “Ah, eu tenho todo nome” (p. 215). E produz-se aí uma lista de denominações: Bacuriquirepa, Breó, Beró, Tonico, Antonho de Eiesús, Macuncôzo, Tonho Tigreiro. O acúmulo se reduz a nada: “Agora, tenho nome nenhum, não careço” (p. 215); “Agora tenho nome mais não” (p. 216). A mãe é Mar’Iara Maria, bugra, nome que contém a beleza de Maria-Maria, e que é iara, dona, senhora. O nome é o que estabiliza o ser, que lhe dá um presente e um aqui, a honra do super-homem que provoca no ser dionisíaco a estranheza, o horror. Ouçamos mais uma vez Blanchot: “L’horreur — l’honneur — du nom qui risque toujours de devenir sur-nom , vainement repris par le mouvement de l’anonime: le fait d’être identifié, unifié, fixe, arreté dans um présent.” (BLANCHOT, 1980, p. 17). O nosso ex-onceiro não consegue atribuir-se um nome — ou atribui-se todos. Mas ele também atribui nomes às onças, agora que não as mata mais. É curiosa a forma como se dá essa atribuição, fugindo à determinação humanística que atrela o ser à realidade, conduzindo à noção blanchotiana de sur-nom. O personagem-onça declara que as onças agora têm nome, e o interlocutor provavelmente pergunta se foi ele quem as nomeou. Ele titubeia, admitindo ser o responsável pelo batismo, mas ressalvando que “era mesmo o nome delas”. O homem branco duvida, deixando o bugre indignado: “Atié... Então, se não é, como é que mecê quer saber? Pra quê mecê tá preguntando? Mecê vai comprar onça? Vai prosear com onça, algum?” (p. 211). O visitante, com sua objeção, procura atrair o ato de nomear para o lado do humano, para provocar o efeito prático do nomear para existir. O bugre resiste bravamente, e utiliza os verbos comprar e prosear de maneira altamente irônica em relação às pretensões do visitante, que quer demonstrar imenso saber cartesiano, mas que no fundo pouco sabe. As onças de sua convivência não têm mais valor de troca e nem são mais objeto da prosa do ser humano a qual pretende dispor de sua existência. Desprezando o comprar e o prosear, privilegiando o saber, o bugre ataca: “Teité... Axé... Eu sei, mecê quer saber, só se é pra ainda ter mais medo delas, tá-há?”. Coitado, que seja assim... Dioniso provoca o super-homem; o saber totalizante só tem valor aqui no sentido de fomentar o pavor, de estabelecer uma supra-realidade que só reafirma a luta do homem contra o monstro, nesse caso com desvantagem daquele em relação a este.
O desastre perpetrado pela narrativa do bugre-onça é a afirmação da singularidade do extremo, em que o eu, em sua passividade e entrega, sai do eu para encontrar-se em um fora, em tempo de estar a morrer, em que o ser nem suporta nem é suportado, em que a morte é pura e vã. Esse tempo e lugar da ausência só podem ser marcados pela linguagem do fragmento, da explosão, da dispersão, que não logra nem relatar uma experiência exemplar nem invocar uma episteme, um código que não comporta o discurso da nominação. Ao invés do silêncio, o balbucio daquele que, não sabendo mais falar, não pode calar-se. Este homem, que elimina os portadores dos pecados da gula, preguiça, soberba, avareza, luxúria, no processo de apagar o rastro civilizatório, submete-se a uma alienação radical que subverte o eu do mestre, do interlocutor que encena o saber da totalização da potência egoísta, do dominador que manipula a força da perseguição inquisitorial. Essa subversão se dá pela força da paixão anônima, dionisíaca, que luta para corresponder a ela à revelia de seu consentimento. Esse ser, entretanto, também é acossado pela recusa, ou pelo vacilo, correndo igualmente o risco de retornar ao saber, ao eu que sabe, e que sabe que está exposto a uma onipotência egoísta, portadora da má consciência, a uma vontade assassina que mata por um motivo. Daí a existência de duas linguagens ou duas exigências, uma dialética, outra não-dialética, uma na qual a negatividade é o objetivo, que é a do domínio do homem superior, e outra na qual o neutro fala pelo ser e pelo não-ser, e que é a da escolha de Ariadne em relação a Dioniso. A lei do desastre é a lei do excesso, a lei não-codificável, a outra lei, o ilimitado cuja perda ou falha não podem ser medidas.
Referências bibliográficas:
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BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 16 ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 2002.
CAMPOS, Haroldo de. “A linguagem do Iauaretê” in: Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Ed. Século XXI, 2000.
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. “A voz de quem morre. O indício e a testemunha em ‘Meu tio o Iauaretê’”, in O eixo e a roda, Revista de Literatura Brasileira. V. 12. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2006.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “O impossível retorno”, in Mitológica Rosiana. São Paulo: Ática, 1978.
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ROWLAND, Clara. Loup, si on jouait ai loup? Diálogo, palavra e morte em “Meu tio o Iauaretê” de João Guimarães Rosa. In: DUARTE, Lélia Parreira (org.). As máscaras de Perséfone. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006.
Cid Ottoni Bylaardt
(Universidade Federal do Ceará)
“Meu tio o Iauaretê” é o desastre da escritura, a escritura do desastre . O termo do desastre é simultaneamente complemento e adjunto: tanto é o processo pelo qual o desastre é escrito quanto a escritura empreendida pelo desastre: a escritura é agente do desastre e alvo dela. A esse propósito, a força impressionante da linguagem em “Meu tio o Iauaretê” de Guimarães Rosa reporta a alguns fragmentos de Maurice Blanchot em L’écriture du desastre. O primeiro deles relaciona ato de escrever e desastre, desvinculando-os da experiência:
Le desastre inexpérimenté, ce qui se soustrait à toute possibilité d’expérience — limite d’écriture. Il faut répeter: le desastre dé-crit. Ce qui ne signifie pas que le désastre, comme force d’écriture, s’en exclue, soit hors écriture, um hors-texte. (BLANCHOT, 1980, p.17)
O desastre não-experimentado é o relato do bugre que o visitante ouve e no qual interfere, mas sobre o qual não pode exercer controle. O relato se de-screve, com todas as possibilidades que essa clivagem sugere. O texto de Blanchot faz pensar então na instabilidade da situação dos corpos que se movem na narrativa de Rosa: de um lado, o interlocutor mudo que interfere violentamente tanto na enunciação quanto no enunciado do texto, e de outro o falador, que não aceita as imposições do visitante, vistas como ameaças a sua integridade selvagem, mas que também não alcança impor as suas. Ao ler o texto de Rosa, caímos freqüentemente na tentação simplificadora de associar o falante ao escritor e o ouvinte ao leitor. Todavia, não se pode esquecer, por um lado, de que o visitante também participa ativamente da escrita, funcionando como a outra mão, que sugere, exige, obriga; por outro lado, o locutor é também ouvinte, acatando ou repelindo as imposições-sugestões.
O operador do discurso é o eu falo, que automaticamente remete à posição formal clássica da situação em que a fala versa sobre um objeto ao qual o “eu” responsável dá suporte. Esse “eu falo” aqui, entretanto, coloca em risco a narrativa, por ser portador de um discurso que falta, que não conduz ao desfecho confortável que distende, mas ao vazio que acumula tensão. A linguagem, ao invés de se fechar, expande-se ao infinito, e o sujeito se dispersa até o desaparecimento no espaço da não-delimitação, no tempo da ausência de tempo. Agora, o eu falo não é mais responsável por um discurso, mas condutor trôpego de uma gramática-onça que não responde mais por verdades humanas. A sintaxe do homem-fera mostra sua última palavra sem fechá-la em predicado ou complemento, um signo móvel sempre pronto a se abrir para outros, em movimento disperso, jamais em linha, sem regras nem unidade, sem começo nem final. Um tecido irregular, uma rede sem centro nem simetria, sem um fio que indique a porta de entrada ou o caminho de saída.
O eu falo da cultura ocidental tende a privilegiar o sentido, a transparência, a presença; a escritura literária, por outro lado, inclina-se a negar a existência, e portanto a presença tanto do que se diz quanto de quem disse; ninguém fala, não há ser humano a quem possa ser atribuída essa fala: a experiência fundamental volta-se à desaparição do sujeito. Essa ausência de obra, de conceito, de Deus, de totalidade, essa direção ao desconhecido tem como único desdobramento o desastre, ou o não-fim. Fechar a obra, terminar o texto seria aceitar o saber absoluto, o êxito.
O discurso do bugre-fera ruma para a metamorfose, para a palavra estranha e estrangeira, para a língua híbrida que não faz relatos exemplares. As histórias de onça reportam a um viver da classe da pureza, com o amargo arrependimento do locutor de ter matado muitas delas. Dos homens, não tem piedade, nem ódio, nem desejo de vingança. Apenas mata-os, ou entrega-os às colegas onças, porque isso faz parte de sua ordem natural. Assim, Gugué, Antunias e Riopôro morrem de “doença”, isto é, viram comida de onça; o preto Bijibo, “muito bom, homem acomodado”, também é entregue às feras; Rauremiro e toda a família são “devorados” pelo próprio narrador; preto Tiodoro parece ter tido o mesmo fim. Só Maria Quirinéia sobrevive à selvageria do homem-onça... além de seu marido, evidentemente, mas este não se situa em nenhuma esfera ameaçadora, por ser ele próprio uma criatura-limite, o louco manso no limiar do humano.
A instabilidade das situações narradas conduz à obscuridade das cenas que marcam o fim das páginas da novela. Não são poucas as exegeses que apontam a morte do sobrinho-onça como algo inquestionável. Ensaístas ilustres, como Walnice Nogueira Galvão, Haroldo de Campos, Ettore Finazzi-Agrò e Clara Rowland apostam na morte inquestionável do bugre, assassinado a tiros pelo visitante.
Haroldo de Campos afirma que “o interlocutor virtual também toma consciência da metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está disparando contra o homem-iauaretê o revólver que sua perspicácia mantivera engatilhado durante toda a conversa” (CAMPOS, 1992, p. 62). Ele se refere ainda aos “rugidos de morte do homem-onça” (idem) e ao “estertor de suas últimas exclamações” (idem). Há, portanto, nessa leitura, a morte física do locutor. Considerando que um dos pontos mais importantes da exegese de Campos é o fato de que o discurso do sobrinho do iauaretê incorpora o “momento mágico da metamorfose” (CAMPOS, 1992, p. 62), conforme referência emprestada de Ezra Pound, do projeto de seus Cantares, causa estranheza o fato de que a impossibilidade da transformação tenha de ser punida com a morte, ao invés de permanecer na dimensão do impossível, do irresolvível, o que nos parece mais adequado à idéia de desastre da escritura e escritura do desastre.
No ensaio de Ettore Finazzi Agrò, o óbito está no título: “A voz de quem morre. O indício e a testemunha em ‘Meu tio o iauaretê’” (AGRÒ, 2006, p. 25). O ensaísta assinala aí, de forma feliz, a “relação impossível” que se estabelece “no limiar certo mas sem consistência entre o humano e o infra-humano ou não humano” (p. 28), e aponta o “desejo absurdo” do escritor de dar voz a essa impossibilidade, na superação da necessidade de uma testemunha. É precisamente pelo caráter impensável do evento que a narrativa do iauaretê-sobrinho, a nosso ver, deve eliminar a morte, mantendo-a suspensa no limiar do intransitável.
Clara Rowland, por sua vez, estabelece uma relação de causa e efeito entre a narração e a morte: “É por contar que matou que o narrador irá morrer” (ROWLAND, 2006, p. 45) ao mesmo tempo em que sustenta, com propriedade, o caráter inconcluso do texto. A morte, em algumas abordagens, pode ser a salvação da escrita, mas para nós é a traição da escritura, em cujo desastre apostamos. Não se trata de morrer, mas de estar a morrer.
No ensaio de Walnice Nogueira Galvão, talvez pela época em que foi escrito, por sua proximidade e compromisso com a mitológica straussiana, chega-se a assinalar o caráter paradigmático da morte do bugre, aquele que tem que morrer porque não pode ser nem fera nem humano, porque é incestuoso, numa saída dialética para o impasse: “Exemplarmente, termina abatido a tiros de revólver pelo interlocutor branco” (GALVÃO, 1978, p. 31). Nesse caso, a morte funcionaria como um desfecho, um ajuste de contas com o implausível, uma confortável determinação.
O texto de Rosa, todavia, não direciona a essa conclusão, a essa distensão seguida de repouso. Ao contrário, tais cenas promovem um recrudescer de tensão que não se resolve, apontando possivelmente para uma dispersão, para uma multi-metamorfose que pulveriza os seres, mas jamais para algo como um remanso merecido do texto, produto de vingança, punição ou exeqüibilidade. Repetindo um lugar-comum do discurso policialesco, não há crime sem cadáver, e aqui essa ausência soma-se às falhas patrocinadas pelo desastre.
Essa indefinição relacionada à morte do contador da história é, portanto, imanente à história, e suscita uma inevitável comparação com Grande sertão: veredas. Têm sido apontadas semelhanças entre o conto e o monumental romance: a presença de um visitante tácito, que parece ter uma certa ascensão cultural sobre o narrador, o qual, por sua vez, despeja sua verborréia memoriosa sobre o chegante. As semelhanças, entretanto, param aí, e as diferenças revelam-se muito mais profundas do que parecem. É intrigante saber que Rosa escreveu "Meu tio o Iauaretê" em momento não muito distante da criação de Grande sertão: veredas, de acordo com o breve resumo da trajetória do conto, fornecido por Clara Rowland, pesquisadora de Rosa:
"Meu tio o Iauaretê" ocupa na obra de Rosa um lugar instável. Publicado pela primeira vez em 1961 na revista Senhor, continuou a ser revisto e alterado pelo autor até a sua morte súbita em 1967, sendo mais tarde editado por Paulo Rónai para a publicação póstuma de Estas estórias (1969), com marcas de reescrita e de indecisão, sobretudo no nível lexical. Da sua inclusão no plano original do último livro de Rosa dão conta os projetos de índices e as sugestões para o ilustrador. No entanto, uma nota autoral remete-o a uma fase anterior à publicação dos dois livros de 1956, Corpo de baile e Grande sertão: veredas. (ROWLAND, 2006, p. 43)
Temos aqui um elemento externo que causa perplexidade. Se a escritura de "Meu tio o Iauaretê" chega a ser anterior a Grande serão: veredas, por que Guimarães Rosa o teria retido por pelo menos doze anos, até ser publicado como conseqüência de sua morte, e sem uma edição “autorizada” e “definitiva”, como era costume na época? Uma explicação fácil é atribuir a omissão à inconveniência de duplicidade formal, como ocorre na indagação de Walnice Nogueira Galvão: “Seria a exploração de um mesmo achado formal a explicação para o engavetamento?” (GALVÃO, 1978, p.34).
Optamos pela conjectura menos óbvia: Guimarães Rosa teria retido esse texto pela sua total incompatibilidade com a narrativa de Riobaldo. No romance, temos como narrador um ex-jagunço que percorre um caminho inverso ao do bugre onceiro: Riobaldo está aposentado, vive uma vida abastada e tranqüila, em que seus tiros não matam, apenas ferem uma inocente tábua de tiro-ao-alvo, sua companheira de brinquedo bem-educado. Definitivamente, o ex-jagunço civilizou-se, sua história circunscreve-se de forma definida num espaço-tempo mítico, sim, que se amplia pela imensidão do sertão-mundo, sim, mas que é da ordem do apaziguamento, do repouso, em que pese o sinal ∞ que se apõe ao final da escrita, necessário aviso de que a travessia não se completou, alívio para um incômodo. A enunciação traz o discurso para o domínio da linguagem possível, da legibilidade, por seu divórcio com o enunciado. Seu tácito interlocutor não é para ele uma ameaça, mas um paciente escutador de histórias bem instalado na confortável residência do rapsodo, a apreciar o relato. O anfitrião sente orgulho por hospedar um doutor culto, e uma certa inveja sadia por querer ser ilustrado como o visitante, mas seus sentimentos são civilizados, adequados a uma convivência social obsequiosa.
Por outro lado, a relação entre o narrador e o visitante de Meu tio o Iauaretê é de extrema tensão, que vai da fingida cortesia à franca hostilidade. O contador vive um momento de indefinição, em que sofre a mais terrível metamorfose possível: a passagem de sua condição humana para o pós-humano (ou infra-humano?). Aqui a enunciação cola-se ao enunciado, numa vertiginosa babilônia que escapa à busca de uma lógica racional. O espaço é tão amplo quanto o do grande sertão, a cabana não tem paredes limítrofes com o mundo da barbárie, as feras transitam por todos os lados, aquele que tinha por missão desonçar o mundo agora alimenta os felinos com carne humana, o visitante parece mais um agente da civilização que exerce um patrulhamento inútil sobre a ação da selvageria. O discurso se ininteligibiliza e se desautoriza do ponto de vista civilizado tanto pela metamorfose do homem em bicho quanto pela ação da cachaça ingerida por ele em grandes doses. A instabilidade instaurada por Rosa nesse texto é de tal ordem que não comporta desfecho, daí a impossibilidade da morte.
Não teria então o autor segurado este, que é seu filho rebelde, para que o outro, evidentemente mais comportado, e que tinha tudo para ser festejado, como o foi, não sofresse a ação da comparação maliciosa? Ou, situação mais trágica, para que um não funcionasse como palinódia do outro? Ou quem sabe essa tensão entre um texto e outro fosse uma experiência necessária à escrita de Rosa, e ter o texto-fera na gaveta não produzisse o efeito de provocar a mão que não escreve em sua função reguladora da escritura de escritor-onça e que terminou por nos presentear com as feras de Tutaméia? Não interessam as respostas às perguntas, mas elas têm que ser feitas, e têm que nos fazer pensar.
Esta leitura arrisca uma morte mais notável, pertencente ao estatuto da escritura, a morte que possibilita a metamorfose em direção à impossibilidade da morte. Há um texto que precisa morrer para ceder lugar à escritura do onceiro-onça, e este não se encontra exclusivamente nas palavras finais. Eis o desastre rosiano: a escritura do que não pode ser experimentado, ou do que é vivenciado no limite, um limite da ordem da linguagem. Segundo Blanchot, o desastre dé-crit, que sugere a forma da terceira pessoa do verbo décrire, em francês. Sem o hífen, o verbo equivaleria ao nosso descrever — o desastre descreve —, o que empobreceria enormemente a sugestão, já que a ação pretendida não é do estatuto da exposição minuciosa, da representação fotográfica, do traçado nítido. Destacado de escrever, sem dúvida o mais importante dos verbos utilizados por Blanchot, o prefixo, de grande vitalidade em francês e em português, acumula significados que ferem de todos os lados o radical: ação contrária à que ele sugere; cessação da ação indicada; ação mal feita; negação da qualidade do ato; separação; mudança de aspecto; remoção. Assim, pelo excesso, o verbo se esvazia, evocando a escritura-desastre do domínio das onças.
Tal idéia do desastre encontra ressonância na linha de argumentação de Giorgio Agamben em The man without content, segundo a qual a essência do conteúdo artístico desdobra-se a partir do princípio criativo-formal, condenando o artista a viver além de sua própria realidade: “The artist is the man without content, who has no other identity than a perpetual emerging out of the nothingness of expression and no other ground than his incomprehensible station of this side of himself” (AGAMBEN, 1999, p. 55).
Esse “homem sem conteúdo”, isto é, esse homem que se afasta do humanismo da escrita em direção ao inumano da escritura aparece com toda sua força nesta criatura linguageira que de matador de onças passa a provedor de carne humana para as feras. Essa é a escritura que, ao recusar a lei dos humanos, procura sua lei própria. Cabe ressalvar que essa recusa não se dá, como a palavra pode sugerir, de uma maneira determinada, definitiva, mas está carregada de tensões, de volutas e meneios atormentados, de desistências e recomeços.
Esse desastre pede um escritor que não saiba escrever, isto é, que não seja portador da má consciência nietzschiana, um selvagem vagabundo, livre do castigo e de todas as outras monumentais barreiras destinadas a obstruir os instintos de liberdade do ser primitivo. A má consciência, então, será alocada na figura do interlocutor, que se apresentará como pregoeiro da ira, da crueldade, da necessidade de perseguir, próprios do “homem superior” que tanto busca o conhecimento quanto se guia por ele.
Avulta aqui então esse homem sublime, a suprema mistificação do humanismo, a criatura que espreita o parente das onças, como a testar a viabilidade de sua condição humana. Não ri, não brinca, não dança, é sério, grave, vingativo, como um Teseu mais preocupado com sua missão de derrotar o monstro do que com a dificuldade de se desvencilhar de seu labirinto. Homem branco, bonito e rico, ele patrulha os movimentos do sobrinho do Iauaretê, quer impor o objeto da escrita, encontrando resistência: “Ah, mas isto eu não conto, que não conto, que não conto, de jeito nenhum! Por quê mecê quer saber? Quer saber tudo? Cê é soldado?...” (p. 232) . O visitante carrega, assume, suporta as provas com um fardo às costas, enfrenta monstros, estabelece leis, quer botar ordem no sertão — quer ordenar a escrita. Ele é o homem da ordem, o soldado que vigia e pune.
O animal que o representa, segundo Nietzsche, é a mula. A viagem aos confins da teia-labirinto, todavia, faz estropiar a mula que carrega o fardo, provocando uma baixa inicial na superioridade do sublime: “Cavalo seu é esse só? Ixe! Cavalo tá manco, aguado. Presta mais não. Axi... Pois sim. Hum, hum.” (p. 191). A mula de Nietzsche, aqui, é comida de jaguar: os cavalos do visitante fugiram, espalharam-se pelo mato, seu destino garantido é bucho de felino, conforme o bugre. O ex-onceiro recusa carregar o fardo: não gosta de cavalo; cavalo e cachorro são presas de onça. O visitante pressente o perigo de estar perdido nesse labirinto sem a mula que ateste sua condição de homem superior, sem o meio de se evadir heroicamente desse meio desconhecido.
No ensaio “O mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, Gilles Deleuze faz uma leitura da concepção nietzschiana da tríade Teseu-Ariadne-Dioniso, ligada ao conceito de homem superior e ao de eterno retorno, desenvolvidos pelo filósofo alemão (DELEUZE, 2000, p. 140). Depois de ajudar Teseu a se conduzir pelo labirinto após ter matado o Minotauro, Ariadne foge com o herói e é abandonada por ele na ilha de Naxos. É então seduzida por Dioniso, que se casa com ela. Deleuze pinça em vários textos de Nietzsche, e principalmente em Assim falava Zaratustra, uma interpretação do affair: “Passar de Teseu a Dioniso é, para Ariadne, uma questão de clínica, de saúde e de cura.” (DELEUZE, 2000, p. 144). Teseu é a impossibilidade do regresso, Dioniso é o eterno retorno.
Esse Teseu que o ex-onceiro hospeda em “Meu tio o Iauaretê” não tem o fio de Ariadne em suas mãos; não tem nem mais a mula para carregar seu fardo. Ariadne não pode ser mula, caso contrário será apenas uma aventureira fracassada sem fio e sem fibra, apenas com um cavalo estropiado. Ela só pode ser onça; sendo assim, não lhe cabe fornecer o fio que conduzirá o herói sublime com segurança à luz do dia; ela fornece, sim, o fio da teia que vai enredar definitivamente aquele que não se escuta no labirinto, na teia do infinito. Essa Ariadne não dorme; encontra um Teseu dormindo e transforma-o em Dioniso, seduzindo-o, fazendo-o transpor o limiar do humano, da linguagem-teseu para a linguagem-onça, o jaguanhenhém dionisíaco. Num parágrafo aparentemente perdido de Assim falava Zaratustra, Nietzsche refere-se à saudável metamorfose: “Porque eis aqui o segredo da tua alma: quando o herói a abandona, é então que se aproxima em sonhos o super-herói” (NIETZSCHE, s/d, p. 107). Nietzsche refere-se certamente, embora de forma enigmática, ao abandono de Ariadne por Teseu, e sua aproximação a Dioniso. Ariadne, portanto, é alma, é Maria-Maria, o segredo de nosso homem-onça.
A noite da sedução é memorável: o personagem não sabe ainda que é parente de onça, ou pelo menos ainda não tem certeza. Maria-Maria se achega enquanto ele dorme; o ritual da morte é substituído pelo jogo do afeto, em que ela declara seu amor a ele: “Onça que era onça — que ela gostava de mim, fiquei sabendo...” (p. 208). Os dois dormem juntos, e ele percebe que não pode mais matar onças, com exceção da suaçurana, aquela que conspurcou seu leito de amor com suas fezes fedorentas. Maria-Maria é porã-poranga, catú, bicho bonito, bela fêmea, bonita e cheirosa: “Bonita mais do que alguma mulher. Ela cheira à flor de pau-d’alho na chuva” (p. 209). Até o hálito das onças é perfume para ele. Ele se afirma seduzido e zela por sua condição de onça-macho, declarando que não permitirá a aproximação de nenhum marido-onça; doravante, é o ser viril: “Se algum macho vier, eu mato, mato, mato, pode ser meu parente o que for!” (p. 210). A tentativa de sedução perpetrada pela outra Maria, a Quirinéia, que não é onça, redundou em fracasso: por pouco ela não virou comida de fera, sendo salva por seu charme; o bugre, todavia, permaneceu irredutível, prometido para sua Maria-Onça. Suspendeu o ódio que a tentativa de assédio provocou nele, permitiu que Maria Quirinéia fugisse, e até ajudou-a, para não matá-la. Inconsciente do perigo que esse homem-felino representava, ela ainda o provocou: “Mecê homem bom, homem corajoso, homem bonito. Mas mecê gosta de mulher não...”; ao que ele tornou com uma resposta ambígua, incompreensível para ela: “Gosto mesmo não. Eu — eu tenho unha grande” (p. 233).
Bacuriquirepa é a afirmação pura; Maria-Maria é anima, a afirmação desdobrada. Ao dizer sim a Dioniso, a positividade redobra-se nele, o sim-sim que produz o eterno retorno da união Ariadne-Dioniso, que permite à escritura se desvencilhar da finalidade rumo à felicidade. O bugre dionisíaco não é panema ─ doente, infeliz ─ mas marupiara ─ criatura feliz, de sorte (p. 227), que redobra em si pensamento de onça, pensamento de leveza, de quem não tem que carregar fardo, apenas ser ditoso:
Eh, então mecê aprende: onça pensa só uma coisa — é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... Quando algũa coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva, mas nem que não pensa nada: nessa horinha mesma ela esbarra de pensar. Daí, só quando tudo tornou a ficar quieto outra vez é que ela torna a pensar igual, feito em antes... (p. 223)
Maria-Maria sabe com seu saber próprio que dizer sim é desatrelar-se, descarregar os fardos, afirmar a vida. O pensamento feliz não comporta seu contrário que autorizaria o movimento dialético: ele simplesmente pára de funcionar no momento em que o bom-bonito é ameaçado, para recomeçar quando os sinais vitais se reapresentam.
O sobrinho-onça faz, então, o caminho inverso do homem Nietzscheano, seu sublime desafeto, que perde a liberdade para civilizar-se: ele inicialmente contribui para o processo civilizatório, assumindo a missão de desonçar o mundo; em seguida reconhece seu próprio erro, e é seduzido pela onça, que o atrai para o mundo selvagem, inserindo-o nele de forma tensa. Esse é o movimento que a escritura do relato faz, ampliando desmesuradamente seu caminho, tornando-o infinito, sem lei que o limite, desvencilhando-se dos pesados valores que correspondem ao patrimônio do homem superior nietzschiano: “ ‘Este é agora o meu caminho: onde está o vosso?’ Era o que eu respondia aos que me perguntavam “o caminho”. Que o caminho... o caminho não existe.” (NIETZSCHE, s/d, p. 168)
Esse movimento não-dialético estabelece o relacionamento entre a escritura e a morte, mas a morte numa dimensão que não é da ordem do desfecho, da conclusão, e sim do porte de um embate repleto de riscos para a integridade da linguagem; não a morte que nos livraria do desastre, mas a que nos faz abandonar-nos a ele, como assinala Blanchot:
(...) d’où le rapport œuvre d’art et recontre avec la mort: dans les deux cas, nous nous approchons d’un seuil périlleux, d’un point crucial où nous sommes brusquement retournés. (…) Passage à la limite. Il reste possible que, dès que nous écrivons et si peu que nous écrivons — le peu est seulement de trop — , nous sachions que nous approchons de la limite — le seuil périlleux — où le retournement est en jeu. (BLANCHOT, 1980, p. 18)
No caso do nosso sobrinho de onça, o perigo do umbral repousa na ambigüidade do próprio retorno. O ser pode encontrar sua volta à condição humana, por exigência da notoriedade a que aspira; pode também retornar ao tempo sem tempo e ao espaço sem espaço, que é o retorno do desastre, o retorno sem presença, o não-desejado porque não-planejado. Assim, o evento singular do eterno retorno de Dioniso em direção a Ariadne não é da ordem do desejo, mas da exigência da escrita naquilo que ela tem de irrecusável. É nessa recusa da escrita que, segundo Blanchot, reside o dom de escrever: “Celui qui ne sait plus écrire, qui renonce au don qu’il a reçu, dont le langage ne se laisse pas reconnaître, est plus proche de l’inexpérience inéprouvée, l’absence du ‘propre’ qui, même sans être, donne lieu à l’avenement” (BLANCHOT, 1980, p. 154). O que os homens chamam de estilo, nesse caso, vem a ser o que resta de outra recusa, a resistência do escritor a abandonar-se à escrita, negativa que acarreta a notoriedade que o entrega ao poder, que evita o apagamento, a desaparição.
Um dos traços mais importantes desse devir-onça, em sua recusa do devir-homem, é a instabilidade do nome, o excesso que não identifica, que conduz ao nada: “Ah, eu tenho todo nome” (p. 215). E produz-se aí uma lista de denominações: Bacuriquirepa, Breó, Beró, Tonico, Antonho de Eiesús, Macuncôzo, Tonho Tigreiro. O acúmulo se reduz a nada: “Agora, tenho nome nenhum, não careço” (p. 215); “Agora tenho nome mais não” (p. 216). A mãe é Mar’Iara Maria, bugra, nome que contém a beleza de Maria-Maria, e que é iara, dona, senhora. O nome é o que estabiliza o ser, que lhe dá um presente e um aqui, a honra do super-homem que provoca no ser dionisíaco a estranheza, o horror. Ouçamos mais uma vez Blanchot: “L’horreur — l’honneur — du nom qui risque toujours de devenir sur-nom , vainement repris par le mouvement de l’anonime: le fait d’être identifié, unifié, fixe, arreté dans um présent.” (BLANCHOT, 1980, p. 17). O nosso ex-onceiro não consegue atribuir-se um nome — ou atribui-se todos. Mas ele também atribui nomes às onças, agora que não as mata mais. É curiosa a forma como se dá essa atribuição, fugindo à determinação humanística que atrela o ser à realidade, conduzindo à noção blanchotiana de sur-nom. O personagem-onça declara que as onças agora têm nome, e o interlocutor provavelmente pergunta se foi ele quem as nomeou. Ele titubeia, admitindo ser o responsável pelo batismo, mas ressalvando que “era mesmo o nome delas”. O homem branco duvida, deixando o bugre indignado: “Atié... Então, se não é, como é que mecê quer saber? Pra quê mecê tá preguntando? Mecê vai comprar onça? Vai prosear com onça, algum?” (p. 211). O visitante, com sua objeção, procura atrair o ato de nomear para o lado do humano, para provocar o efeito prático do nomear para existir. O bugre resiste bravamente, e utiliza os verbos comprar e prosear de maneira altamente irônica em relação às pretensões do visitante, que quer demonstrar imenso saber cartesiano, mas que no fundo pouco sabe. As onças de sua convivência não têm mais valor de troca e nem são mais objeto da prosa do ser humano a qual pretende dispor de sua existência. Desprezando o comprar e o prosear, privilegiando o saber, o bugre ataca: “Teité... Axé... Eu sei, mecê quer saber, só se é pra ainda ter mais medo delas, tá-há?”. Coitado, que seja assim... Dioniso provoca o super-homem; o saber totalizante só tem valor aqui no sentido de fomentar o pavor, de estabelecer uma supra-realidade que só reafirma a luta do homem contra o monstro, nesse caso com desvantagem daquele em relação a este.
O desastre perpetrado pela narrativa do bugre-onça é a afirmação da singularidade do extremo, em que o eu, em sua passividade e entrega, sai do eu para encontrar-se em um fora, em tempo de estar a morrer, em que o ser nem suporta nem é suportado, em que a morte é pura e vã. Esse tempo e lugar da ausência só podem ser marcados pela linguagem do fragmento, da explosão, da dispersão, que não logra nem relatar uma experiência exemplar nem invocar uma episteme, um código que não comporta o discurso da nominação. Ao invés do silêncio, o balbucio daquele que, não sabendo mais falar, não pode calar-se. Este homem, que elimina os portadores dos pecados da gula, preguiça, soberba, avareza, luxúria, no processo de apagar o rastro civilizatório, submete-se a uma alienação radical que subverte o eu do mestre, do interlocutor que encena o saber da totalização da potência egoísta, do dominador que manipula a força da perseguição inquisitorial. Essa subversão se dá pela força da paixão anônima, dionisíaca, que luta para corresponder a ela à revelia de seu consentimento. Esse ser, entretanto, também é acossado pela recusa, ou pelo vacilo, correndo igualmente o risco de retornar ao saber, ao eu que sabe, e que sabe que está exposto a uma onipotência egoísta, portadora da má consciência, a uma vontade assassina que mata por um motivo. Daí a existência de duas linguagens ou duas exigências, uma dialética, outra não-dialética, uma na qual a negatividade é o objetivo, que é a do domínio do homem superior, e outra na qual o neutro fala pelo ser e pelo não-ser, e que é a da escolha de Ariadne em relação a Dioniso. A lei do desastre é a lei do excesso, a lei não-codificável, a outra lei, o ilimitado cuja perda ou falha não podem ser medidas.
Referências bibliográficas:
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